(Por Robert Sanders, da UC Berkeley) – Acredita-se que a civilização maia da América Central teria sido mais bondosa e gentil, especialmente se comparada à dos astecas do México. No auge da cultura maia, cerca de 1.500 anos atrás, sua guerra parecia ritualística, destinada a extorquir o resgate da realeza cativa ou a subjugar as dinastias rivais, com impacto limitado sobre a população circunvizinha.

Só mais tarde, concluíram os arqueólogos, o aumento da seca e a mudança climática levaram à guerra total – cidades e dinastias foram varridas do mapa nos chamados eventos de término – e ao colapso da civilização maia das terras baixas, por volta de 1000 d.C.

Novas evidências descobertas por David Wahl, professor adjunto de geografia da Universidade da Califórnia em Berkeley (UC Berkeley) e pesquisador do Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS), põem tudo isso em questão. As revelações sugerem que os maias se engajaram em campanhas militares de terra arrasada mesmo no auge de sua civilização, um tempo de prosperidade e sofisticação artística.

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A descoberta também indica que esse aumento na guerra, possivelmente associado à mudança climática e à escassez de recursos, não foi a causa da desintegração da civilização maia das terras baixas.

 

Teoria desafiada

“Esses dados realmente desafiam uma das teorias dominantes do colapso dos maias”, disse Wahl. “As descobertas derrubam a ideia de que a guerra só se tornou intensa muito tarde no jogo.”

“A parte revolucionária disso é que vemos como a guerra maia era semelhante desde o início”, disse o arqueólogo Francisco Estrada-Belli, da Universidade de Tulane, colega de Wahl. “Não foi principalmente a nobreza desafiando uns aos outros, tomando e sacrificando cativos para aumentar o carisma dos captores. Pela primeira vez, estamos vendo que essa guerra teve um impacto sobre a população em geral.”

Imagem feita com laser mostra pirâmide que dominava a paisagem de Witzna (alto, direita). A construção foi destruída pelo fogo. Foto: cortesia de Francisco Estrada-Belli, PACUNAM

A evidência, relatada hoje na revista “Nature Human Behavior”, é uma camada de carvão de 2,5 centímetros de espessura encontrada em 2013 no fundo da Laguna Ek’Naab, no norte da Guatemala. Ela constitui um sinal de um extenso incêndio de uma cidade próxima, Witzna, e de seus arredores, diferente de qualquer outro incêndio natural registrado nos sedimentos do lago.

A camada de carvão data de entre 690 e 700 d.C., bem no meio do período clássico da civilização maia (250 d.C. – 950 d.C.). A data para a camada coincide exatamente com a data – 21 de maio de 697 – de uma “campanha de incêndio” gravada em uma estela de pedra, ou pilar, em uma cidade rival, Naranjo.

 

Evento descrito

“Esta é realmente a primeira vez em que o registro escrito foi ligado a um evento nos conjuntos de paleodados no Novo Mundo”, disse Wahl. “No Novo Mundo, há bem pouca escrita, e o que é preservado está principalmente em monumentos de pedra. Isso é único, pois conseguimos identificar esse evento no registro sedimentar e apontar para o registro escrito, particularmente esses hieróglifos maias, e fazer a inferência de que esse é o mesmo evento.”

Wahl, geólogo que estuda o clima do passado e é o primeiro autor do estudo, trabalhou com Lysanna Anderson e Estrada-Belli, do USGS, para extrair 7 metros de sedimentos da Laguna Ek’Naab. Com cerca de 100 metros de diâmetro, essa lagoa está situada na base do platô onde Witzna floresceu e recebeu milhares de anos de sedimentos da cidade e dos campos agrícolas circundantes.

Depois de verem a camada de carvão, os arqueólogos examinaram muitos dos monumentos arruinados de Witzna ainda em pé na selva e encontraram evidências de incêndio em todos eles.

“O que vemos aqui é que parece que eles incendiaram toda a cidade e, na verdade, toda a bacia hidrográfica”, disse Wahl. “Então, vemos uma queda muito grande na atividade humana depois, o que sugere que pelo menos houve um grande impacto na população. Não podemos saber se todos foram mortos ou se mudaram ou se simplesmente migraram, mas o que podemos dizer é que a atividade humana diminuiu de forma drástica imediatamente após o evento.”

 

Wahl, Anderson e um assistente local retiram amostras da Laguna Ek’Naab. Foto: cortesia de Francisco Estrada-Belli, Tulane
Evidências reforçadas

Esse exemplo não prova que os maias se empenharam em guerra total durante o período clássico de 650 anos, disse Estrada-Belli, mas se encaixa em evidências crescentes de comportamento bélico ao longo desse período: enterros em massa, cidades fortificadas e grandes exércitos permanentes.

“Vemos cidades destruídas e pessoas reassentadas de modo semelhante ao que Roma fez a Cartago ou Micenas a Troia”, disse Estrada-Belli.

Se a guerra total já era comum no auge da civilização maia das terras baixas, então é improvável que ela tenha sido a causa do colapso da civilização, argumentam os pesquisadores.

“Acho que, com base nessas evidências, a teoria de que uma suposta mudança para a guerra total foi um fator importante no colapso da sociedade maia clássica não é mais viável”, afirmou Estrada-Belli. “Temos de repensar a causa do colapso, porque não estamos no caminho certo com a guerra e a mudança climática.”

 

Cidades-estados

Embora a civilização maia tenha se originado há mais de 4 mil anos, o período clássico é caracterizado pela arquitetura monumental e urbanização generalizada, exemplificada por Tikal, na Guatemala, e Dzibanché, no Yucatán, no México. Cidades-estados (estados independentes compostos de cidades e seus territórios circunvizinhos) eram governadas por dinastias que, segundo arqueólogos, estabeleciam alianças e travavam guerras como as cidades-estados da Itália renascentista, as quais afetavam a nobreza sem grandes impactos na população.

De fato, a maioria dos arqueólogos acredita que a guerra incessante que surgiu no fim do período clássico (800-950), presumivelmente por causa da mudança climática, foi a principal causa do declínio das cidades maias até o presente em El Salvador, Honduras, Guatemala, Belize e no sul do México.

Então, quando descobriram a camada de carvão em Laguna Ek’Naab – uma camada diferente de tudo que Wahl já havia visto –, Wahl, Anderson e Estrada-Belli ficaram intrigados. Os cientistas haviam coletado amostras do leito do lago para documentar a alteração climática na América Central, na esperança de correlacioná-la com mudanças na ocupação humana e no cultivo de alimentos.

Pedaço inferior da Estela 4 de Witzna. A peça, quebrada e queimada (parte inferior direita), seria da época das disputas entre Witzna e Naranjo. Foto: cortesia de Francisco Estrada-Belli, Tulane

O quebra-cabeça permaneceu até 2016, quando Estrada-Belli e Alexandre Tokovinine, epígrafo maia na Universidade do Alabama e coautor do estudo, descobriram uma evidência-chave nas ruínas de Witzna: um emblema, ou selo da cidade, identificando Witzna como a antiga cidade maia Bahlam Jol. Pesquisando em um banco de dados de nomes citados nos hieróglifos maias, Tokovinine descobriu a mesma denominação em uma “declaração de guerra” em uma estela na cidade de Naranjo, cerca de 32 quilômetros ao sul de Bahlam Jol.

 

Guerra total

A declaração dizia que no dia “(…) 3 Ben, 16 Kasew (‘Sek’), Bahlam Jol ‘queimou’ pela segunda vez.” De acordo com Tokovinine, a conotação da palavra “queimado” (puluuy em maia) sempre foi clara, mas a data 3 Ben, 16 Kasew no calendário maia, ou 21 de maio de 697, associa claramente essa palavra com a guerra total e a destruição de Bahlam Jol/Witzna pelo fogo.

“As implicações dessa descoberta vão além da mera reinterpretação de referências ao incêndio em inscrições maias antigas”, disse Tokovinine. “Precisamos voltar à prancheta no próprio paradigma da antiga guerra maia, centrada em capturar cativos e extrair tributos.”

Três outras referências a puluuy ou a “incêndio” aparecem na mesma declaração de guerra, referenciando as cidades de Komkom (atual Buenavista del Cayo), K’an Witznal (agora Ucanal) e K’chchil (de localização desconhecida). Essas cidades também podem ter sido dizimadas, se a palavra puluuy descreve a mesma guerra extrema em todas as referências.

A queima anterior de Bahlam Jol/Witzna citada na estela também pode ter deixado evidências nas amostras do lago – há três outras camadas proeminentes de carvão além da de 697 –, mas a data do incêndio anterior é desconhecida.

 

Campanhas militares

Arqueólogos maias reconstruíram parte da história local, e sabe-se que a conquista de Witzna foi iniciada por uma rainha de Naranjo, Lady 6 Sky, que tentava restabelecer sua dinastia depois que a cidade-estado declinou e perdeu todas as suas posses. Ela colocou seu filho de 7 anos de idade, Kahk Tilew, no trono e então iniciou campanhas militares para acabar com todas as cidades rivais que se rebelaram, disse Estrada-Belli.

“A campanha punitiva foi registrada como sendo travada por seu filho, o rei, mas sabemos que era realmente ela”, afirmou ele.

Esse não foi o fim de Bahlam Jol/Witzna, no entanto. A cidade reviveu, em certa medida, com uma população reduzida, como se vê nas amostras do lago. E o símbolo do emblema foi encontrado em uma estela erguida por volta de 800 d.C., 100 anos após a destruição da cidade. Witzna foi abandonada por volta de 1000 d.C.