O desperdício é insustentável

Se a Fundação SOS Mata Atlântica – a mais famosa organização brasileira voltada ao meio ambiente – tem um rosto, ele é certamente o de seu diretor de Mobilização, Mario Mantovani: a entidade foi criada em 1985 e ele entrou para seus quadros um ano depois. Geógrafo e ambientalista respeitado, Mantovani tem a seu lado um pequeno (40 pessoas) grupo que se multiplica, ao lado de diversos voluntários e parceiros, para dar conta das várias iniciativas da SOS destinadas a defender nosso mais ameaçado bioma. Mata atlântica, política ambiental e desenvolvimento sustentável estão entre os temas tratados por ele nesta conversa com PLANETA.

A Fundação SOS Mata Atlântica surgiu há 23 anos, quando esse bioma estava muito ameaçado. A mata atlântica continua na UTI?

Ela nunca deixou de estar na UTI. O que fizemos foi estancar a hemorragia. Logicamente, ela estancou não só pela SOS, mas pela participação da sociedade, a criação de entidades e a Lei da Mata Atlântica (ainda não regulamentada, mas praticamente já definida em cada Estado). Também importante nesse processo tem sido o Atlas da Evolução dos Remanescentes da Mata Atlântica, que iniciamos em 1988, mostrando em escala 1:1.000.000 (um centímetro no mapa equivalente a um milhão de cm) onde estava a tal mata atlântica. Em nossos primeiros mapas, dizíamos que perdíamos um campo de futebol de floresta a cada quatro minutos. O impacto de associar os desmatamentos a campos de futebol foi tão grande que deu à SOS muito mais personalidade. Hoje, nossos mapas chegam à escala 1:50.000 e trazem as imagens até o limite do município, permitindo um maior controle.

O que resta da mata?

Hoje dizemos 7,6% – a porcentagem que está na Lei da Mata Atlântica. Já o Ministério do Meio Ambiente diz que há 20%, mas considera área de recuperação em estágio inicial, que nós não consideramos, e ainda usa mapas em escala 1:250.000.

Fazer algo nessa área implica envolver- se com governos, o que costuma ser complicado…

Nos anos 1970, quando comecei, havia a linha do quanto pior, melhor, ou uma visão apocalíptica, tipo “tudo vai acabar”. Nos anos 1980 houve uma reação, e formaram-se milhares de organizações não-governamentais. Já nos anos 1990, a overdose da mobilização da década anterior fez as pessoas odiarem o Congresso – onde já buscávamos fazer articulações, tomando porrada de todos os lados.

Há diferentes grupos de parlamentares no Congresso. Os ruralistas, por exemplo, querem continuar a derrubar a mata; os imobiliários querem continuar a fazer seus negócios. Todos foram se apresentando e fomos aprendendo a lidar com eles. Que argumento usar? Dizer que o sujeito era um desqualificado só arranjava mais encrenca. Decidimos levar desenhos de crianças, usar faixas, ir às ruas, fazer mobilizações, pressionar o Executivo. Então, aprendemos os limites do Executivo e do Legislativo. Hoje, apoiamos uma frente parlamentar ambientalista, que conta com 308 deputados. Na época da Constituinte de 1988, eram só nove deputados…

É uma frente unida?

Ela tem todas as contradições do Congresso. Mas hoje o meio ambiente é muito bem aceito. O que a frente fez de diferente foi pôr a sociedade diante dos parlamentares para interagir sobre temas como lei de uso do solo, biodiversidade, biocombustíveis. Exemplo: um projeto de lei que define como as cidades vão crescer prevê reduzir a área de preservação permanente da cidade. Mostramos: “Isso será um desastre. As cidades estão gastando mais com assoreamento, porque o solo é mal usado”. Com a articulação feita, e mesmo pressionado pelo outro lado, o deputado conclui: “Estou errado nessa questão, vou tirar isso”. Já temos várias vitórias como essa.

Quais Estados dão menos atenção à mata atlântica?

São os do Nordeste – só há uma pequena faixa de mata lá.

Só resta 1% da quantidade

original de araucárias, e é

justamente em cima desse

número reduzido que os

madeireiros querem

continuar tirando

Dá para reconstituí-la?

Nas áreas antigas transformadas em canaviais não há nem mata ciliar. Lá, os sujeitos aterram os córregos para não ter de cobri-los com mata. Pronto, resolvido…

Vão acabar sem água…

Já estão. Era a Zona da Mata que produzia a água lá. Mas a pressão foi tão grande que eles têm problemas. Essa foi uma das grandes sacadas da SOS: relacionar a mata à produção de água.

Na Bahia, há problemas em alguns lugares, mais por causa da especulação imobiliária. Em Minas, a retirada de carvão começa a ser revertida, graças às unidades de conservação. No Espírito Santo, há uma área muito degradada que precisa ser recuperada. Mas o grande problema da mata atlântica está em Santa Catarina e no Paraná: a araucária. Só resta 1% da quantidade original dessas árvores, e é justamente em cima desse 1% que os madeireiros querem continuar tirando.

Como você avalia a saída de Marina Silva do Ministério do Meio Ambiente e sua substituição por Carlos Minc, ex-secretário de Meio Ambiente do Rio de Janeiro?

A Marina era a Amazônia e priorizou a região. Já o Minc é mais mata atlântica e tomou posse num bom momento, porque a mata atlântica também chegava a impasses, como a regulamentação da lei sobre ela.

A Marina se demitiu por causa do desgaste sofrido. Ela saiu na hora certa – antes da 9ª Conferência das Partes (COP) da Convenção sobre Diversidade Biológica, na Alemanha – e conseguiu mostrar que o governo estava perdido. Ela disse: “Fui até onde pude, é impossível trabalhar com esse governo”. A proposta do governo não é de sustentabilidade, é um salve-se quem puder, com todo mundo metendo a mão, e a Marina demonstrou isso. Ficou claro que o inimigo era uma Casa Civil irresponsável, um governo com plano desenvolvimentista orientado pelas empreiteiras, pior que o dos militares nos anos 1970.

A Marina tocou num tema delicado para esse governo: a ética. Talvez por ter sido a primeira nomeada pelo presidente, por sua história, ela conseguiu deixar a ética dentro do Ministério. O governo foi-se construindo sobre irregularidades que se acomodaram ali dentro. Para a Marina, o governo seria de sustentabilidade, mas… Todo governo é igual. A corrupção é forte, e sempre se precisa arranjar um culpado pela incompetência. No fim, tudo de ruim era creditado ao Ministério do Meio Ambiente.

Com sua saída, a Marina mostrou onde essas pressões estão acontecendo. Para o Minc, isso foi muito bom: ele sabe usar a mídia, e cada palavra sua conseguia acertar o Blairo (Maggi, governador de Mato Grosso), a Dilma (Roussef, ministra da Casa Civil). O Minc pegou o limite no qual a Marina trabalhava e o levou até onde pôde. Então, os recuos que houver nunca vão ser maiores do que o que a Marina já havia conseguido.

É um momento especial. Outra coisa: estamos num ano de eleições municipais, e daqui a dois anos esse presidente sai – espero. Isso vai mudar muito o cenário.

Nesse sentido, temos de considerar também que a questão ambiental já não é nacional, mas global. A máxima dos anos 1970 era pensar globalmente e agir localmente. Mas hoje se percebe que a minha ação, o produto que eu consumo, tem impacto global. O mundo consome quase três vezes sua capacidade de produzir, e o consumo fica concentrado em poucos. Esse é o grande desafio para a sociedade no século 21: fazer com que tudo que a natureza nos oferece seja suficiente para todos, nesta geração e nas futuras.

Na mata atlântica, só 40% dos 93% de área devastada tem atividade econômica – e de má qualidade: pasto ruim com uma cabeça de gado para cada 10 hectares. O resto está abandonado. Esse é o pior negócio: convivemos com o desperdício. Só 10% da madeira abatida na Amazônia é aproveitada. Isso é insustentável sob todos os aspectos. Usar bem e evitar esse desperdício é uma forma de não entrar na atual linha de consumo.

Hoje temos condições de fazer certificação de origem. O móvel que apresenta a certificação foi, em princípio, feito com madeira legalizada, não envolveu corrupção nem abate clandestino. Se as cadeias produtivas começarem a fazer isso, vamos reverter o atual modelo de consumo.

Da madeira abatida na Amazônia, só se aproveita 10%. Isso é insustentável. Evitar esse desperdício é uma forma de não entrar na atual linha de consumo

Há muitas empresas cujos anunciados cuidados com o meio ambiente parecem mais ação de marketing.

Antigamente eu queria denunciar isso, mas hoje acho que é um processo natural. Temos de comparar essas empresas com quem está degradando de fato. Por exemplo: brigamos muito com a Votorantim, por causa de problemas no Vale do Ribeira, mas uma empresa de papel e celulose do grupo apresentou propostas ambientais tão interessantes que marquei uma reunião para conhecê-las. A Petrobras gasta muito em propaganda de sustentabilidade, mas usa um diesel que contamina a sociedade toda. No entanto, ela investe em tecnologias fantásticas, tem gente muito boa, posturas interessantes. Ou seja: a empresa que quer fazer propaganda ambiental tem de apresentar potencial para mostrar isso – e, se não for suficiente, ela mesma vai concluir que está fazendo besteira e é melhor ficar quieta. A sofisticação da informação e as cobranças que surgem daí vão exigir esse enquadramento dela.

O que você destaca hoje na SOS Mata Atlântica?

É um movimento muito forte. Sua primeira característica: ela não tem cara de ambientalista. Ela tem empresário, gente de comunicação, ambientalista engajado, voluntário, tem de tudo. E há os projetos. O Atlas serve para a Lei da Mata Atlântica, para termos informações corretas sobre desmatamento, para gerar conhecimento, para teses, para muito mais. O trabalho de água é muito interessante. Temos projetos de educação, de trabalho com as empresas, os veículos de informação da SOS, o portal… O Clickarvore (programa de reflorestamento com espécies nativas da mata atlântica pela internet, no qual cada clique corresponde ao plantio de uma árvore, custeado por empresas patrocinadoras e pela sociedade civil), por exemplo, foi uma realização fantástica. Conquistamos essa capacidade de produzir a partir de itens da sociedade – cartão de crédito, título de capitalização – e transformá-los em ações ambientais que beneficiam comunidades…

Quantos sócios ela tem?

Quase 200 mil, que pagam a taxa de anuidade do cartão de crédito Bradesco Visa SOS Mata Atlântica. Voltando ao Clickarvore, é preciso falar da restauração. Estudamos se o plantio feito tem qualidade, se há regeneração natural ou induzida. Há o espaçamento, as espécies, a forma de produção no viveiro… Esse conhecimento depois é disseminado nas ações da SOS.

Há exemplos de sucesso?

São muitos, a maior parte no Estado de São Paulo, por motivos como a facilidade de acesso e a parceria com certos viveiros.

A SOS é pioneira na restauração – já são 12 anos plantando árvores para proteger a mata ciliar e tudo o mais. Hoje existem instituições que falam disso incluindo a neutralização de carbono, mas essa última parte não é problema nosso. A empresa quer, digamos, plantar 12 mil árvores: a SOS vai plantá-las da melhor forma possível para trazer água para São Paulo, estimular a educação ambiental, mobilizar a sociedade, desenvolver tecnologia verde… É esse processo que conseguimos disparar.

PARA SABER MAIS

Site: www.sosmatatlantica.org.br