Smartphones, internet, notebooks, palmtops e tecnologias sem fio anunciam: praticamente não existe lugar na Terra em que uma pessoa não possa ser alcançada pelos modernos meios de comunicação. Ficar sozinho hoje, portanto, é uma questão de escolha – e muita gente foge dessa situação como o diabo da cruz, acessando salas de bate-papo, sites de relacionamento, programas de mensagens instantâneas e tantas outras opções disponíveis. O ciberespaço nivela seus habitantes, e com isso até os tímidos podem apresentar-se sem medo de rejeição.

A vida eternamente online é, segundo a psicóloga norte-americana Ester Buchholz, autora de “The Call of Solitude” (“O Chamado da Solidão”), uma tentativa de resolver o problema do tempo a sós e das necessidades sociais. E o temor de passar algum tempo isolado ou abandonado é compreensível: para muitas pessoas, a simples ideia de ficar sozinho evoca medos profundos de infância ligados a abandono e negligência, o que acarreta consequências negativas psicológicas e até orgânicas.

Estudos conduzidos por dois psicólogos da Universidade de Chicago mostraram que os solitários desse gênero enfrentam os desafios da vida considerando-se mais desamparados e ameaçados, e estão menos aptos a procurar ajuda quando se encontram superestressados. Além disso, seu sono frequentemente sofre ligeiras interrupções que lhe diminuem a qualidade. Com isso, seu corpo tende a desgastar-se mais com a idade.

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Mas é tão ruim assim ficar sozinho? Basta pensar numa pessoa meditando, serena, em absoluto equilíbrio interior, para perceber que não. É importante distinguir, portanto, duas formas diferentes de solidão: aquela originária do vazio interior no contato com os outros e aquela necessária para um encontro com o verdadeiro self, para avaliar e regular o curso da própria vida. Uma pessoa harmonizada interiormente supera sem maiores problemas a primeira forma e anseia pela segunda.

Em 1993, o explorador norueguês Borge Ousland puxou um trenó de quase 135 quilos até o Polo Norte, numa viagem solitária de mais de 950 quilômetros em meio a blocos de gelo em movimento. Ele se comunicava com sua base por rádio apenas uma ou duas vezes por semana. Depois dos 52 dias de jornada, Ousland declarou: “Eu tinha medo de estar só; nunca havia passado mais do que uma única noite sozinho numa barraca de acampamento antes. (…) Mas ficar só provou ser uma das maiores experiências de toda a viagem.”

Caminho básico para o crescimento espiritual

Os psicólogos afirmam que os momentos de solidão são tão essenciais para a felicidade e a sobrevivência humanas quanto os períodos de convívio. É na solidão, salienta Ester Buchholz, que o inconsciente processa e soluciona problemas: “As soluções criativas da vida requerem um tempo dedicado à solidão. (…) Os outros nos inspiram, as informações nos alimentam, a prática aprimora nosso desempenho, mas precisamos de um período calmo para solucionar as coisas, chegar a novas descobertas, desenterrar respostas originais.”

Tão importante para o desenvolvimento interior, a solidão é considerada um caminho básico para o crescimento espiritual e está no íntimo da experiência religiosa. “(Ela) é, de fato, uma condição do espírito que é reconhecida, estimada e praticada por adeptos de praticamente todas as grandes religiões”, lembra o sacerdote católico e escritor norte-americano Clair McPherson.

O arcanjo Gabriel e Maomé, em ilustração do século 14: o fundador do islamismo estava sozinho numa caverna quando recebeu as páginas do “Corão”. Crédito: Wikimedia

A solidão está presente em momentos cruciais vividos por fundadores, líderes e seguidores de todas as religiões. Buda, por exemplo, encontrou a iluminação solitário, debaixo de uma figueira. Jesus passou 40 dias no deserto, preparando-se para sua missão, e com freqüência buscava locais isolados para, sozinho, rezar e ficar em contemplação. Maomé estava sozinho, numa caverna perto de Meca, quando o anjo Gabriel o encontrou e lhe transmitiu o texto sagrado dos muçulmanos, o Corão. Moisés ficou por 40 dias no Monte Sinai, sem nenhuma companhia, até receber a Torá, e o Antigo Testamento conta que os patriarcas judeus que o precederam – Abraão, Isaac, Jacó e José – também tiveram seu contato com o divino em locais isolados. Em tempos ainda mais remotos, os rishis – sábios hindus – passaram muito tempo sozinhos em cavernas e montanhas do norte da Índia antes de escreverem um dos clássicos do hinduísmo, os poemas em prosa denominados Upanishads.

Dia de descanso

Judeus e cristãos lembram que um período de recolhimento foi estabelecido por Deus no início dos tempos, ao fixar o sábado como o dia de descanso, separado dos outros. A data seria dedicada ao exame da própria vida e das escrituras. “Podemos fazer o mesmo, seja tirando um dia de descanso para nós, ou uma hora de prece silenciosa, ou mesmo alguns minutos de meditação”, afirma Ester Buchholz. “Seja num silêncio remoto, distante, ou no exato centro de uma comunidade, o eremita ou monge itinerante mora em todos nós.”

McPherson considera que os estados solitários foram a condição – ou melhor, o requisito – para a comunhão e o esclarecimento espirituais. “Nenhuma religião verdadeira foi fundada por um conselho. Todas se originaram da solidão”, assinala. O reverendo oferece uma explicação básica para isso: em todas as grandes religiões, a solidão é indispensável para a exploração espiritual do que se denomina experiência mística. “Os grandes profetas do Velho Testamento, os primitivos pais e mães cristãos do deserto, os primeiros seguidores do zen-budismo na China, os místicos judeus medievais, os sufis na tradição islâmica – todos praticavam a solidão.”

As formas dessa prática podem variar de acordo com as diversas vertentes religiosas, mas todas elas combinam num aspecto essencial, salienta McPherson: o de apresentar a solidão como o único caminho para a introspecção, a comunhão com o divino. “O tempo a sós é um grande protetor do self e do espírito humano”, observa Ester Buchholz. “Em última instância, poderíamos seguir a mensagem de todo meditador experimentado, que sugere viver cada momento como um novo momento, com maior sensibilidade para os pensamentos, os sentimentos e as sensações físicas de uma pessoa. Essa é a verdadeira mensagem do período a sós, e é através dessa profunda autoconsciência, dessa solidão interior, que nossas vidas florescerão.”

 

O QUE HÁ PARA LER

Ester Buchholz, The Call of Solitude (Simon & Schuster); Thomas Merton, Na Liberdade da Solidão (Vozes); Krishnamurti, Sobre o Amor e a Solidão (Cultrix).