A partir do século 11, a lenda de Barlaão e Josafá desfrutou de uma popularidade no Ocidente medieval talvez nunca alcançada por alguma outra lenda. Ficou disponível em mais de 60 versões nas principais línguas da Europa, do Oriente cristão e da África. Ficou mais familiar para os líderes ingleses desde a sua inclusão na tradução de William Caxton de 1483 da Lenda Dourada.

Mal sabiam os leitores europeus que a história que amavam da vida de São Josafá era de fato a de Sidarta Gautama, o Buda, o fundador do budismo.

Cenas da história de Josafá da Bíblia. Augsburg, G. Zainer, c. 1475. Crédito: Harvard Art Museums/Fogg Museum, presente de Paul J. Sachs

A vida ascética

Segundo a lenda, reinava na Índia um rei chamado Abenner, imerso nos prazeres do mundo. Quando o rei teve um filho, Josafá, um astrólogo previu que ele abandonaria o mundo. Para evitar esse desfecho, o rei ordenou que se construísse uma cidade para seu filho, da qual se excluíram a pobreza, a doença, a velhice e a morte.

Mas Josafá fez viagens fora da cidade onde encontrou, em uma ocasião, um homem cego e um terrivelmente deformado e, em outra ocasião, um velho sobrecarregado de doença. Ele percebeu a impermanência de todas as coisas:

“Não há mais doçura nesta vida transitória agora que vi essas coisas […] A morte gradual e a morte súbita estão juntas.”

Enquanto ele experimentava essa crise espiritual, o sábio Barlaão do Sri Lanka chegou a Josafá e lhe falou da rejeição das atividades mundanas e da aceitação do ideal cristão da vida ascética. O príncipe Josafá converteu-se ao cristianismo e passou a praticar o ideal da vida espiritual de pobreza, simplicidade e devoção a Deus.

Para evitar sua busca, seu pai o cercou de donzelas sedutoras que “o atormentavam com todo tipo de tentação com que procuravam despertar seus apetites”.

Josafá resistiu a todos eles.

Após a morte de seu pai, Josafá permaneceu determinado a continuar sua vida ascética e abdicou do trono. Ele viajou para o Sri Lanka em busca de Barlaão. Depois de uma busca que durou dois anos, Josafá encontrou Barlaão vivendo nas montanhas e juntou-se a ele em uma vida de ascetismo até sua morte.

Santos Barlaão e Josafá, Calendário dos Santos de Jacques Callot, século 17. Crédito: Harvard Art Museums/Fogg Museum, presente de William Gray da coleção de Francis Calley Gray, por troca

Um grande santo

Barlaão e Josafá foram incluídos nos calendários dos santos nas igrejas ocidentais e orientais. No século 10, eles foram incluídos nos calendários das Igrejas orientais e, no final do século 13, nos da Igreja católica.

No livro que conhecemos como As Viagens de Marco Polo, publicado por volta do ano 1300, Marco deu ao Ocidente seu primeiro relato da vida de Buda. Declarou que — se o Buda fosse cristão — “teria sido um grande santo […] pela vida boa e pura que levou”.

Em 1446, um astuto editor das Viagens notou a semelhança. “É como a vida de São Iosafá”, declarou.

Foi, no entanto, apenas no século 19 que o Ocidente tomou conhecimento do budismo como uma religião por direito próprio. Como resultado da edição e tradução das escrituras budistas (que datam do primeiro século a.C.) a partir da década de 1830, informações confiáveis ​​sobre a vida do fundador do budismo começaram a crescer no Ocidente.

Então o Ocidente veio a conhecer a história do jovem príncipe indiano, Gautama, cujo pai – com medo de que seu filho abandonasse o mundo –  manteve-o isolado em seu palácio. Como Josafá, Gautama acabou encontrando a velhice, a doença e a morte. E, como Josafá, ele deixou o palácio para viver uma vida ascética em busca do significado do sofrimento.

Depois de muitas provações, Gautama sentou-se sob a árvore Bodhi e finalmente atingiu a iluminação, tornando-se assim um Buda.

Somente em 1869 esse conhecimento recém-descoberto no Ocidente sobre a vida do Buda levou inevitavelmente à percepção de que, em seu disfarce de São Josafá, o Buda havia sido um santo na cristandade por cerca de 900 anos.

Bodhi, a Árvore Sagrada. Crédito: Smithsonian American Art Museum, presente da Chicago Society of Etchers

Conexões íntimas

Como a história do Buda se tornou a de Josafá? O processo foi longo e complicado. Essencialmente, a história do Buda que começou na Índia na língua sânscrita viajou para o leste até a China, depois para o oeste ao longo da Rota da Seda, onde foi influenciada pelo ascetismo da religião dos maniqueus.

Ela foi então transposta para o árabe, o grego e o latim. A partir dessas versões latinas, ela seria traduzida para várias línguas europeias.

Anos antes que o Ocidente soubesse alguma coisa sobre Buda, sua vida e o ideal ascético que simbolizava eram uma força positiva na vida espiritual dos cristãos.

Sidarta Gautama, o Buda, sentado em um trono de lótus, c. 1573-1612. Crédito: © Os curadores do Museu Britânico, CC BY-NC-SA

A lenda de Barlaão e Josafá demonstra poderosamente as conexões íntimas entre o budismo e o cristianismo em seu compromisso com a vida religiosa ascética, meditativa e mística.

Poucos santos cristãos reivindicam melhor esse título do que Buda.

Em uma época em que a espiritualidade budista de “mindfulness” está muito na agenda ocidental, precisamos estar atentos à longa e positiva história da influência do budismo no Ocidente. Através da história de Barlaão e Josafá, a espiritualidade budista desempenhou um papel significativo em nossa herança ocidental nos últimos mil anos.

* Philip C. Almond é professor emérito de História do Pensamento Religioso na Universidade de Queensland (Austrália).

** Este artigo foi republicado do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original aqui.