Diretora de “Babenco” fala sobre o processo de criação do documentário e a campanha de crowdfunding para impulsionar a candidatura do filme ao Oscar, que não recebeu apoio do governo federal.Por mais de 30 anos, a sombra da morte foi companheira do cineasta Héctor Babenco. Diagnosticado com câncer aos 38 anos, viveu até os 70. Nesse ínterim, dirigiu obras-primas do cinema brasileiro e encontrou, na criação, a força para se manter vivo.

Seus últimos anos de vida foram a matéria-prima para o primeiro longa metragem dirigido por Bárbara Paz, que foi casada por nove anos com o diretor, até a morte dele, em 2016. Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou se tornou o primeiro documentário escolhido pela Academia Brasileira de Cinema (ABC) como candidato oficial do Brasil para tentar uma vaga entre os indicados ao Oscar de Melhor Filme Internacional. O filme estreou no Festival Internacional de Veneza em 2019, quando foi laureado com o Prêmio de Melhor Documentário na competição Venice Classics.

Não bastasse a forte concorrência com produções de mais de 90 países, Babenco tem um desafio adicional para conseguir de fato disputar o Oscar de 2021. Assim como fez na edição anterior da premiação, o governo federal não destinou verbas para apoiar a divulgação da candidatura. Enquanto outros títulos têm investimentos na casa dos milhões de dólares, o representante do Brasil depende de uma campanha de crowdfunding que já arrecadou mais de R$ 120 mil para ter visibilidade na escolha do júri, pela plataforma Benfeitoria.

Nesta entrevista à DW Brasil, Bárbara Paz fala sobre o processo de criação do filme, sua carreira como diretora e a participação das mulheres no cinema. Ela comenta, ainda, a mobilização para que a história poética de Babenco ganhe o mundo, em meio à crise vivida pelo setor audiovisual no país.

“Emociona como o povo brasileiro está ajudando e abraçando essa campanha de forma linda”, diz. “E ninguém vai paralisar o artista. A gente tem uma obra linda, e não é um governo que vai nos parar. Estamos caminhando. Sabemos que é difícil, mas precisamos tentar. Sonhar é de graça.”

DW Brasil: O que faz de Babenco um filme especial, digno da escolha pela Academia do Oscar?

Bárbara Paz: O filme é uma carta de amor ao cinema, acima de tudo. É sobre a despedida de um grande cineasta. Enxergar essa linha tênue entre a vida e a morte, costurada pela arte, que manteve essa pessoa viva por tanto tempo, é por si uma obra-prima. Eu, de cara, queria assistir a esse filme. Acho que essa obra vai na contramão de todas as ficções, muitas maravilhosas, por ser de uma verdade absoluta. Isso é o que há de mais bonito no filme.

Como surgiu a iniciativa da campanha de crowdfunding para divulgar o filme?

Nós recebemos a indicação [pela Academia Brasileira de Cinema] no final de novembro do ano passado. Foi algo maravilhoso. Mas não temos um distribuidor americano, por questões contratuais, e estamos vivendo esse governo desgovernado, que coloca a cultura como algo não primordial para o país. Já não tinha havido apoio ao filme escolhido para o Oscar no ano passado. Por isso, não imaginei que fossem dar algum subsídio neste ano. Mas nós tentamos, enviamos pedidos para todas as instituições, inclusive a Ancine, órgão que deve ajudar o filme selecionado a concorrer lá fora, afinal está representando o país.

Como a gente não obteve feedback, resolvemos fazer da forma que dá. É uma campanha muito cara, gigantesca, que envolve milhões. Não temos milhões, mas faremos na medida que temos. O único órgão público que nos apoiou foi a Spcine, parceira desde o início do filme. Apoiaram com um pouco, a Globo Filmes mais um pouco, o Canal Brasil também, junto com o crowdfunding. Nele, a gente está vendendo o livro (Mr. Babenco) que lancei junto com o filme, como continuação, a caixa de filmes do Héctor, posters assinados e obras de arte que os artistas doaram para a campanha.

Emociona como o povo brasileiro está ajudando e abraçando essa campanha de uma forma linda. A gente sabe que é muito difícil, são muitos filmes maravilhosos competindo, e estamos entre eles. A gente faz essa campanha para o filme ser visto. Chegar até aqui foi maravilhoso. Se conseguirmos chegar à shortlist [seleção final], vai ser incrível. A gente está tentando, sabe que tem uma campanha muito pequena, mas o pequeno às vezes também chama atenção. Tem um filme lindo, representante da Venezuela, que também está fazendo crowdfunding, porque o governo não está ajudando em nada. Não somos só nós.

E ninguém vai paralisar o artista. A gente tem uma obra linda, e não é um governo que vai nos parar. Estamos caminhando. Sabemos que é difícil, mas precisamos tentar. Sonhar é de graça. A gente arrecadou R$ 127 mil até o momento, e a meta desse primeiro momento é chegar a R$ 200 mil. Na segunda etapa, mais R$ 300 mil, totalizando R$ 500 mil. Esta nova arrecadação só vai acontecer se a gente entrar para a shortlist, algo muito lindo, quando certamente um distribuidor irá nos abraçar.

Qual é a importância da escolha de Babenco pela Academia Brasileira de Cinema neste momento vivido pelo setor audiovisual no Brasil?

Foi muito emocionante, primeiramente, ser o primeiro documentário a ser indicado pelo Brasil. Isso já é histórico. Acho importantíssimo abrir portas para o documentário, porque temos filmes maravilhosos feitos no Brasil todos os anos. Ser o Babenco, um filme tão íntimo, uma escolha tão pessoal, foi super emocionante por ele, esse cineasta que levou o Brasil para o mundo, fez os atores americanos contracenarem com os brasileiros, essa mistura. Ele merecia muito estar lá.

O setor audiovisual vive uma crise no governo Bolsonaro. Ao mesmo tempo, parece haver uma efervescência criativa. Como você enxerga o momento atual?

Já estávamos vivendo um momento difícil no audiovisual brasileiro antes da pandemia. Depois, piorou mais ainda. Neste governo, estamos sendo vilões. Tá bem difícil. A gente sabe que amanhã pode ser melhor e que isso vai passar. Então, não podemos parar de trabalhar. Muita gente ficou desempregada, muitas famílias necessitadas. Foi bonita a solidariedade que aconteceu dentro da classe, de se ajudar. São milhões de pessoas que trabalham na indústria do audiovisual brasileiro. Mas a gente sabe que as coisas vão voltar ao normal logo mais — ou quase normal. É só não pirar e respirar fundo.

Como foi a primeira experiência de direção de um longa-metragem?

Eu já dirigi curtas e tive dois programas no Canal Brasil durante muitos anos. Sempre me aventurei a aprender, estudar. Sou uma boa ouvinte e uma observadora nata. O cinema sempre foi a minha menina dos olhos, e não é à toa que eu caso com um cineasta. Eu sempre tive essa veia de reger, gostar da luz, da fotografia, da direção de arte e de juntar esses elementos. Quando você dirige uma obra grande, entende que cada pedacinho é fundamental. É como se fossem várias tintas. Eu pintei durante uma época da minha vida, e é muito interessante a mistura, a junção: quando fica pronto esse quadro, quanto tempo demora? E tem que decantar. Um filme como este, que é super autoral, realmente foi feito pintado à mão.

Eu queria ter feito faculdade de Cinema e acabei fazendo Jornalismo, por falta de recursos e pelas oportunidades que me chegaram. Mesmo assim, sempre fui muito estudiosa do cinema, muito cinéfila. É uma mistura de muitas coisas essa formação. Mas, realmente, o Babenco foram várias universidades em alguns anos. Aprendi muito, não só na captação, que é a fase mais prazerosa e fácil pra mim, porque sempre fotografei e tenho essa veia fotográfica há muito tempo. Mas acho que na pós-produção, na montagem, você vai descobrindo os caminhos e aprendendo. Também aprendi muito na produção. Como é difícil fazer um filme no Brasil! E como esse universo ainda é masculino. É difícil você se impor como mulher. Passei por várias etapas, não só como diretora mas produtora também.

Você assina sozinha a produção. Como foi esse trabalho?

Eu fiz o filme totalmente sozinha mesmo. Contratei outros dois produtores, mas que entraram depois que o filme estava pronto, na parte de finalização, entrega de material, essas coisas. Mas fiz o filme praticamente sozinha, no sentido mesmo de produzir. O filme todo foi feito na minha casa, na ilha de edição, by myself, com meus montadores escolhidos a dedo.

Em Babenco, você se afastou de uma linguagem mais estática do documentário, focada em entrevistas. O que te levou a essa escolha?

Nunca quis fazer um filme de entrevistas, convencional. Tem muitos filmes maravilhosos já feitos nessa linha, mas sempre quis fazer o filme que eu fiz, um filme-poema, que caminha mais para o sensorial, através do inconsciente, de uma coisa não dita. A imagem, a palavra e a música já falam muito. O Babenco estava vivo e queria falar dele, ser o protagonista da história dele. Como eu sempre quis fazer um filme mais autoral, não tinha por que fazer um filme de entrevistas.

Como foi o processo de materializar essa linguagem na criação do filme?

Acho que tudo começa pelo som. A Lucrecia Mertel, uma cineasta de que gosto muito, sempre fala isso. Tem muita coisa documental que faz pensar por que o som não foi mais trabalhado. Eu trabalho muito o som. Que som, barulho, música tem uma cena? É o que pode transformar uma cena comum em genial. Pra mim, isso é muito importante. As músicas todas do filme são coisas que o Héctor amava. Eu quis botar na tela o que era o Héctor pra mim. Desde Radiohead, passando por Piazzola e Caetano Veloso, eram músicas que ele escutava, mostrava para mim e estão no meu inconsciente do que é ele. Eu queria que todo mundo visse quem é ele, e este é o meu Héctor.

Há novos projetos de longa-metragem no horizonte?

Sempre tem projetos, a gente não se cansa de criar. Estou desenvolvendo há algum tempo a ideia e quero fazer um filme sobre a minha vida. Vários cineastas já fizeram, então por que eu não posso fazer? O próprio [Pedro] Almodóvar acabou de lançar Dor e Glória, que é maravilhoso. Cada um com seu olhar sobre si mesmo. Devo fazer logo mais. E tem um outro longa para fazer da Antonia Pellegrino, chamado Silêncio, que devo filmar em breve também. Não vou parar de dirigir, este é só o começo da minha carreira de diretora.

De que forma o convívio com o Babenco influenciou seu trabalho de direção?

É óbvio que eu aprendi muito na convivência com ele. A gente tinha uma relação muito cinematográfica, conversava muito sobre cinema o tempo inteiro. Nós nos encontramos num lugar de cinematografia parecida, com gostos parecidos, então acrescentávamos muito um ao outro, sem dúvida nenhuma. Agora, eu tenho uma visão muito diferente, em muitos aspectos. É um filme através do meu olhar, e não sei se ele faria um filme assim. Mas ele adorou a minha visão e se emocionou muito, amou, pelo pouco que viu do filme. Somos pessoas diferentes, mas eu sou uma eterna aprendiz. Tudo na vida é um aprendizado, e aprendi muito nesses anos todos de convívio com ele. Acho que a gente sempre aprende numa relação.

Que outros diretores te influenciam?

São tantos os cineastas que eu admiro, desde lá de trás, do [Ingmar] Bergman, do [Frederico] Felini, nossos maestros, até os modernos, como Lars von Trier, que amo muito, o Béla Tarr. É enorme a lista de nomes que eu admiro e que me influenciaram. Inconscientemente, a gente é sempre influenciado. Às vezes, eu me dou conta que uma determinada cena minha é muito parecida com alguma referência. Isso vem da memória cinematográfica, que a gente vai adquirindo ao longo dos anos. Mas eu gosto muito do cinema europeu, do Michael Haneke. Adoro o próprio cinema romeno, assim como o Roy Anderson, diretor que também fala nos filmes, uma linguagem que me interessa. São cinemas muito autorais.

Como você vê a popularização do gênero documentário na era do streaming?

O documentário cresceu demais com as plataformas, e é incrível. Eu sempre gostei muito de documentário, mas as pessoas não tinham onde assistir, somente em festivais. Agora, as pessoas estão consumindo muito, porque tem muita coisa boa sendo feita. É claro que há o formato mais tradicional, que também é muito bom, mas tem linguagens e linguagens. Depende do material que você tem, do que você quer falar e de que olhar. Para mim, quanto mais documentário melhor. O ser humano está um pouco cansado da ficção, querendo mais consumir realidade mesmo.

Após a morte de Babenco, há uma emergência de novos nomes no cinema brasileiro. O que você pode dizer sobre essa geração, que você também integra?

Tem muita gente boa, principalmente as mulheres. Inclusive, vi que há 34 mulheres diretoras entre os 72 filmes indicados ao Oscar de Melhor Filme Internacional. Ainda não somos a metade, mas é bastante, comparado ao que víamos até pouco tempo atrás. Está chegando muita gente autoral de novo. Passamos por uma época muito comercial, e vemos que o cinema autoral está ganhando maior vazão. Foram muitas as experimentações a partir das possibilidades oferecidas pelos equipamentos com cada vez mais funcionalidades. Tudo para voltar ao mesmo princípio básico: contar uma boa história. Parar de fazer milhares de piruetas com a câmera e tudo que as ferramentas atuais permitem fazer e voltar ao princípio: que história você tem para contar? Não adianta ter um equipamento de última geração sem uma boa história e um belo roteiro.

Como foi a experiência de dirigir a peça Ato durante a pandemia?

Na verdade, é um filme-peça. Chamo de cineteatro. É uma sinopse minha, que vai virar um filme meu. No meio da pandemia, eu estava num grupo de estudos para fazer um projeto juntos, e cada um trouxe um tema. Eu falei da solidão. Estou neste estudo faz algum tempo, e aí convidei o Cao Guimarães, meu parceiro também no filme, para escrever e desenvolver uma das histórias desse meu ato. São várias histórias, e este seria só o primeiro ato.

Acabou que, na pandemia mesmo, a produtora falou: vamos fazer agora. Em meio a essa loucura, eu topei e acabamos adaptando, indo para o Festival de Ouro Preto e agora vamos para outros. É um curta-metragem mesmo. Primeiro, estreou nesse projeto. Assumi também metade da produção, porque quis fazer do meu jeito e contar essa história, sobre as pessoas estarem muito sozinhas, carentes.

Esse momento de pandemia acabou distanciando e aflorando isso, com o ser humano voltando de novo ao princípio. Não adianta internet, porque o toque é fundamental. Então, como as pessoas vão estar daqui a dois anos? Elas estão com medo de se tocar, e tem um vírus aí solto. Já havia uma solidão antes, porque a internet aproxima e afasta muito. O filme fala sobre como você precisa do outro para atravessar a outro lugar, seja ele qual for. Os autores estamos totalmente sem palco, plateia, e o filme fala também dessa solidão que vivemos calados. Quando falamos ou cantamos, agora, é fora do palco. Falo sobre esse silêncio no filme, e esse todo que a gente vive, com nossos demônios dentro da gente.