Na aldeia xavante Etenhiritipá, localizada na terra indígena Pimentel Barbosa, em Canarana, Mato Grosso, as fogueiras estão acesas e as casas, aquecidas. Lá dentro, as mulheres aguardam os homens saírem do warã (assembleia), onde estiveram desde o entardecer refletindo sobre os acontecimentos do dia. Ao amanhecer, eles se reunirão novamente para discutir, com base na interpretação dos sonhos, como será o novo dia. E retomarão os assuntos tratados na noite anterior.

Terminado o warã, as mulheres já estão nas tarefas domésticas. Silenciosas, sem interrupção nem pressa, elas enfrentam o calor do cerrado e vão cuidar da roça, plantar, colher e trazer alimento. Também buscam lenha, pilam arroz, fazem enfeites para os rituais, esteiras e cestos para guardar a comida, carregar os bebês nas costas. Agem assim desde jovens, trabalham duro até as vésperas da gravidez. Os homens auxiliam na roça, as crianças também ajudam. Sempre rindo, brincando ou dentro dos cestos suspensos nas costas das mulheres pela alça apoiada na testa, os pequenos xavantes chegam a transportar até seis garrafas de dois litros de água. A rotina é aceita como parte da natureza para os que vivem de frente para a Serra do Roncador.

Entre os xavantes, são os homens que transmitem o conhecimento ancestral e tomam todas as decisões, mas o papel feminino é muito forte em toda a estrutura de sobrevivência. Embora não participem das decisões, as mulheres sabem tudo o que acontece e também opinam por intermédio dos maridos que integram o warã.

Há 17 anos, a fotógrafa, produtora e socióloga Cristina Flória acompanha de perto a vida dos xavantes na aldeia Etenhiritipá. Seu contato começou ao integrar a equipe permanente do Núcleo de Cultura Indígena (NCI), organização não governamental, com sede em São Paulo, criada e dirigida por líderes indígenas. A amizade foi se estreitando nesses anos, e ela participou de vários projetos, entre eles, os documentários A’uwe Uptabi – O Povo Verdadeiro (1999), e Piõ Höimanazé – A Mulher Xavante em Sua Arte (2008).

“Queria me aproximar das mulheres, pois meu trabalho dentro da comunidade sempre foi com os homens”, diz Cristina. “Acho que isso foi possível porque, como eu, elas queriam muito que ele acontecesse. Da convivência surgiu a confiança para revelar o seu universo feminino, no documentário inédito sobre as xavantes, que pela primeira vez estiveram diante de uma câmera falando para um warazu (não índio) sobre questões femininas da etnia.”

Carregar lenha, cuidar da roça, preparar a tinta vermelha do urucum para as pinturas usadas nos rituais, cuidar das crianças – o dia a dia da mulher xavante é uma labuta sem fim. Toda a infraestrutura da vida tribal repousa sobre seus ombros. Abaixo, à esquerda, a índia Luiza Penewe, mãe do cacique e uma das mais velhas da tribo. A qualidade dos seus cestos de palha é inigualável.

Para desenvolver o projeto – patrocinado pela Petrobras com o apoio da Lei Rouanet e coproduzido pela A 2.0 Produções Artísticas e pelo Sesc TV -, Cristina e sua equipe criaram o warã piõ, uma assembleia diária com as mulheres. Nesse espaço de reuniões, as decisões e os planos de trabalho eram definidos entre os dois grupos. Doze mulheres foram eleitas para coordenar o trabalho na comunidade, escolher o que gostariam de falar, protagonizar e mostrar os locais dentro do território. As quatro visitas da equipe à aldeia, no espaço de 15 meses, seguiram as estações do ano, que delimitam as atividades. Toda a cultura xavante está relacionada ao meio ambiente.

Citando o depoimento de Luiza Penewe, uma das mais velhas da aldeia e mãe do cacique, Cristina acrescenta que ela se colocou como representante dos seus antepassados. “Ela concordou em falar com o warazu, ‘mesmo ele não nos achando bonitas, não temos vergonha, estamos mostrando a nossa cultura, a nossa vida. Estou velha, mas continuo cuidando dos meus netos.'”

Os xavantes valorizam muito a aliança entre as famílias, considerada por eles o eixo emocional mais profundo. Os casamentos acontecem entre membros de clãs diferentes e os homens têm quantas esposas puderem sustentar. “Elas aceitam o marido escolhido pelos pais, podem até não gostar de dividi-lo com outras, como é o costume, mas acabam ficando amigas. A nova geração não está querendo mais dividir, mas a cultura ainda é muito forte para quebrar essa barreira”,diz Cristina.

Entre os xavantes, tudo é transmitido através dos sonhos: os nomes das crianças, os cantos rituais, as propriedades medicinais das plantas. É o sonho que orienta os caçadores, que faz a ligação do transcendente com a ancestralidade.

Logo que nasce uma menina, os pais decidem com quem ela se casará, mas os prometidos só saberão no momento certo – após o primeiro ciclo menstrual da jovem. Nessa ocasião, a mãe faz um bolo e o pai o oferece à família do futuro noivo. No dia do casamento, ele sai para caçar com os parentes. Na volta, põe a caça em um cesto em frente à casa da noiva, para que os padrinhos a distribuam entre a comunidade. A menina é pintada com urucum e recebe três colares feitos de algodão. Numa esteira colocada pela mãe no centro da aldeia, o noivo a aguarda. Ela sairá da casa de cabeça baixa e se aninhará ao seu lado.

A cerimônia dura uns dez minutos e se encerra quando uma prima lhe retira os colares. Naquela noite se consumará o matrimônio e o casal formará uma família de seis, sete, dez filhos.

Quando sentem que os filhos estão para nascer, as mulheres se recolhem. De joelhos, seguram nas estruturas da casa e fazem força para o bebê sair, não gritam nem reclamam durante as contrações. Assim como os homens, as xavantes devem ser valentes em todas as horas. O parto é feito pela sogra. “É a figura principal, fica na frente para pegar o bebê; caso ele esteja atravessado na barriga da mãe, ela consegue, com as mãos, colocar na posição correta. Ninguém mais faz isso, elas ainda mantêm esse conhecimento”, ressalta Cristina. O pai só vê o filho dias depois do nascimento e seu nome é dado de acordo com o que foi revelado em sonho pelos mais velhos. Entre os xavantes, tudo é transmitido por meio dos sonhos: os nomes das crianças, os cantos rituais, as propriedades medicinais das plantas. É o sonho que orienta os caçadores, que faz a ligação do transcendente com a ancestralidade.

As xavantes não gritam com as crianças. “Se fazem travessuras – é comum brincarem com um facão, não acontece nada -, as mães só repreendem; bater, nem pensar.” Quando as meninas estão na idade em que os meninos saem para um longo período de reclusão, também cessa toda a liberdade delas, que passam por uma disciplina rígida – por isso o olhar baixo que se vê nas fotos, o oposto de quando eram crianças, quando podiam tudo. Ficam em casa com a mãe, que lhes transmite os conhecimentos de que necessitam, e, depois de casarem, vão morar com os sogros.

Entrelaçando as folhas da palmeira do buriti, mãos femininas fazem surgir cestos que guardam, transportam bebês, objetos, alimentos e valores. Como diz Cristina, “o cesto é arte e arte é a vida vivida para os xavantes. Um cesto é bonito se for útil, se for útil é bom. Elas não confeccionam objetos para serem apenas contemplados, é para uso diário. As mais jovens aprendem a fazer com as mães, que seguem o modelo usado pelos antepassados; só assim será considerado bonito, pois foi feito por alguém que sabe o que faz.”

Do buriti elas aproveitam tudo. Com a palha, fazem esteiras de dormir, tapetes, portas, paredes; o trançado possibilita filtrar e controlar a luz natural, sua flexibilidade permite abrir por dentro e por fora. Fazem as vestimentas e os colares que os jovens usam no ritual de passagem para a vida adulta. Colhem e debulham o urucum, transformando- o em pasta para as pinturas rituais; colhem e fiam o algodão com o qual fazem os próprios vestidos ou para os homens confeccionarem as gravatas, um dos símbolos de sua identidade.

O cerrado é quente, o trabalho, exaustivo, mas as mulheres precisam sair, plantar, pegar diariamente o alimento na roça. Os mais jovens reclamam, querem plantar arroz e soja. Luiza Penewe se preocupa com a mudança na alimentação. “Eles já não saem tanto para caçar, pescar, preferem comprar comida de warazu, é mais fácil.” A explicação está na entrada da aposentadoria

rural, do dinheiro dos mais velhos, que dá acesso ao supermercado. A entrada do açúcar, do sal, do café e da farinha, que não existiam, está trazendo a diabete, a pressão alta, as cáries. Na avaliação de Cristina, o desafio é grande para as novas gerações. “Ao mesmo tempo que eles querem as coisas do supermercado, as facilidades, estão vendo e vivendo as complicações resultantes e lidando com elas, percebendo o que não existia antes e o que acontece agora.”

As mais velhas também se preocupam com o efeito das revistas pornográficas sobre os jovens e outros costumes adquiridos na cidade. Dizem que cada vez mais eles pensam em roupa e sexo, querem manter relações antes do casamento, têm filhos mais cedo e com maior frequência. Luiza Penewe garante que “as mulheres continuam a amar o Ró, elas sabem que só se ele existir poderão se casar e casar seus filhos e filhas”. O Ró é tudo na cultura xavante: o cerrado, os animais, os frutos, o céu, as flores, as ervas, o rio e o que mais existe. Garantindo o Ró, eles garantem o futuro das novas gerações; se estiver tudo bem com o Ró, continuarão a ser xavantes.