Eles podem resolver a eterna batalha entre as interpretações da obra e esclarecer a aura de mistério sobre o autor.  

O escritor norte-americano Jerome David Salinger, morto em 2010, aos 91 anos, autor do romance O Apanhador no Campo de Centeio – um dos 30 livros mais vendidos no mundo, com mais de 65 milhões de exemplares – também ficou famoso pela renúncia à vida pública. Seu último texto, Hapworth, 16, 1924, foi publicado em 19 de junho de 1965, na revista americana The New Yorker. Porém, existem vários trabalhos nunca editados. Uma remessa de inéditos do autor deverá ser revelada em 2015.

No início do ano vazou na internet uma versão de Three Stories (Três Estórias), com textos inéditos de Salinger. O manuscrito foi doado pelo autor em 1999 à universidade de Princeton, nos EUA, sob a condição de que só deveria ser publicado 50 anos depois de sua morte – portanto, em 2060. O volume está guardado pela instituição e só pode ser examinado por acadêmicos, sob supervisão. Mas, de alguma forma, alguém fez uma cópia e o conteúdo acabou caindo na rede.

São três contos inéditos: Paula, Birthday Boy (O Aniversariante) e The Ocean Full of Bowling Balls (O Oceano Cheio de Bolas de Boliche) – dos quais a PLANETA apresenta trechos nas próximas páginas. “São cópias autênticas do manuscrito de Salinger. Em diferentes níveis, são rascunhos, pouco trabalhados e incompletos, mas não menos interessantes”, afirma à PLANETA Kenneth Slawenski, autor da biografia Salinger: Uma Vida (Editora Leya) e um dos maiores estudiosos do escritor. “Salinger era um perfeccionista. Ele teria odiado a ideia de histórias não editadas serem divulgadas. Mas, justamente por isso, esses contos permitem que seus leitores testemunhem seu processo de escrita, coisa muito rara”, diz Slawenski. 

Destaca-se The Ocean Full of Bowling Balls, que remete ao mais famoso personagem salingeriano: Holden Caulfield. Nele, o mais velho dos irmãos Caulfield, Vincent, conta a história da morte do caçula, Kenneth, uma criança sensível e inteligente falecida precocemente. É o mesmo personagem que aparece em O Apanhador com outro nome, Allie. Holden aparece no final do conto e também em uma carta enviada a Kenneth. 

Birthday Boy é um conto curto sobre um rapaz que está completando 22 anos, internado em um hospital. Não sabemos a causa da internação e pouca coisa acontece na narrativa, mas lá está o estilo do autor, com palavras sublinhadas em diálogos para dar ênfase nas falas. A sensação é de estarmos diante de um falas. A sensação é de estarmos diante de um capítulo de uma história maior capítulo de uma história maior. 

Paula, a mais estranha das histórias, mostra sinais de alterações feitas no manuscrito e uma mudança brusca no discurso do narrador, que deixa de ser onisciente e aparece como um personagem no fi nal do conto. Há também um quê de realismo fantástico na história dessa mulher que, sem mais nem menos, decide não sair da cama. Para o marido, Paula afi rma que está grávida e será melhor para ela e para o bebê o completo isolamento. 

Outras histórias

A revelação do material inédito mostra que, mesmo sem publicar desde 1965, Salinger jamais parou de escrever. O que não se sabia é que o autor tinha deixado instruções para publicações póstumas. De acordo com os biógrafos David Shields e Shane Salerno, parte desse material começará a ser publicada em 2015. Haveria, pelo menos, cinco livros inéditos, entre romances e contos. 

Shields e Salerno são os autores da controversa biografi a de Salinger, que provavelmente teria horrorizado o criador de Holden Caulfi eld, se estivesse vivo. O livro faz uma devassa na vida do autor recluso e revela fatos biográfi cos que poderiam perfeitamente ficar restritos ao foro íntimo, como ele sempre quis. Saber que o autor tinha apenas um testículo, por exemplo, difi cilmente dará uma perspectiva relevante à interpretação de suas obras. 

De fato, há preciosidades escavadas pelos biógrafos, depois de nove anos de pesquisa. “Há várias fotografi as inéditas, depoimentos de gente importante e um olhar bem interessante sobre a participação do escritor na guerra”, afi rma a editora Lívia de Almeida, responsável pela versão brasileira da biografia publicada pela Editora Intrínseca. 

Salinger esteve presente em cinco batalhas sangrentas, entre elas o desembarque americano na Normandia, França, que fi cou marcado na história como o “Dia D”. Dos 3.500 soldados do regimento do qual fazia parte, 2.500 morreram ao longo de um mês a partir do desembarque. Durante a guerra, o autor carregou junto ao peito os manuscritos de O Apanhador no Campo de Centeio, no qual trabalhava nos momentos de folga.

“A guerra foi claramente o evento principal da vida de Salinger. Ele entrou no Exército como um jovem escritor pretensioso e depois de 11 meses de combate emergiu como um autor maduro, explorando questões profundas relacionadas ao signifi cado da vida e a existência de Deus”, diz Slawenski. Judeu, o autor foi um dos primeiros a pisar no campo de concentração de Kaufering Lager IV, na Alemanha. “Você nunca consegue tirar o cheiro de carne queimada do seu nariz”, diria, depois, à fi lha Margareth.

 Mesmo sem referências explícitas ao confl ito, a experiência invadiu a sua escrita. “No fi m da guerra, Salinger foi hospitalizado por esgotamento nervoso. Ele também sofreu, pelo resto da vida, de estresse pós-traumático. A guerra aprofundou sua solidão e o levou a desconfi ar do mundo dos adultos”, afi rma Slawenski. 

O trauma seria uma das razões pelas quais o escritor procurou conforto na religião zen budista. A espiritualidade teria sido a cura do homem, mas talvez tenha matado o artista. Se antes de servir no Exército Salinger tinha ambições literárias e afi rmava aos amigos que escreveria “o grande romance americano”, depois de publicada sua obra-prima seu único desejo era desaparecer.

Reclusão renitente

Quando voltou da guerra, Salinger já era um autor conhecido. Durante a década que se seguiu à publicação de O Apanhador, em 1951, o culto ao escritor tomou proporções exorbitantes. “Por natureza, ele era muito reservado e um pouco inseguro. Por outro lado, como escritor queria muito ver seu trabalho bemsucedido. Foi inevitável o choque entre sua ambição e sua reclusão”, defende Slawenski. 

Os sinais do confl ito interno apareceram no lançamento de O Apanhador. Salinger exigiu que retirassem sua foto da contracapa, se negou a participar de qualquer ação promocional e concordou em dar apenas uma entrevista. Gradualmente, fugiu dos holofotes até se recusar completamente a falar com a imprensa e a publicar textos, optando por uma vida reclusa, devotada à religião, em uma cidade remota. Mas a estratégia não funcionou. 

Em Cornish, o autor viveu normalmente. Viajou, namorou, casou três vezes, teve dois fi lhos, fez amigos e se dava bem com os vizinhos, só não queria estar no burburinho do show bizz. Mas até o fi m da vida foi perseguido por papparazzi, fanáticos, jornalistas e bisbilhoteiros em geral. 

Para os admiradores do seu talento será interessante ver como os dilemas do autor, que marcaram o pensamento de uma era, evoluíram nos textos inéditos prometidos para 2015. Eles podem servir também para ajustar o foco para o que realmente importa em Salinger: sua obra. Será um alento para os fãs.

 

Paula
A personagem se recolhe à sua cama, supostamente grávida, e acaba se recusando a deixá-la.

“No dia quatro de maio de 1941, Hincher voltou do trabalho para casa às 6h30 e encontrou sua mulher sentada na cama lendo. Afetuosamente, perguntou: “Qual o problema? Você não se sente bem?”
“Não muito bem”, disse a sra. Hincher, baixando o livro.
“Ó.” Disse Hincher: “Se levantando para o jantar?”
“Eu acho que não, querido. Você se importa muito?”
“Não, não. É claro que não. O que você está fazendo? Lendo?”
“Mmmmm…” admitiu a sra. Hincher.
No mesmo horário, na noite seguinte, a sra. Hincher ainda estava na cama.
“Devo ir atrás do dr. Bohler?” perguntou solicitamente o sr. Hincher.
A mulher riu com uma risada quente e deliciosa. “Eu acho que não, querido”. Ela disse: “Eu acho que não tenha nada que ele possa fazer”.
“Como assim? O que você quer dizer?” – Hincher sentou à beira da cama da esposa. 
“Seu bobão!” disse a sra. Hincher bem-humorada. “Eu vou ter um bebê”.
O abobamento se instalou no rosto de Hincher, seguido por puro êxtase. Então, rapidamente, ele se inclinou para beijar sua esposa, primeiro entusiasmado, depois ternamente, e começou a fazer promessas e previsões. Mas ele se interrompeu. 
“Eu sabia que aquele tolo estava errado”, exclamou feliz.
“Quem, querido?”
“Dr. Bohler.”
“Dr. Bohler!” disse a sra. Hincher desdenhosa, mas não aborrecida. “Querido, uma mulher sabe se ela vai ter um bebê ou não. Pelo menos esta mulher.”
 

O Aniversariante
Um rapaz completa 22 anos internado num hospital, sem que se saiba o motivo da internação.

“Seu pai esteve aqui hoje?”, Ethel perguntou a ele.
“Sim. Deu um pulo aqui pra me animar. Falou de quanto dinheiro está perdendo esse mês”.
“Eu te trouxe um livro”, disse Ethel. “Não é seu presente, no entanto. O presente não chegou ainda, mas espera pra você ver; é maravilhoso. Eu queria um pra mim.”
“Tá. Mas, por favor, não me dê nenhum relógio de pulso. Eu tenho três relógios de pulso.”
“Não é um relógio de pulso. O que teu pai te deu?”
“Nada. Ele não sabia que era meu aniversário. Que livro você tem aí?”
“Você não contou pra ele? Eu pensei que a secretária dele saberia!”
“Que livro?”, disse Ray. Ethel olhou para baixo, para o livro em seu colo.
“Heaven I´m Yours”. “Phyllis me emprestou. Ela fi cou louca por ele. Quer que eu leia para você?” 
“É de sacanagem?”
“Eu não perguntei pra ela”, disse Ethel, folheando as páginas à procura de diálogos.
 

O Oceano Cheio de Bolas de Boliche
O narrador descreve seu irmão, uma criança pura e inteligente, que acaba morrendo.

“Querido Kenneth,
Esse lugar fede. Nunca vi tantos ratos. Você tem que fazer umas coisas de couro e sair para caminhadas. Eles têm uma competição entre os vermelhos e os brancos. Eu supostamente sou um branco, mas eu não sou o nojento de um branco. Estou indo para casa em breve e vou me divertir um pouco com você e Vincent e comer uns mariscos. Eles comem ovos de gema mole aqui o tempo todo e nem colocam o leite na geladeira pra você beber.
Todo mundo tem que cantar uma música na sala de jantar. Esse sr. Grover acha que é um grande cantor e tentou me fazer cantar com ele na noite passada. Eu até iria, mas não gosto dele. Ele sorri pra você, mas é muito malvado sempre que tem a chance. Eu recebi os US$18 que a mãe me deu e vou provavelmente pra casa em breve, talvez sábado ou domingo. Se esse homem for para a cidade como disse, então eu posso pegar um trem. Eles me deixaram de castigo agora por não ter cantado com o sr. Grover na sala de jantar. Nenhum desses ratos pode conversar comigo. Um é um garoto bem legal do Tennessee quase da mesma idade que o Vincent. Como está o Vincent? Diga pra ele que sinto a sua falta. Pergunte se ele já leu coríntios. Coríntios está na Bíblia e é muito bom e bonito e Webtailer leu
pra mim um pouco. Nadar aqui é uma droga porque não há ondas, nem mesmo pequenas ondas. Que graça tem sem nenhuma onda e você nunca fi ca com medo ou toma um caldo? Você só nada com um colega até a balsa que eles têm. Meu colega é Charles Masters. Ele é um rato e canta na sala de jantar todas as vezes.
Ele está no time branco e é o capitão. Ele e o sr. Grover são dois dos maiores ratos que eu já conheci, também a sra. Grover. Ela tenta ser como sua mãe e sorri o tempo todo, mas ela também é malvada como
o sr. Grover. Eles trancam a caixa de pães à noite para que ninguém possa fazer sanduíches e demitiram Jim, e para tudo que você pega aqui você tem que dar 5 centavos ou 10 centavos e os pais do Robby Wilcoks não deram dinheiro algum pra ele. Eu estarei em casa em breve, provavelmente no domingo. Sinto a sua falta, Kenneth, e também de Vincent e da Phoebe. Com que cor de cabelo a Phoebe está? Deve ser vermelho, eu aposto.
Seu irmão Holden Caulfield”.