No Pantanal sul-mato-grossense, o Projeto Arara Azul é uma iniciativa exemplar. Ele é a prova cabal do que pode fazer, em termos de realização ambiental, a iniciativa privada e a empresarial quando se unem à dedicação e à competência de uma séria pesquisa científica

Cheguei há pouco do Pantanal de Mato Grosso do Sul, onde vivi, em companhia de um grupo de colegas jornalistas, uma bela experiência: acompanhar o trabalho de preservação e pesquisa das ararasazuis, espécie até há pouco seriamente ameaçada de extinção, desempenhado pelos biólogos especialistas do Instituto Arara Azul.

A chefe do projeto é a bióloga mato-grossense Neiva Guedes. Cientista e ser humano excepcional, Neiva tem aquela energia vital à flor da pele, típica das pessoas que realmente amam o que fazem: a força da paixão. Graças a essa força, mais muito estudo, dedicação e trabalho braçal – atributos que faz questão de repartir com toda a sua equipe –, ela conseguiu um feito prodigioso em apenas duas décadas de trabalho: triplicar o número de araras-azuis na região do Pantanal.

O Projeto Arara Azul, que atua no estudo e na preservação dessas aves no Pantanal sul-matogrossense, celebrou 20 anos de atividades em 2009. Com efeito, foi em novembro de 1989 que Neiva Guedes, recém-formada, viu um bando de araras-azuis durante uma prática de campo. Foi amor à primeira vista. “Eram cerca de 30 ararasazuis pousadas num galho seco. Quando soube que a espécie estava ameaçada de extinção, e que estava desaparecendo rapidamente, decidi fazer algo para impedir isso”, conta Neiva. Essa decisão se tornou um marco em sua vida: a luta pela conservação da arara-azul em seu hábitat natural. Teve início assim uma missão à qual Neiva até hoje se dedica de corpo e alma.

Abaixo, a equipe do Arara Azul: da esquerda para a direita, as biólogas Grace Ferreira da Silva, Juliana Rechetelo, Neiva Guedes, Ana Maria Fandin e Eveline Guedes. Mais abaixo, Grace e Neiva examinam um filhote durante trabalho de campo. Ao lado, magnífico casal de araras-azuis.

Os resultados desses esforços são evidentes: hoje, a população de araras-azuis está se expandindo no Pantanal e praticamente triplicou a área monitorada; quando os trabalhos do Projeto Arara Azul começaram, contabilizavam-se apenas 1.500 indivíduos da espécie; calcula-se no momento que a população na região já supera 5 mil indivíduos; 386 ninhos naturais estão cadastrados em 57 fazendas (mais de 400 mil hectares); 218 ninhos artificiais foram instalados em 14 fazendas; mais de 160 ninhos foram manejados e recuperados; acadêmicos, graduados e voluntários do Brasil e do Exterior estão sendo treinados; araras-vermelhas e canindés também estão sendo monitoradas. Melhor ainda, fazendeiros de outros Estados estão se inspirando no exemplo e começando a instalar programas de proteção e ninhos artificiais para araras e outros psitacídeos em suas propriedades. O Projeto Arara Azul já faz escola.

“Claro”, diz Neiva, “eu sozinha pouco ou nada conseguiria fazer. O projeto está dando certo graças ao apoio constante dos parceiros e patrocinadores que, alguns desde o início, como é o caso da Toyota, permanecem a nosso lado”. A montadora comemora os 20 anos da parceria por intermédio da Fundação Toyota do Brasil, que assumiu o direcionamento de importantes investimentos locados em responsabilidade social e ações de caráter ambiental.

Entre as novidades, por sinal, a principal iniciativa da parceria entre essa fundação e o Projeto Arara Azul é a construção do Centro de Sustentabilidade, na base do Instituto Arara Azul, em Campo Grande (MS). O novo espaço será referência na disseminação da cultura de proteção ao meio ambiente, por meio da educação da comunidade. “O Projeto Arara Azul é um dos mais importantes e respeitados projetos de estudo e conservação de aves em seu hábitat natural. Desde a sua criação, em 1989, a Toyota acreditou na seriedade e no trabalho de todos os envolvidos e está investindo para colaborar com a multiplicação dos resultados do projeto”, ressalta George Costa e Silva, diretor-executivo da Fundação Toyota do Brasil.

Como a imensa maioria dos ninhos está situada em regiões não pavimentadas e de difícil acesso, a Fundação Toyota doou ao projeto picapes Hilux com tração 4×4, que permitem às equipes de biólogos chegarem a esses locais.

Participar de uma dessas jornadas de monitoramento na companhia dos biólogos faz qualquer um se sentir um Indiana Jones pantaneiro. Essa é, por sinal, uma emoção acessível a qualquer um que deseja experimentá-la. O Instituto Arara Azul aceita levar junto – e por valores bastante razoáveis – minigrupos de turistas interessados. Trata-se, asseguro, de uma experiência vital definitiva, sobretudo para crianças da cidade grande. Quem quiser saber mais a respeito, basta acessar o site do instituto, que citarei ao final.

Acima a rotina diária dos biólogos: subir até os ninhos e verificar o estado dos filhotes. Grace faz o rapel como quem toma um cafezinho.

Na fazenda e refúgio ecológico Caiman (outro grande parceiro do projeto), localizada no Pantanal Sul, está instalada a base para trabalhos de campo do Arara Azul. Lá, a aventura começa ao nascer do sol. É nas primeiríssimas horas da manhã, no momento em que a fome bate e os bichos precisam comer, que os animais do Pantanal se mostram mais ativos e podem ser observados com mais facilidade. Bem instalados nas Hilux azuis, seguimos por trilhas de terra batida em direção aos “capões”, bosques de árvores e palmeiras que pontilham em toda a planície pantaneira. É neles que vivem e nidificam as araras-azuis, bem como as vermelhas e várias outras espécies de pássaros pantaneiros.

“O nome científico da espécie é Anodorhynchus hyacinthinus, popularmente chamada arara-azul grande, araraúna ou arara-preta”, explica Neiva durante o trajeto. “Pode medir até um metro e pesar 1,3 quilo. É o maior psitacídeo do mundo. Na natureza, começa a se reproduzir com 8 ou 9 anos, formando casais para a vida toda. Coloca em média dois ovos de cada vez e, em geral, só um filhote sobrevive, ficando por três meses no ninho. Após esse período, começa a voar, mas continua dependente da alimentação dos pais até os seis meses.”

A aula da bióloga prossegue, ao mesmo tempo em que, das janelas do veículo, nossos olhos não sabem onde se fixar. São tuiuiús, seriemas, colhereiros, garças, veados-campeiros e veados do Pantanal, tamanduás, cachorros-do-mato, tatus e um sem-número de outros animais que, à beira da estrada, parecem pouco se importar com a passagem dos carros. Na fazenda Caiman – dizem que por ordens expressas do dono, o industrial e ecologista paulista Roberto Klabin, atual presidente do Instituto SOS Pantanal e da Fundação SOS Mata Atlântica –, é totalmente proibida qualquer agressão ou perseguição aos bichos. Eles respondem aos bons tratos exibindo sem nenhum temor nem pudor toda a sua beleza. Até onças-pintadas podem aparecer, saindo de dentro dos capões, ao entardecer, desde que devidamente chamadas pelos “esturradores”, um tipo de cuíca que imita à perfeição os esturros desses felinos. Ao ouvir os sons, achando que uma rival está invadindo os seus domínios, a onça sai do esconderijo e se aproxima. Aí, é melhor permanecer dentro do carro…

No Pantanal, explica Neiva, a alimentação das araras-azuis é baseada exclusivamente em castanhas de duas espécies de palmeira: acuri e bocaiuva. Uma única espécie de árvore, o manduvi, concentra até 90% dos ninhos da araraazul. Para auxiliar na reprodução, as equipes do projeto trabalham não somente na recuperação e no manejo dos ninhos naturais, como também na construção de ninhos artificiais por toda a área, estimulando a população.

E finalmente chegamos a um dos capões que abrigam ninhos naturais. Eles são construídos pelas araras no alto dos manduvis. Por ter um cerne macio e suscetível à formação de ocos, essa é a árvore que elas preferem. As araras-azuis não começam um buraco, mas aumentam pequenas cavidades feitas por pica-paus, ou provocadas pela queda de galhos, ou mesmo iniciadas por fungos e cupins. O buraco utilizado para o ninho é fundo e aconchegante, forrado com serragem que as araras beliscam da própria árvore.

Mas, como é difícil encontrar cavidades naturais e há uma grande disputa com outras espécies, o Projeto Arara Azul desenvolveu e instalou ninhos artificiais. Os primeiros ninhos foram colocados em 1997, em fazendas do Pantanal. A taxa de ocupação foi pequena, mas atingiu o objetivo de contribuir para a conservação da espécie a curto prazo porque parte deles foi ocupada por araras-vermelhas, tucanos, gaviões, corujas, patos selvagens e urubus, diminuindo a disputa por ninhos naturais.

Ainda na borda do capão, a ordem é falar bem baixo; melhor ainda, permanecer em silêncio, para não assustar os animais.

Em fila indiana, seguimos Neiva e sua equipe: Carlos Cezar Correa, assistente de pesquisa; Grace Ferreira da Silva, bióloga; Neliane G. Corrêa, comunicadora; Eveline R. Guedes, turismóloga, além dos estagiários e voluntários.

Logo depois, localizado o ninho, o ritual se repete diariamente, de ninho em ninho: um dos pesquisadores escala o manduvi com a ajuda de cordas, numa modalidade de rapel; chega até o ninho, localizado entre 5 e 10 metros de altura; coloca a mão dentro do oco e extrai de lá o filhote. Embora repetido mil e uma vezes, o instante é sempre mágico. Nas mãos do pesquisador, a pequena arara mantém-se imóvel e tranquila, como se soubesse que nenhum mal lhe será causado. Colocado dentro de um balde acolchoado, o animalzinho desce até o solo, onde será pesado e medido. Se já estiver com quase três meses de idade, época em que começará a dar seus primeiros voos fora do ninho, será também anilhado, uma quantidade mínima de seu sangue será recolhida e enviada a um laboratório para detectar-se o seu sexo e o seu DNA, e em seu peito será implantado um minúsculo chip, espécie de carteira de identidade que o identificará para sempre.

E aí – rasga coração –, Neiva Guedes cumpre um gesto que revela toda a profundidade da sua relação com as araras-azuis: traz o filhote para perto do rosto e o cheira, como quem cheira uma rosa. “Não há perfume melhor, experimente!”, ela exclama. É minha vez de confirmar o que ela afirma: os filhotes, todos, têm cheiro de bebê, de bebê humano, logo depois do banho, com sabonete e talco de coco.

E fica fácil entender por que ela decidiu dedicar a vida a proteger e preservar essas aves, e por que é hoje conhecida em todo o Pantanal e em vários lugares do mundo como “a Dama das Araras”. Neiva merece.

Para saber mais

www.fundacaotoyotadobrasil.org.br

www.sospantanal.org.br