“Olho para os alunos do primeiro ano e sinto inveja, porque eles estão vivendo o que eu não vivi e que esperei tanto para viver. E agora no último é bom, mas é muita pressão sobre Enem e vestibulares. Minha mente só foca nisso.”

Essa é a sensação da Thayna, estudante de São Paulo, ao voltar a ter aulas presenciais em seu último ano do tão esperado ensino médio. É sobre os desafios desse retorno, para estudantes e professores, que quero focar neste texto. Acho necessário, pois tive a oportunidade de visitar mais de 20 colégios públicos de três estados do Nordeste no início do ano e, indo de sala em sala, pude notar claramente o quão desafiador 2022 está sendo para esses agentes.

Gostaria de começar ilustrando o cenário comum de uma sala de aula da rede pública neste ano. A heterogeneidade entre os estudantes aumentou significativamente em função da pandemia e destacou dois antigos grandes problemas: a dificuldade com a leitura/interpretação textual e com a matemática básica. É perceptível entre os professores: é como se não estivessem lecionando para estudantes do ano em questão, mas sim para alunos que estão com uma defasagem de dois anos. De forma simplista: É como se um estudante do terceiro ano do ensino médio estivesse no primeiro ano e um do quinto ano estivesse no terceiro do fundamental.

Obviamente há exceções, mas em quantidade não são o bastante para diluir o efeito do contexto que destaquei. Nele, o professor se depara com um grande desafio: leciono para quem? Para quem tem condição de acompanhar o conteúdo previsto ou para aqueles que estão com a base defasada de dois anos? Difícil dilema.

Pandemia agravou problemas

A maioria até tenta encontrar a política pedagógica mais democrática e trabalhar da melhor forma com os dois grupos, mas é especialmente difícil quando precisam dar aulas em várias turmas, cada uma com uma quantidade muito maior de estudantes do que seria o ideal. Além disso, sejamos honestos: nossos professores não têm a valorização e nem a remuneração que merecem, incentivos comuns e esperados para qualquer trabalhador.

Aline Ribeiro Fonseca é professora do quinto ano em Santa Catarina e sente na pele o contexto citado: “Não consigo ensinar apenas os conteúdos propostos para o 5º ano. Tenho que fazer uma miscelânea de conteúdos partindo do 1º ano até chegar aqui no 5º. As crianças chegaram até aqui com dificuldades que perpassam desde o pré-escolar. Os problemas que já existiam na pré-pandemia se agravaram no pós-pandemia. A defasagem na alfabetização e letramento da Língua Portuguesa e Matemática são para mim, os aspectos mais preocupantes.”

Segundo ela, em um cenário ideal, na quinta série os estudantes já deveriam dominar a leitura e interpretação de textos, mas não é o que ocorre: “A defasagem é muito grande. Para se alfabetizar e ser uma criança letrada, precisa de todo um processo. E esse processo foi rompido pela pandemia. Agora estamos tendo que seguir com o currículo que não sofreu alteração. Ou seja, o desenvolvimento educacional da criança sofreu alteração e o currículo não. Ele continua o mesmo. É como se tivéssemos deixado dois anos curriculares para trás e agora seguimos com os próximos. Essa situação, para mim, só irá se agravar. Lá na frente essa lacuna vai fazer falta.”

Guilherme Lima de Araújo é professor de história no estado de São Paulo e atua neste ano no ensino fundamental 2 (sexto ao nono ano) e médio. Ele está preocupado: “Quando um aluno que já está no 8º ano, ou no 2º ano do ensino médio, por exemplo, lê e escreve com dificuldade, não domina conteúdos básicos que deveria ter aprendido nos anos anteriores, é um indicativo de que alguma coisa deu muito errado.”

Dificuldades durante a pandemia

É um contexto alarmante, mas por que isso está ocorrendo? Por que esses estudantes não estudaram na pandemia? O Gustavo, estudante do Maranhão, precisava ir na porta de vizinhos para utilizar o wi-fi e fazer as atividades propostas. A limitação tecnológica é uma variável importante, mas não irei discorrer sobre, pois sinto que essa questão já foi abordada o suficiente.

Quero registrar aqui um fato importante: nem todos os alunos com recursos tecnológicos conseguiram acompanhar os dois anos de ensino remoto da forma como deveriam. Há várias razões para isso, como passividade no processo de aprendizagem, tornando a missão de manter os estudos em casa sozinhos quase impossível, a necessidade de trabalhar para ajudar na renda doméstica, a dificuldade de concentração, e a falta de estímulos por estar afastado do colégio.

Poderia citar várias outras razões, mas acho que já são o bastante para corroborar meu ponto: o período em questão não pode ser dividido de forma simplista apenas entre estudantes com internet e aparelhos eletrônicos e estudantes sem, como se os primeiros necessariamente tivessem acompanhado o período com sucesso e o segundo grupo, não.

A verdade é que, tendo estudado de forma eficiente ou não, nossos estudantes ficaram quase que exclusivamente dependentes de um computador ou aparelho celular. Esse hábito criou um vício que torna a adaptação ao presencial incrivelmente difícil e dolorosa. O professor Guilherme precisou lembrar seus alunos de que nem sempre as avaliações foram online e com consulta.

A Vitória, estudante de Pernambuco, sentiu isso na pele: “Entendi o assunto, mas na hora do teste eu não consegui fazer nada. Aí pensei ‘poxa eu só consigo se for pelo celular’.”

Essa dependência está tornando nossos estudantes mais desatentos e com dificuldade de interpretação num grau nunca visto antes. Além disso, precisamos nos lembrar que os dois anos afastados do colégio têm impacto direto nas suas habilidades interpessoais. Estão precisando reaprender a conviver com outras pessoas, fazer amizade, cumprir prazos e tarefas simples. O ar de novidade em todas essas mudanças pode ter um impacto cruel em questões psicológicas e de ansiedade.

Acompanhar ser saber ler

Para as crianças dos primeiros anos do ensino fundamental o contexto foi problemático: A maioria ainda não sabia ler. Como acompanhar os conteúdos e atividades repassadas sem saber ler? Para isso foi fundamental o apoio, suporte e atenção das famílias. No entanto, há dois fatores que podem ter impacto direto no não suporte necessário: pais que trabalham fora de casa quase o dia todo e o fato de que não é comum a cultura de estudo e proximidade com o colégio dos filhos entre as famílias – salvo exceções.

Nessa parte da discussão eu quero pedir para que você, leitor mais conservador, antes de culpar as famílias e dizer que não se importam com suas crianças saiba que para a maioria delas, de baixa renda, garantir o futuro da família já não se tratava mais de investimentos a longo prazo, conforto e lazer, mas sim de garantir a sobrevivência dos membros. De forma simplista: já não trabalhavam mais pensando em juntar dinheiro para uma viagem ou casa melhor, mas sim para conseguir que todos tivessem comida na mesa na hora da refeição. Gostaria de dizer que a educação dos filhos e conferir o caderno escolar foi uma prioridade nesse período para todas as famílias, mas a verdade é que para muitas não teve como ser.

Entendo o sentimento de seguir em frente e passar uma borracha nos problemas do passado, mas não podemos fazer isso em relação aos desencadeados e intensificados pela pandemia. É fato: há incalculáveis prejuízos educacionais. Precisamos encarar isso de frente e incorporar em todos os nossos planejamentos e políticas públicas educacionais.

Se não houver mudanças no currículo, é possível que esse choque nunca se dissipe e acompanhe nossos estudantes atuais por toda sua trajetória escolar. No contexto atual, é nada menos do que necessário que estreitamos os laços e valorizemos mais as considerações dos nossos estudantes e professores. Não podemos mais subestimar o quanto eles podem contribuir para a realidade que vivem diariamente na pele.

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Vozes da Educação é uma coluna quinzenal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do programa no Instagram em @salvaguarda1

O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.