Durante 80 anos o casal Guita e José Mindlin se dedicou a reunir e preservar uma biblioteca de obras raras de história e de cultura brasileira. Foram necessários outros 30 anos para esse tesouro pessoal ser transformado em bem público. Mas em março, por fim, o patrimônio intelectual dos Mindlin foi consolidado e ganhou casa nova no campus paulistano da Universidade de São Paulo (USP).

A Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin abriu contendo 32 mil títulos em 60 mil volumes – parte dos quais legada do bibliófilo, historiador e pesquisador Rubens Borba de Moraes (1899-1986), que tinha um pacto com José: quem morresse primeiro deixaria sua biblioteca para o outro. O próprio Mindlin costumava dizer: “A gente passa, mas os livros ficam.” Provavelmente por isso, preocupou-se tanto em garantir a permanência da coleção – a maior do mundo no tema. O termo “brasiliana”, segundo o dicionário, identifica uma coleção de obras e publicações sobre o Brasil.

A ideia inicial era criar uma fundação, mas o advogado, empresário e bibliófilo descobriu que financeiramente isso seria inviável. Mindlin teria que pagar impostos astronômicos pelos seus próprios livros, porque nunca tinha declarado no Imposto de Renda o valor deles. “Ele simplesmente tinha a biblioteca e nunca fez contabilidade de quanto valia cada obra. Esse foi o primeiro empecilho”, ressalta o filho Sergio Mindlin.

Diante desse caso, a lei foi alterada, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, para tornar viável doações a outras instituições. Mindlin, que sempre se considerou depositário dos livros – e não proprietário deles – decidiu-se, então, pela USP, onde ele, a esposa e os filhos se formaram. As primeiras conversas com a universidade aconteceram no fim da década de 1990. A partir daí, só a determinação quixotesca da família, dos amigos envolvidos no projeto e de alguns fiéis escudeiros da ideia pode explicar como o projeto finalmente se concretizou.

Sonho concretado

Infelizmente, o casal não pôde ver o sonho realizado. Guita morreu em junho de 2006, um mês depois de assinar a doação para a USP. Entre as condições para a entrega dos livros estava a construção, em até três anos e meio, de um espaço adequado para que o acervo permanecesse reunido. Mas, quando José faleceu, em 2009, aos 95 anos, o cronograma das obras ainda se arrastava. A entrada do professor João Grandino Rodas na reitoria, em 2010, deu o impulso que faltava ao projeto. A doação foi, então, renovada pelos herdeiros com apoio das suas famílias.

Também fizeram toda a diferença os R$ 130 milhões que bancaram esse sonho. Grande parte das verbas veio da USP, do Ministério da Cultura, da Fundação Lampadia e do BNDES. Outra parte teve origem no patrocínio (por meio da Lei Rouanet) de um leque de empresas: Petrobras, CBMM, CSN, Fundação Telefônica, Suzano Papel e Celulose, Votorantim, Grupo Santander, Raízen, Cosan, Natura e CPFL.

O novo edifício, em concreto aparente, com 21.950 metros quadrados de área construída, reserva uma vista hipnotizante para as visitas. Todo o acervo está visível do hall principal, cobrindo as quatro paredes de cada um dos três andares acima. “Esse foi um pedido do meu avô: os livros deveriam estar sempre presentes”, revela Rodrigo Mindlin Loeb, arquiteto responsável pela obra, ao lado de Eduardo de Almeida. Da avó vieram as diretrizes para tratamento e acondicionamento dos livros, umidade, luz e temperatura do ambiente.

Até o fim de 2013, outra área do edifício – atualmente em fase de acabamento – será a sede do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP, criado por Sérgio Buarque de Holanda. As instalações contam com cafeteria, duas salas para exposição, auditório, sala de leitura, sala de pesquisa, laboratório de restauração, laboratório de digitalização e livraria.

“Somando tudo, esta biblioteca passou a ser um centro de referência cujo protagonista é o livro, os usuários do livro. Trata-se de um polo para a formação e o estudo da cultura do Brasil”, conclui Almeida. De acordo com ele, o desafio para os arquitetos – escolhidos a dedo pelo casal – foi descobrir como transformar um patrimônio privado, especial e pessoal, com uma ligação afetiva com cada livro, em um bem público e institucional.

Desde 1948, a biblioteca Mindlin habitava a residência do casal, numa rua de nome emblemático para hospedar a Brasiliana: rua Princesa Isabel, no bairro do Brooklin, em São Paulo. Na década de 1960, aproveitando o desnível do terreno, foi construída uma área no jardim, apelidada de “pavilhão”. Depois, nos anos 1980, foi construído outro pavilhão, ao lado. Mais tarde, o casal alugou um apartamento na mesma rua e também o segundo andar da casa de uma vizinha. Nessa época, a biblioteca expansiva já estava, de certa forma, aberta para pesquisadores. “Meus avós costumavam receber muitos pesquisadores e intelectuais. A Cristina Antunes [hoje curadora da biblioteca] começou a trabalhar com catalogação lá mesmo”, conta Loeb. Como destacou Sergio no discurso de abertura da instituição, “se agora não vai ser mais possível percorrer as estantes e folhear os livros, eles estarão num ambiente muito mais estável.”

Na USP, o acesso está limitado a pesquisadores, já que algumas obras chegam a ter mais de 400 anos, como a Arte de Grammatica da Lingoa mais Usada na Costa do Brasil, de José de Anchieta, editada em Portugal, em 1595, e Warhaftig Historia, de Hans Staden, publicada na Alemanha, em 1557. Mas o conteúdo de 3.600 obras já está disponível pela internet, no site da Brasiliana (www.brasiliana.usp.br).

Atualmente, no térreo, duas exposições também atraem quem está de passagem ou de visita. Uma mostra temporária coloca ao alcance do visitante algumas das edições mais antigas e representativas da biblioteca, até o dia 28 de junho. Já uma exibição permanente conta a trajetória do casal e da sua coleção e toma como nome o lema de vida de José Mindlin: “Não faço nada sem alegria”.

A frase de autoria do escritor e filósofo francês Michel de Montaigne era o ex libris de Mindlin – o dístico ou símbolo, que funciona como selo ou carimbo indicando a quem pertence um livro – e está estampada no idioma original – Je ne fay rien sans gayeté – e em todos os livros da biblioteca.

Dia de festa

Na tarde da cerimônia de inauguração, em 23 de março, a emoção no auditório era palpável e contagiante. “Certa vez, José me disse que tinha lido entre sete mil e oito mil volumes. Eu diria, portanto, que ele não foi um bibliófilo típico, mas um intelectual que amava os livros”, definiu em seu discurso o amigo Antonio Candido de Mello e Souza, 94 anos, sociólogo, crítico literário e professor emérito da Faculdade de Letras da USP. “Mais do que um colecionador, José foi uma espécie de autor da sua própria biblioteca. Ele a compôs como quem compõe uma obra”, disse Candido.

Também discursaram o herdeiro Sergio Mindlin; os arquitetos Eduardo de Almeida e Rodrigo Mindlin Loeb; o diretor da biblioteca, Pedro Puntoni; o presidente do BNDES, Luciano Coutinho; a ministra da Cultura, Marta Suplicy; o secretário da Cultura do Estado de São Paulo, Marcelo Araújo; e o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad.

O evento foi aberto com um vídeo sobre o casal, em que José Mindlin falava sobre sua paixão pelos livros e pela esposa Guita. “Nunca precisei entrar em casa com livro escondido, como muitos colecionadores. Quando eu ficava em dúvida se comprava ou não uma obra, ela me apoiava, mesmo se comprometesse o nosso orçamento, que não era muito. A gente só se arrepende do livro que não comprou.” Guita não só recebia as obras de braços abertos como se especializou em encadernação e restauração de livros. Ao lado da amiga Th ereza Brandão Teixeira, fundou a Associação Brasileira de Encadernação e Restauro (Aber) e deu início a cursos de formação na área no País.

A inauguração coincidiu com o aniversário de três anos da morte de István Janc són, que deu nome ao auditório onde ocorreu a cerimônia, fato lembrado por muitos dos que subiram ao palco. “A vida de István era fazer isso acontecer. Ele achava que a biblioteca Mindlin era importante, mas a democratização do conhecimento era ainda mais”, conta Maria Virgínia Jancsón, filha do historiador e professor da USP. Além de descobrir a viabilidade da doação e levantar recursos financeiros, Jancsón foi o idealizador e propulsor da digitalização das obras.

Outra sutil, mas marcante, iniciativa para a Biblioteca Mindlin não ser reduzida a um “museu do livro”, é o espaço livre deixado em suas prateleiras como uma forma de convite à sua continuidade. Se por um lado José Mindlin não teve a satisfação de ver seu projeto concluído, por outro viveu até o fim entre seus livros. “Teria sido difícil para meu pai se separar da sua biblioteca se ainda estivesse vivo”, comenta Sergio.