Gunther Rudzit, especialista brasileiro em segurança internacional, diz que o novo marco civil da internet não será capaz de deter ações secretas de inteligência,como as denunciadas por Edward Snowden

Quando discursou na conferência NetMundial, em São Paulo, comemorando a aprovação do novo Marco Civil da Internet, a presidente Dilma Rousseff criticou a espionagem americana, da qual foi vítima direta, segundo as revelações do ex-colaborador da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos, Edward Snowden, atualmente exilado na Rússia. Apesar das críticas, na prática a presidente brasileira não pode fazer muita coisa. 

Desde 2013, Snowden vem divulgando o que a espionagem norte-americana faz pela internet para obter informações sigilosas de outros países – o que inclui monitorar a comunicação pessoal de chefes de Estado, como a presidente Dilma e a primeira-ministra alemã, Ângela Merkel. Entretanto, por mais antiética que pareça, não há limite legal para impedir a espionagem, diz o especialista brasileiro em Segurança Internacional, Gunther Rudzit, ex-assessor do ministro da Defesa na gestão de Fernando Henrique Cardoso e coordenador de relações internacionais da Faculdade Rio Branco. Espionar faz parte do jogo, diz Rudzit, e todos praticam. 

O escândalo abalou a diplomacia americana e, no caso do Brasil, motivou alterações no projeto do Marco Civil da Internet, que entrou em vigor em junho. O governo chegou a cogitar sobre a obrigatoriedade de empresas como Google e Facebook armazenarem dados brasileiros em território nacional, mas desistiu. Entretanto, a inviolabilidade e o sigilo das comunicações na internet viraram pontos centrais da nova lei. 

Em recente declaração ao festival South by Southwest, no Texas, Snowden afirmou que a Agência Nacional de Segurança (NSA) ameaça o futuro da internet. Devemos adotar a criptografia para nos defender?
Empresas e pessoas que precisam proteger seus dados devem, sim, usar a criptografia, mas sabendo que ela é uma ferramenta eficaz contra hackers comuns e não contra uma agência do porte da NSA. Usar a criptografia contra ela é entrar em um jogo sabendo que você vai perder. Qualquer código pode ser quebrado. Tudo depende do tempo, da disponibilidade e dos equipamentos que você tem. Acho a declaração exagerada, porque só quem está fazendo algo errado está preocupado com a NSA. É claro que privacidade é importante, mas não vejo por que um cidadão comum tenha de se preocupar com os serviços de inteligência.

Snowden foi apaludido na cerimônia de aprovação do Marco Civil da Internet no Brasil. Qual é a sua opinião sobre a lei e os pontos que tratam da privacidade dos usuários na rede?
Sem dúvida alguma, a aprovação do Marco Civil da Internet foi um avanço, principalmente por trazer uma legislação para um setor que é essencial para uma sociedade moderna. Contudo, fica a dúvida se ela será respeitada ou imposta. Veja o exemplo da nossa legislação ambiental, considerada uma das melhores do mundo, que não impede o desmatamento da Amazônia. No que se refere à espionagem, o Código Civil da Internet não conseguirá impedi-la, pois os meios para realizá-la continuam existindo, bem como as falhas em nossa proteção. Snowden pode ser um herói em eventos como esse. Contudo, o que ele revelou e as medidas tomadas até agora não serão suficientes para parar as atividades de inteligência desses governos.

O governo cogitou obrigar empresas de tecnologia, como Google e Facebook, a guardar dados de usuários brasileiros em servidores no Brasil, mas desistiu. Isso manteria os dados seguros?
A proposição era uma bobagem. Na verdade, se isso acontecesse, estaríamos facilitando o trabalho da NSA e de outros governos e hackers interessados em dados de brasileiros. Hoje, esses dados estão espalhados por vários servidores. Se eles ficassem concentrados em um só local, o trabalho de peneirar o que é importante e que está espalhado pelo mundo seria eliminado. Insisto: não existe código inquebrável, ainda mais se a infraestrutura usada usar hardwares e softwares americanos. Segundo as revelações de Snowden, as empresas americanas acabaram cedendo às pressões do governo e facilitaram a quebra de seus códigos e de seus usuários. Então, nenhuma medida de proteção pode funcionar enquanto não tivermos computadores e softwares feitos aqui.

Poderia comparar a atuação da Agência Brasileira de Informação (Abin) com a das agências de inteligência norte-americanas? 
A Abin não é uma agência de inteligência clássica, que procura espionar outros governos e proteger interesses brasileiros. Ela tem a responsabilidade de proteger os segredos do governo e de acompanhar situações de crise aqui no Brasil, mas sem atuar em outros países. Acabamos ficando muito dependentes das informações, das opiniões e das análises feitas pelo Itamaraty, que é o órgão que tem presença nos principais países de interesse do Brasil. Essa é uma deficiência grave. Por depender de um só órgão, acabamos tendo uma inteligência enviesada. O Itamaraty tem uma forma de pensar diferente da de um órgão de inteligência e de um órgão militar. Para uma maior capacidade de análise, para embasar as decisões das lideranças políticas, as três visões são necessárias: diplomática, de inteligência e militar. Nos Estados Unidos, há 16 agências na área de inteligência, com 107 mil pessoas trabalhando nelas. Segundo estimativas, elas têm um orçamento de US$ 52 bilhões. O Centro de Defesa Cibernético do Exército, criado em 2010 com o objetivo de fazer a defesa cibernética do Brasil, teve um orçamento de R$ 90 milhões em 2013. Até o meio do ano passado, tinham sido liberados R$ 61 milhões e só R$ 54 milhões haviam sido gastos. Emprega 100 pessoas. Não dá para comparar. 

Qual é a participação da NSA na estrutura dos serviços americanos e quais são seus limites legais da atuação? 
A NSA é um dos diversos órgãos americanos que trabalham com inteligência. Embora Hollywood tenha glorificado a CIA, a NSA sempre teve um papel muito importante, especialmente para decifrar códigos e fazer essa espionagem não física. Ela é fundamentalmente uma agência que trabalha com sinais eletrônicos, com interceptação de ondas de rádio e com dados disponíveis na internet. ACIA é, digamos assim, o braço sigiloso, quase armado, do governo americano para inserir agentes em outros governos – e também para converter funcionários de outros governos em agentes americanos– e combater a ação terrorista. As Forças Armadas também têm suas agências de inteligência, mas elas são mais ligadas a operações militares. Há também a agência que cuida dos satélites americanos, principalmente os satélites de reconhecimento.  A NSA é uma dessas agências de inteligência, mas com uma capacidade muito maior devido a essa interligação eletrônica do mundo. Não existe legislação internacional que limite a espionagem, porque todas as grandes potências têm seus serviços de inteligência e contrainteligência. Por isso, nenhuma quer se autolimitar quando tenta conseguir um dado importante para o seu governo. Então, não existem limitações legais. Pode ser considerado antiético, mas, no mundo da competição internacional entre governos, a espionagem faz parte do jogo e todos a praticam. 

A presidente Dilma e a chanceler Angela Merkel esperavam uma desculpa pela espionagem que sofreram. Em vez disso, o presidente Obama enfatizou a superioridade da NSA sobre as demais gências de espionagem. 
De certa forma, ele tem razão. A NSA tem uma grande superioridade na área. Mas ele fez isso para o público interno. Primeiro porque para a cultura americana, a superioridade tecnológica de seu país sempre foi e será um motivo de orgulho, de projeção de poder. Em segundo lugar, essa declaração busca esclarecer que a estrutura de espionagem foi construída para atuar contra outros países e, assim, desviar o foco da espionagem sobre cidadãos americanos. O eleitor americano não está preocupado que seu país espione outros governos. Já existe na consciência americana, desde a época da Guerra Fria, a noção de que a espionagem é parte do jogo. Mas apesar dessa superioridade, o presidente Obama não falou dos serviços de inteligência que “dão trabalho” aos Estados Unidos, como é o caso da China, da Rússia, de Israel e da Coreia do Norte. A China é o país que mais investe nisso, não apenas para se contrapor aos Estados Unidos, mas para se infiltrar nos serviços do governo, roubar dados, roubar inteligência e também causar disrupções em sistemas americanos. E apesar de ser um país aliado, Israel acompanha atentamente qualquer mudança de posição dos Estados Unidos em questões relacionados ao conflito Israel-Palestina. 

Milhões de pessoas tiveram seus telefones monitorados. Qual é o sentido disso e como são extraídas informações relevantes de uma base de dados tão grande? 
A coleta de metadados telefônicos permite identificar conexões entre as pessoas. Isso ganhou importância depois dos atentados de 2001, quando se percebeu que parte dos “inimigos” estava dentro dos Estados Unidos e que era preciso verificar com quem os grupos terroristas se comunicavam. De fato, é coletada uma quantidade absurdamente grande de dados, mas há uma série de programas– como os que funcionam por palavras-chave – que fazem uma triagem antes de o conteúdo ser verificado por um especialista. Mas são acompanhadas pessoas suspeitas de ligação com o terrorismo,e não todo e qualquer cidadão.

Não só as empresas de telefonia foram envolvidas, mas também as de tecnologia, como Google, Apple e Microsoft. Como elas são obrigadas a colaborar nessas ações? 
As revelações mostraram um envolvimento muito grande dessas empresas. A justificativa, de novo, foi o 11 de Setembro e o Ato Patriótico (aprovado em 2001 durante o governo de George W. Bush, em resposta aos atentados), que passou a dar muito poder ao setor de inteligência. Por meio de seus porta-vozes, as empresas disseram que se sentiram constrangidas a participar. Ficou muito complicado para essas companhias. 

Mas isso não equivale a uma quebra de sigilo telefônico?
Provavelmente isso vai chegar à Suprema Corte, mas um juiz federal já aceitou a ideia de que a coleta de metadados não equivale a uma quebra de sigilo da comunicação. Atualmente, a verificação de conteúdo – quando se trata de cidadãos americanos – só pode ser feita por mandado judicial. Até onde se sabe, os casos em que houve quebra de sigilo tiveram autorização judicial. Mas estamos falando de sigilo de cidadão americano. Essa é a preocupação. Sigilo de cidadão de outro país não existe para as agências americanas.