Para Carlos Nobre.

A polêmica sobre o vazamento de mensagens eletrônicas dos servidores da Universidade de East Anglia (Grã-Bretanha) – nas quais se delineou uma ocultação de erros em dados de modo a fortalecer a teoria da influência humana no aquecimento global – serviu de alento aos cientistas céticos em relação ao tema, cuja causa vinha encontrando dificuldades crescentes para conquistar novos adeptos. Mas, na avaliação de Carlos Nobre, cientista brasileiro do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), o episódio da universidade britânica está muito longe de derrubar toda a montanha de evidências a favor da hipótese das mudanças climáticas. Ele fala a seguir sobre os ataques que o órgão internacional vem sofrendo e a posição dos cientistas céticos.

Desde o segundo semestre do ano passado, o IPCC vem recebendo ataques em decorrência do suposto vazamento de e-mails e do erro em dados sobre o derretimento do gelo no Himalaia. Ao mesmo tempo, houve um inverno rigoroso na Europa. Somados, esses fatores trouxeram de volta ao debate os questionamentos sobre a existência do aquecimento global, uma discussão que já estava pratic amente encerrada. Na sua opi – nião, quais são as causas desse retorno?

Esses acontecimentos servem de impulso para os céticos porque eles não conseguem trazer nenhum fato científico novo, surpreendente, que coloque realmente em dúvida a ciência robusta e sólida do aquecimento global. Assim, se apegam a qualquer coisa – por exemplo, o inverno rigoroso no hemisfério norte – para contestar o aquecimento do planeta. Como não têm condições de debater no nível da ciência, querem jogar o debate em um nível político. Existem aí enormes interesses econômicos afetados pela mudança do paradigma da geração de energia, pela troca de todo o sistema de produção a partir do qual construímos o bem-estar moderno.

Não acho que esse ceticismo vá durar muito, pois a ciência não para de avançar. Não há uma semana em que não seja publicado pelo menos um paper da mais alta qualidade sobre o assunto nas melhores revistas científicas.

Todo esse alvoroço e os questionamentos sobre a legitimidade do órgão são mais uma jogada política de quem é contra a agenda climática. Mas essas coisas duram muito pouco, porque a força da ciência é tremenda. Os pseudocientistas que defendiam o tabaco na década de 1970, contratados a peso de ouro pelas companhias de cigarro, por exemplo, desapareceram. Isso porque a ciência explica como os fenômenos ocorrem. E tabaco, câncer e doenças cardíacas estão relacionados. Ninguém mais questiona isso. Da mesma forma, ninguém irá se lembrar dos pseudocientistas que se prestam a esse trabalho contra a ciência do clima.

 

“Os céticos se apegam a qualquer coisa – por exemplo, o inverno rigoroso no hemisfério norte – para contestar o aquecimento do planeta”

Como a crise no IPCC pode afetar a credibilidade da ciência do clima?

Quem faz avançar a ciência do clima não é o IPCC. Quem faz avançar a ciência do clima é a ciência. O IPCC só sumariza resultados. Ao fazer esse sumário, o IPCC não é infalível, como nenhuma instituição científica é infalível. Ainda este ano, inclusive, a revista Nature Geoscience retirou de circulação um paper que havia publicado. Essa publicação científica tem um dos mais rigorosos sistemas de revisões do mundo.

Por isso, repito: nenhuma instituição científica é infalível. Nenhum cientista é infalível. E o método científico tem essa característica: a ciência está sempre se autocorrigindo. É lógico que o que aconteceu com o IPCC é um alerta importante, embora o problema tenha sido relativamente pequeno. Nenhum dos erros apontados, vale destacar, chegou ao sumário enviado para os tomadores de decisão.

Por isso, creio que essa ênfase exagerada que está sendo colocada no órgão é muito mais uma questão política do que científica.

Diante de suas afirmações de que esse é um debate político e econômico, é possível apontar setores por trás dos céticos em relação às mudanças climáticas?

Antes de tudo, é preciso deixar claro que não sou especialista nesse tópico. Mas recentemente tive contato com a resenha do livro Climate Coverup: The Cruzade to Deny Global Warming (A Dissimulação do Clima: a Cruzada para Negar o Aquecimento Global), do advogado e ambientalista canadense James Hoggan, que mapeia como foi montada a estratégia do lobby antiaquecimento global. Na resenha, feita pelo economista Ladislaw Dowbor, encontramos mais ou menos o seguinte: “A articulação envolve instituições conservadoras e poderosas. Sempre empresas de petróleo, carvão e produtores de carro, muitos dos republicanos e a direita religiosa. A maioria desses movimentos [contra o aquecimento global] é originária dos EUA e mantida por esse lobby.” Vale destacar o papel preponderante da indústria do carvão. Na área do petróleo, a Exxon Mobil é uma das poucas companhias que insistem em apoiar esse tipo de pesquisa. A maioria já está mudando o foco e investindo em energias renováveis.

 

“Empresas de petróleo e carvão e produtores de carros estão, em geral, por trás do lobby antiaquecimento global nos estados unidos”

Como avalia as reportagens sobre a crise do IPCC?

A imprensa ocidental moderna é regida pelo pluralismo. Por isso, ela sempre procura dar espaço para quem tem uma visão diferente. O problema é que a dissidência acaba recebendo um peso muito grande. Foi demonstrado nos EUA que os céticos tinham um espaço na imprensa quase idêntico ao destinado aos cientistas que falavam de aquecimento global. O problema é que 0,1% dos cientistas que entendem de clima são céticos.

Isso significa que menos de 1% da ciência tinha 50% do espaço no debate sobre existência ou não das mudanças climáticas que chega ao público por meio da grande imprensa. É lógico que, dessa forma, os leitores vão ter uma ideia de que são duas teorias científicas equivalentes. Isso reflete muito mais a pluralidade da mídia, que às vezes é usada em excesso, do que necessariamente a força das teorias de vários cientistas.

Quais são as perspectivas para o IPCC, depois da polêmica a respeito do erro nos dados referentes ao derretimento de gelo no Himalaia?

Como eu já disse anteriormente, esse foi um alerta importante e o IPCC já chamou um corpo de pesquisadores independentes, que irá divulgar um relatório revisando os dados em alguns meses. E não se surpreenda: eu prevejo que outros erros serão encontrados. É inevitável. São 3 mil páginas e tudo é realizado por meio de trabalho voluntário. Eu, por exemplo, já trabalhei e trabalho em vários relatórios, e posso afirmar que existe uma pressão enorme de tempo para a conclusão. Além disso, é necessária uma lógica complexa para que tudo seja levado em consideração. É impossível não encontrar algum erro.

Assim, para evitar esse tipo de problema, acredito que o IPCC deveria contar com uma errata contínua, como os jornais apresentam todos os dia, por exemplo. Se forem apontados erros após a publicação de um relatório, o órgão deve imediatamente divulgar uma errata. Não se pode esperar cinco anos para que o relatório seguinte cubra o assunto e divulgue erros encontrados.

 

 

 

* A presente entrevista foi originariamente publicada no portal Mudanças Climáticas (www.mudancasclimaticas.andi.org.br). O site traz mais informações em torno da polêmica sobre o aquecimento global e apresenta, em linguagem acessível, uma série de textos sobre diversas facetas das alterações do clima, como sua relação com o desenvolvimento, as políticas brasileiras e as negociações internacionais, entre outros. Além disso, contém entrevistas, artigos, vídeos, publicações e um glossário sobre o tema.