Descer pela claustrofóbica escotilha de pouco mais de um metro de diâmetro faz brotar uma série de sensações que até então vinham só de livros e filmes de grandes epopéias no fundo do mar. Começa ali uma viagem sonhada há tempos, um tipo de aventura presente no imaginário de quase toda a humanidade, e que se concretizava na Base do Arsenal da Marinha, no Rio de Janeiro, a bordo do Tikuna, o maior submarino brasileiro.

Lá dentro, em meio a incontáveis válvulas e tubulações, sou recebido pelo capitão-de-fragata Francisco Antonio de Oliveira Jr., comandante do Tikuna desde que ele foi lançado ao mar, em 2005, e que se prontifica a responder às minhas dezenas de perguntas e saciar algumas curiosidades.

Ainda na superfície, o Tikuna rompe as águas da Baia de Guanabara, no litoral fluminense. Acima, marinheiro adentra o submarino por uma de suas escotilhas.

A primeira delas, que acredito ser a de muita gente, é olhar pelo periscópio, aquela haste que fica sobre a água e que permite observar o que se passa no horizonte marítimo sem ser visto. No caso do Tikuna, o periscópio é formado por um complexo sistema de lentes que aumenta a imagem em até 12 vezes, com um foco preciso e uma série de equipamentos acoplados que permite fotografar e filmar tudo que é observado lá fora. Vejo alguns navios mercantis que passam a poucos quilômetros de nós e ilhotas do litoral fluminense, até que uma voz no sistema de alto-falantes anuncia que vamos submergir totalmente. A partir daí, o periscópio é recolhido e toda a navegação é feita por sonares e equipamentos de GPS (Sistema de Posicionamento Global), que dão a sua localização precisa e de tudo que está a seu redor.

O COMANDANTE EXPLICA que, para se locomover, o Tikuna utiliza dois tipos de sonar: o ativo, que emite um som que atinge o objeto e retorna, dando sua posição (é assim também que os morcegos se locomovem no escuro); e o passivo (mais utilizado no caso de submarinos), que capta os sons externos emitidos e ajuda a localizar sua fonte. A acuidade de tais equipamentos permite precisar quantas pás tem cada hélice de uma embarcação a dezenas de quilômetros de distância. Isso a mais de 200 metros, profundidade na qual o Tikuna é capaz de navegar.

“Reside aí a primeira característica e a grande arma de um submarino: a ocultação”, explica o comandante. “O simples fato de saber que pode haver um submarino sob eles já inibe a ação de vários invasores, como contrabandistas e navios pesqueiros irregulares.” Assim, como não estamos em guerra, o Tikuna cumpre sua função de patrulhar os mais de 8,4 mil quilômetros da costa brasileira.

Acima, o comandante Oliveira Jr. faz sua vigília através do periscópio. Ao lado, marinheiros assistem ao filme Cartas de Iwo Jima na televisão instalada na sala de torpedos. Abaixo, o Tikuna, aportado no Arsenal da Marinha, prepara-se para partir.

O Tikuna é o maior submarino do Brasil, embora em poucos segundos seja fácil perceber que isso não significa muito espaço para seus tripulantes. É, na verdade, um grande tubo de aço de 62 metros de comprimento por 6,2 metros de diâmetro revestido de uma fibra especial. Seu formato lembra a silhueta de uma baleia. Colocados os motores e demais equipamentos, sobra uma área de pouco mais de 20 metros quadrados habitáveis. A sensação claustrofóbica é ainda maior quando consideramos que a tripulação – 7 oficiais e 29 praças – passa dias, semanas, meses enclausurada nessa verdadeira lata de sardinha de guerra. Após poucas horas dentro dele, como foi o meu caso, já se começa a perceber a monotonia de um cenário frio, todo de metal.

No alto, os estreitos corredores do Tikuna, repletos de tubulações e válvulas. Acima, uma das cabines com beliches, onde o espaço para se dormir é somente o necessário.

Ironicamente, a maior área habitável do submarino é a sala de torpedos. Nesse recinto, equipado com oito tubos lança- torpedos, são feitas as refeições e os tripulantes se divertem nas horas de descanso. Uma televisão conectada a um aparelho de DVD exibe a programação do Cine Tikuna, que é como os tripulantes chamam a relação de filmes programados mensalmente. Cartas de Iwo Jima, dirigido por Clint Eastwood, era a atração do dia: um belo e inspirador filme de guerra.

A FALTA DE ESPAÇO é sentida também na hora de dormir. Os beliches, distribuídos em vários setores do submarino, mais parecem câmaras mortuárias, onde não se consegue nem ao menos sentar. Levantar bruscamente durante a noite pode significar um galo na cabeça.

A minúscula cozinha fica no centro do submarino e dela saem todas as refeições. A alimentação, por sinal, é outra grande preocupação na vida de um submarinista. Como a falta de espaço impede a realização de exercícios físicos, é preciso ter cuidado para não engordar. A dieta é balanceada, sem muita fritura ou alimentos gordurosos. No dia em que estive lá, foram servidos estrogonofe, salada, arroz e legumes, tudo muito saboroso.

Toda a água consumida no submarino é gerada dentro dele, por um processo que se chama osmose reversa. Grosso modo, a água do mar é filtrada após ser pressionada e passar por uma membrana semipermeável que retém o sal. Há também dois banheiros, cujos boxes mal permitem que se abaixe para limpar os pés. Recuperar um sabonete caído dentro deles pode exigir malabarismos circenses.

Como tudo tem as suas compensações, o pouco espaço dentro do submarino ajuda a aproximar as pessoas e a criar um clima de coleguismo que vai além das patentes e hierarquias. Como as pessoas são poucas, revezando-se em várias funções, é preciso se relacionar com todo mundo. Isso não acontece em grande embarcações, que têm compartimentos específicos para cada função, com alojamentos e comidas distintas.

No Tikuna, o comandante e os tripulantes comem a mesma comida. No ar paira sempre um clima de brincadeira e de bom humor, necessário, segundo os próprios marinheiros, para se suportar a monotonia do lugar. Além disso, todos recebem um soldo extra de 20% sobre seus salários, como compensação pelas condições insalubres e desgastantes da vida sob o mar.

Tripulante do Tikuna inspeciona a casa das máquinas, uma rotina diária em meio ao claustrofóbico ambiente dos motores do submarino.

Apesar de todas essas dificuldades, a fila dos candidatos a submarinista é grande, sendo necessário passar por uma seleção rígida. Pessoas que sofrem minimamente de claustrofobia são eliminadaos de imediato. Quando as escotilhas se fecham, a sensação de sufocamento pode ser inevitável. Isso já aconteceu com alguns marinheiros, que desistiram da vida sob as águas após alguns dias dentro do Tikuna.

TOTALMENTE CONSTRUÍDO no Brasil, o submarino homenageia em seu nome uma das nossas tribos indígenas mais guerreiras, os ticunas (escrito originariamente com “c”). Embora ele seja uma adaptação de um modelo alemão – o IKL-209 –, os engenheiros navais brasileiros fizeram inúmeros ajustes e aperfeiçoamentos no projeto original, principalmente no que diz respeito à emissão de ruídos e à autonomia embaixo d’água. Isso melhorou muito o desempenho dessa arma de guerra, que precisa ser silenciosa e rápida (a velocidade chega a mais de 20 nós, ou 37 km/h). Entre as alterações está um novo desenho hidrodinâmico, mais arredondado, que gera menos atrito com a água e emite menos ruído.

Outra inovação diz respeito às baterias. O Tikuna é movido por um sistema chamado de diesel-elétrico, ou seja, funciona a baterias que são recarregadas periodicamente por um motor a diesel. Com suas baterias carregadas, pode permanecer totalmente submerso por até dois dias, sendo então necessário subir à superfície, pois os motores precisam de oxigênio para a combustão. Durante esse processo também é renovado o estoque de oxigênio que a tripulação respira, embora haja tanques de reserva espalhados pelo submarino.

Numa recente missão de treinamento com a Marinha norte-americana, a convite das Forças Armadas dos Estados Unidos, o Tikuna permaneceu praticamente dois meses debaixo d’água, subindo apenas para ser recarregado.

Na verdade, durante esse processo, só um tubo (chamado de snorkel) fica fora d’água; todo o resto do submarino permanece submerso. “Mesmo assim, tudo isso precisa ser feito o mais rapidamente possível, pois nessa hora o submarino pode ser detectado”, explica o comandante Oliveira Jr.

As primeiras investidas do Brasil na construção de submarinos aconteceram em 1982, quando técnicos brasileiros foram à Alemanha para acompanhar a construção do submarino Tupi, lançado ao mar em 1987. Na seqüência, o Arsenal da Marinha lançou ao mar mais três submarinos: o Tamoio (1993), o Timbira (1996) e o Tapajó (1999), já construídos em solo brasileiro.

A partir da construção do Tikuna, o Brasil passou a dominar totalmente esse tipo de tecnologia. É atualmente um dos 15 países do mundo capazes de produzir submarinos, e o único no Hemisfério Sul. No entanto, embora a Marinha brasileira comemore muito esses feitos, o lema é ser discreto, praticamente oculto, como tem de ser um submarino.