Em menos de 20 anos, comunidades em todo o mundo foram atingidas por uma série de grandes surtos de doenças: SARS, MERS, ebola, zika e agora, covid-19. Quase todas as doenças infecciosas emergentes nos seres humanos se originam de microrganismos que são abrigados pela vida selvagem e subsequentemente “saltam”, direta ou indiretamente – por exemplo, através de mosquitos ou carrapatos – para os seres humanos.

Um fator que impulsiona o aumento de surtos de doenças zoonóticas é que as atividades humanas – incluindo crescimento populacional, migração e consumo de animais silvestres – estão levando a um aumento do encontro com a vida selvagem. Ao mesmo tempo, mutações genéticas em vírus e outros micróbios estão criando novas oportunidades para o surgimento de doenças.

Mas os seres humanos permanecem amplamente ignorantes da biodiversidade do nosso planeta e de seus ecossistemas naturais. Apenas 2 milhões de espécies – cerca de 20% de todas as espécies estimadas na Terra – foram nomeadas. Em nossa opinião, essa ignorância fundamental de quase todos os aspectos da biodiversidade resultou em uma resposta ineficiente, mal coordenada e minimamente baseada em ciência aos aspectos-chave da pandemia de covid-19.

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Temos diversas experiências em evolução de plantas e mamíferos e doenças infecciosas emergentes. Em um comentário recém-publicado que escrevemos com colegas de todos os Estados Unidos e de seis outros países, identificamos um recurso amplamente inexplorado para prever pandemias futuras: coleções de história natural em museus de todo o mundo.

Arquivos da vida na Terra

Essas coleções preservam espécimes de animais, plantas e outros organismos que ilustram a diversidade da vida na Terra. São reservatórios de informações e amostras que podem ajudar os cientistas a identificar prováveis ​​fontes de patógenos, hospedeiros e vias de transmissão. Acreditamos que alavancar coleções dessa maneira exigirá mais recursos e mais colaboração entre cientistas da biodiversidade e investigadores de surtos de doenças.

A pesquisa mostra que as doenças zoonóticas aumentaram devido à intrusão humana em habitats de animais. Em particular, a destruição de florestas tropicais em todo o mundo nos colocou frente a frente com micróbios que ocorrem naturalmente em animais selvagens e podem causar doenças em nossa própria espécie.

A biodiversidade da Terra está conectada através de uma árvore genealógica. Vírus, bactérias e outros micróbios evoluíram com seus hospedeiros por milhões de anos. Como resultado, um vírus que reside em um hospedeiro de animal selvagem, como um morcego, sem causar doenças, pode ser altamente patogênico quando transmitido aos seres humanos. É o caso das doenças zoonóticas.

Infelizmente, as respostas nacionais aos surtos de doenças geralmente se baseiam em conhecimentos muito limitados da biologia básica, ou mesmo da identidade, do patógeno e de seu hospedeiro selvagem. Como cientistas, acreditamos que aproveitar séculos de conhecimento e recursos biológicos das coleções de história natural pode fornecer um roteiro informativo para identificar a origem e a transmissão de surtos de doenças.

Patógenos preservados

Essas coleções de animais, plantas e fungos datam de séculos atrás e são as fontes mais ricas de informações disponíveis sobre a vida na Terra. Elas estão alojadas em museus que vão da Smithsonian Institution a pequenas faculdades.

Estima-se que as coleções de história natural do mundo contenham, juntas, mais de 3 bilhões de espécimes. Elas incluem espécimes preservados de possíveis hospedeiros dos coronavírus que levaram ao surgimento de SARS, MERS e covid-19. Essas coleções fornecem um poderoso mapa de distribuição da biodiversidade do nosso planeta no espaço e no tempo.

Como os pesquisadores podem canalizar essas coleções para a descoberta de doenças? Cada espécime – digamos, uma espécie de planta carnívora da Flórida ou um rato-veadeiro do árido Novo México – é catalogado com um nome científico, uma data de coleta e o local onde foi coletado, e geralmente com outras informações relevantes. Esses registros sustentam a compreensão dos cientistas sobre onde as espécies hospedeiras e seus patógenos associados são encontrados e quando ocorreram lá.

Conectar o local de um surto de doença a possíveis hospedeiros de patógenos que ocorrem nessa área pode ajudar a identificar prováveis ​​hospedeiros, fontes de patógenos e vias de transmissão de hospedeiros para humanos e de um humano para outro. Essas coleções de história natural são conectadas em todo o mundo através de enormes bancos de dados on-line. Isso possibilita que um pesquisador em qualquer lugar do mundo possa encontrar informações sobre possíveis hospedeiros em regiões distantes.

Agilidade

Mas isso é apenas o começo. Uma amostra preservada de um roedor, um morcego ou qualquer outro animal hospedeiro em potencial em uma coleção também carrega patógenos preservados, como coronavírus. Isso significa que os pesquisadores podem pesquisar rapidamente micróbios usando amostras coletadas décadas atrás, ou ainda antes, para um propósito totalmente diferente. Eles podem usar essas informações para identificar com rapidez um patógeno, associá-lo a determinados hospedeiros selvagens e, em seguida, reconstruir as distribuições e a evolução anteriores de micróbios e hospedeiros causadores de doenças em todo o espaço geográfico.

Muitas coleções contêm amostras congeladas de animais armazenadas em freezers especiais de baixa temperatura. Esses materiais podem ser rapidamente pesquisados ​​quanto a micróbios e possíveis patógenos humanos usando-se análise genética. Os cientistas podem comparar sequências de DNA dos patógenos encontrados em amostras de animais com o agente causador da doença para identificar e rastrear as vias de transmissão.

Congeladores de nitrogênio para criopreservação de amostras no biorrepositório do Museu Nacional de História Natural da Smithsonian Institution. Crédito: Donald E. Hurlbert/Smithsonian, CC BY-ND

Por exemplo, espécimes de museus de camundongos da Universidade do Novo México foram fundamentais para a rápida identificação de uma espécie recém-descoberta de hantavírus que causou 13 mortes no sudoeste dos Estados Unidos em 1993. Estudos subsequentes de espécimes preservados revelaram muitas novas espécies e variantes de hantavírus em outros roedores, musaranhos, toupeiras e, recentemente, morcegos em todo o mundo.

Equipar museus e conectar cientistas

As coleções de história natural têm o potencial de ajudar a revolucionar os estudos de epidemias e pandemias. Mas, para fazer isso, elas precisarão de mais apoio.

Mesmo tendo um papel fundamental na biologia, as coleções geralmente são subfinanciadas e sofrem com falta de pessoal. Muitas delas não têm amostras recentes ou tecidos congelados associados para análises genéticas. Várias regiões terrestres foram pouco amostradas, especialmente os países com maior biodiversidade próximos aos trópicos.

A fim de alavancar a ciência da biodiversidade para pesquisa biomédica e saúde pública, os museus precisarão de mais amostras de campo; novas instalações para abrigar coleções, especialmente em países com biodiversidade; e bancos de dados expandidos para cientistas que coletam amostras, analisam sequências de DNA e rastreiam as rotas de transmissão. Esses investimentos exigirão maior financiamento e inovações nas ciências biomédicas e da biodiversidade.

Distanciamento

Outro desafio é que curadores de história natural e patobiologistas, que estudam os mecanismos da doença, trabalham em comunidades científicas separadas e só estão vagamente cientes dos recursos uns dos outros. Isso ocorre apesar dos benefícios claros para a pesquisa básica e clínica. Acreditamos que agora é a hora de refletir sobre como alavancar diversos recursos e construir laços mais fortes entre museus de história natural, patobiologistas e instituições de saúde pública. A colaboração será essencial para nossa capacidade de prever, e talvez prevenir, pandemias futuras.

 

* Pamela Soltis é professor e curadora do Museu de História Natural da Flórida, Universidade da Flórida; Joseph Cook é professor de biologia e curador da Divisão de Mamíferos do Museu de Biologia do Sudoeste, Universidade do Novo México; Richard Yanagihara é professor de pediatria e pesquisador principal do Centro Pacífico para Pesquisa de Doenças Infecciosas Emergentes, Universidade do Havaí (EUA).

** Este artigo foi republicado do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original aqui.