Filha de pai italiano e neta de avós portugueses por parte de mãe, nada mais natural do que frequentar um colégio católico apostólico romano, onde o estudo de religião é uma disciplina obrigatória, com direito a provas, notas e inclusive reprovação. Ainda menina, tive de aprender todos aqueles fundamentos e princípios que norteiam o catolicismo – os mandamentos, os pecados originais e capitais, o significado do batismo, da crisma, da quaresma… Mas, entre todas as coisas que as irmãs me ensinaram, algo nunca ficou claro para mim: o Espírito Santo.

Figura decisiva nas religiões monoteístas, o Espírito Santo tem gerado discórdias entre os cristãos. Para os católicos, ele é uma manifestação de Deus e a terceira pessoa da Santíssima Trindade. Já os gnósticos o identificam com Sofia, o divino feminino, que seria a mãe celestial de todas as coisas vivas, incluindo a humanidade.

“Pai, Filho e Espírito Santo constituem uma Trindade, um só ser”, explicavam as freiras. E eu, com meus botões, ficava pensando: três em um? Como é que isso pode ser? Ainda na adolescência, mais cética e bem mais rebelde, eu não podia ver um padre que já ia disparando um montão de perguntas, na tentativa de compreender aquele mistério. Confesso que até hoje não entendo bem essa parte do cristianismo. Mas também sei que não estou sozinha nesse barco. Afinal, quem sabe explicar corretamente quem ou o que é o Espírito Santo?

Movida pela curiosidade, no decorrer dos anos fui recolhendo mais informações sobre o assunto e agora vou compartilhar um pouco do que aprendi. Vamos lá: todos os cristãos sabem que o Espírito Santo é um elemento da Santíssima Trindade. Mas, como tal, é o que mais escapa à maioria das tentativas de representação. Ao contrário de Jesus, ele não tem forma humana. Ao longo dos séculos, tem sido representado por uma pomba, uma língua de fogo, uma luz penetrante emitida através das nuvens. E, embora não haja um consenso sobre a sua natureza, uma coisa é certa: ele é uma figura decisiva nas religiões monoteístas.

“Para os cristãos, ele é a terceira pessoa da Trindade, feita da mesma substância do Pai e do Filho. Juntos, os três são Deus, mas entre eles se relacionam de uma maneira diferente. Também ao Espírito Santo são atribuídas ações específicas”, explica Manuel Mira, docente da Pontifícia Universidade de Santa Cruz de Roma (Itália), onde leciona patrística – a filosofia cristã dos primeiros sete séculos, elaborada pelos pais apostólicos da Igreja.

Trindade significa que Deus é um ser único (uno em essência e indivisível, afirma a doutrina), mas em suas atribuições distinguem-se três entidades com funções específicas. O Pai é o Deus do pacto com Abraão e do Antigo Testamento. O Filho, Jesus, é o verbo que se fez carne para salvar a humanidade. O Espírito Santo é uma outra manifestação de Deus, o Deus que está em permanente coligação com os homens para inspirá-los e confortá-los.

 

Espírito da discórdia

Tudo claro? Nem tudo. O enigma de Deus Trino não pode ser compreendido dentro de uma lógica e do pensamento racional, mas apenas pela crença (a fé, como se sabe, dispensa explicações). Porém, mesmo entre aqueles que aceitam os dogmas da Igreja como verdades absolutas, a Trindade tem sido motivo de muitas discórdias, algumas das quais levaram a sérias rupturas entre os cristãos. A Igreja Oriental Ortodoxa (grega, russa, síria e da Alexandria, no Egito), por exemplo, crê que o Espírito Santo procede de uma só fonte, o Pai. Para os católicos, ao contrário, procede do Pai e do Filho.

Essa divergência entre as duas Igrejas tem origem em um conflito interno ocorrido no ano de 1054, quando o papa Leão 9º enviou a Constantinopla uma delegação integrada pelo cardeal Humberto da Silva Cândida, Frederico de Lorena (chanceler da Igreja Romana e futuro papa Estevão 9) e Pedro de Amalfi. O objetivo da viagem era solucionar as diferenças quanto à doutrina e à ordem política entre a Igreja Católica do Ocidente (latina, com sede no Império Romano, em Roma) e a do Oriente (bizantina, no Império Romano do Oriente, sediada em Constantinopla, antiga Bizâncio e atual Istambul).

EM MILÃO, MUITOS ACREDITAVAM QUE UMA DEVOTA FOSSE A PRIMEIRA ENCARNAÇÃO DO ESPÍRITO SANTO

 

Ao chegarem a Constantinopla, demonstrando ter poderes superiores aos do patriarca da cidade, Michele Cerulário, os três não foram recebidos por ele. Então, em 16 de julho de 1054, o cardeal Humberto emitiu uma carta excomungando o patriarca e os seus seguidores. Por sua vez, Cerulário respondeu à mesma altura. Assim, condenaram- se mutuamente, um ao outro, causando a ruptura entre as duas correntes religiosas. Suas excomunhões apenas foram arquivadas depois de mais de um milênio, no encontro entre o papa Paulo 6º e o patriarca Athenagoras 1º, realizado em 1965, em Jerusalém (Israel).

Quanto ao Espírito Santo, uma das grandes polêmicas entre as duas igrejas é relativa ao Filioque (em latim, filioque significa filho). A expressão latina foi acrescentada pela Igreja Católica romana ao “Credo” para explicitar que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho. Já a Igreja Ortodoxa entende que o Espírito Santo procede apenas do Pai. Mas, antes dessa divergência, já existiam muitas outras controvérsias sobre o assunto, especialmente quanto à sexualidade do santo espírito.

Os gnósticos (grupos de cristãos sem hierarquia eclesiástica, ativos até o fim do século 7) identificavam o Espírito Santo com Sofia, o divino feminino, que seria a mãe celestial de todas as coisas vivas, incluindo a humanidade, conforme narra o mito. No século 12, o filósofo Joaquim de Fiore (1132-1202) lançou a hipótese de que, depois da era do Pai (antes de Cristo) e do Filho (até o final da Idade Média), entraríamos na era do Espírito Santo. E, na Milão (Itália) do século 13, uma devota chamada Guglielma reuniu uma legião de fiéis ao seu redor. O motivo? Muitos acreditavam que ela fosse a primeira encarnação do Espírito Santo como mulher.

O Espírito Santo é mencionado pela primeira vez na Bíblia na fase da criação. “A Terra era sem forma e vazia e havia trevas sobre a face do abismo e o espírito de Deus se movia sobre a face das águas.” (Gênesis, 1, 1-2). Era indicado com a palavra hebraíca ruah ou ruwach (espírito, sopro, vento, inspiração, um substantivo feminino) e com a grega pneuma (espírito, de pneo: respirar, soprar, sem gênero gramatical). No Cântico dos Cânticos (integra os livros poéticos do Antigo Testamento), o Espírito Santo é, gramaticalmente, feminino. Na realidade, o Espírito Santo é traduzido para o masculino apenas em línguas como o latim e o inglês.

“Era o vento, a tempestade e o sopro de vida da parte mais intangível das pessoas e de outros seres viventes”, explica Jean Louis Ska, docente de exegese bíblica no Instituto Pontifício de Roma. “Era o sopro da natureza de Deus. Diante disso, o Espírito Santo se transforma numa entidade divina na Trindade cristã.” Na história bíblica, foi o Espírito Santo, como sopro divino, que deu a vida ao primeiro homem. Também foi ele quem abrandou o Dilúvio, quando “Deus se lembrou de Noé, das feras, do gado e de todos os animais domésticos que estavam com ele na arca. Deus fez passar um vento sobre a terra, e as águas começaram a diminuir.” (Gênesis, 8:1).

“Os antigos hebreus consideravam Jeová (Yahweh ou Javé) um Deus inacessível. Para se comunicar com os homens, ele recorria ao seu espírito. E, como tal, aparecia aos profetas”, diz Mauro Pesce, docente de história do cristianismo antigo na Universidade de Bolonha, na Itália. “Depois, quando Jesus e os discípulos formaram seu movimento, não escreveram nada, não havia um único texto cristão de referência (os evangelhos foram escritos somente depois da morte de Cristo). Os primeiros cristãos invocavam o Espírito Santo, que revelava a vontade de Deus, inspirando suas escolhas.”

 

A Igreja Ortodoxa crê que o Espírito Santo procede de uma só fonte, o Pai. Para os católicos, ao contrário, procede do Pai e do Filho. Essa divergência entre as duas Igrejas tem origem em um conflito interno ocorrido em 1054, quando o papa Leão 9º enviou representantes para Constantinopla a fim de solucionar as diferenças quanto à doutrina e à ordem política entre a Igreja Católica do Ocidente e a do Oriente. A tentativa foi um fracasso.

Jejum e êxtase

No livro O Homem Jesus (L’uomo Gesu, Editora Mondadori, em italiano), de Mauro Pesce e Adriana Destro, é descrita a função das pregações de Jesus e de seus discípulos. Em toda a jornada deles, a contemplação e o jejum eram constantes, levando ao êxtase. Desse modo, preparavam sua mente para receber o Espírito Santo, em um diálogo místico. A mesma prática foi adotada por São Paulo, divulgador do cristianismo entre os não hebreus. Ele dizia ter recebido o comunicado de fé no Espírito Santo, a quem dedicou boa parte da “Carta aos Gálatas”, um dos escritos fundamentais do Novo Testamento.

“Podemos afirmar”, diz Pesce, “que, se o judaísmo era a religião do Antigo Testamento, o cristianismo é a do Espírito Santo. Nos evangelhos são atribuídos a ele tarefas decisivas, como na anunciação da concepção de Jesus e em seu batismo, quando o Espírito desce até Cristo em forma de pomba: a energia divina que possibilita os milagres. Também foi o Espírito Santo que conduziu Jesus em suas experiências no deserto, durante as tentações de Satanás (Lucas 4:1-13), e em sua morte na cruz: “E Jesus, clamando outra vez com grande voz, entregou o espírito.” (Mateus 27:50-53).

GUGLIELMA VIVEU NO SÉCULO 13 E ERA VENERADA COMO A ENCARNAÇÃO DO ESPÍRITO SANTO, E ATÉ MESMO COMO O LADO FEMININO DE JESUS

Jesus havia prometido aos seus discípulos que, depois de sua morte, enviaria um consolador: no livro Atos dos Apóstolos (2:1-11) do Novo Testamento é descrita a descida do Espírito Santo, sob a forma de língua de fogo, a Maria e aos discípulos de Jesus no dia de Pentecostes. Também no Evangelho de João, no capítulo 20, Cristo ressuscitado aparece aos seus discípulos e lhes diz: “Recebei o Espírito Santo” e de sua boca sopra o espírito. “O Evangelho de João”, explica Pesce, “foi o texto de referência para uma comunidade iniciática que, com a prática do êxtase, acreditava entrar em contato com o Espírito Santo”.

Nos evangelhos apócrifos dos judeus e dos nazarenos, os textos considerados como válidos por padres da Igreja como Orígenes trazem uma surpreendente afirmação de Jesus: “Minha mãe agora, o Espírito Santo, me pegou pelos cabelos e levou-me para o alto no Monte Tabor.” Graças a textos como esse, o Espírito Santo, identificado com a mãe de Jesus e em seguida ao feminino, foi um personagem fundamental da gnose, doutrina difusa entre os primeiros cristãos, sobretudo no Egito e na Síria, que se perdeu com o tempo e com as perseguições.

“A visão da Trindade foi formada entre o ano 320 e 360”, diz Manuel Mira. “Ela se deve aos pais da Igreja, como Atanásio e Basílio. Este último escreveu o De Spiritu Sancto, referindose às antigas crenças da Igreja, incluindo a glorificação simétrica “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo”. Essa tese contrariava a visão cristológica sustentada pelo arianismo, uma doutrina cujo líder era Ário, bispo de Alexandria nos primeiros tempos da Igreja primitiva. Os arianos não reconheciam a natureza divina de Cristo, apenas acreditavam que ele era um ser perfeito, criado por Deus.

Para os seguidores da doutrina, especialmente para aqueles mais intransigentes, Jesus não existia na eternidade. Ao contrário, como homem, havia nascido, vivido e morrido em um determinado lugar e período da história. O mesmo acontecia com o Espírito Santo, entidade que passou a ser cultuada a partir de um certo momento histórico. Por esses posicionamentos, o arianismo foi julgado e condenado pelos integrantes do Primeiro Concílio de Niceia, realizado no ano de 325, passando a ser considerado oficialmente uma heresia.

 

O Islã e os muçulmanos

São Gregório e depois Santo Agostinho reforçaram o dogma da Trindade, sustentando que as três pessoas – Pai, Filho e Espírito Santo – sempre existiram, não tendo surgido em um determinado tempo da civilização. Para Santo Agostinho, o Espírito Santo representava também o amor incondicional e imortal entre o Pai e o Filho. No Concílio de Toledo (589 d.C.) finalmente o dogma foi definitivamente selado.

“Também para os muçulmanos”, conta Iunius Di Stefano, porta-voz da comunidade religiosa islâmica italiana, “o Espírito Santo é importante. Foi ele quem permitiu que Maria concebesse Jesus mesmo sendo virgem. Por meio do arcanjo Gabriel, levou a palavra de Deus a Maomé, palavra que está contida no Alcorão. Mas, ao contrário dos católicos, nós acreditamos que o Espírito Santo procede diretamente de Deus. Portanto, é o espírito de Deus, o único”.

Deus uno, Deus trino… Hummm! Devo confessar que, apesar de minha busca para descobrir – e principalmente entender – quem é o Espírito Santo, ainda não consegui desvendar esse mistério. Contudo, devo admitir que pelo menos aprendi muito sobre a Igreja, os seus conflitos e, é claro, sobre o santo espírito (ou será que é santa?)

O nome da rosa

Era uma devota leiga, amiga dos monges da Abadia de Chiaravalle, perto de Milão, Itália. Chamava-se Guglielma e foi o centro da maior heresia cometida pelo cristianismo contra as mulheres. Viveu no século 13 e era venerada como a encarnação do Espírito Santo, e até mesmo como o lado feminino de Jesus. Como tal, passou sua vida anunciando uma nova salvação. Guglielma morreu em 1281, aos 60 anos de idade. Durante o tempo em que viveu, ela reuniu uma multidão de crentes ao seu redor para escutar suas palavras. Mas é óbvio que, em plena época da Inquisição, esse fato não passaria despercebido pelos inquisidores: todos os seguidores de Guglielma foram acusados de hereges pela Igreja Católica e queimados vivos na Praça Vetra de Milão, ao término de um processo iniciado em julho de 1300. Na época, nem mesmo o fato de Guglielma ter falecido havia 19 anos impediu que o inquisidor Guido da Cocconato ordenasse que seu corpo fosse desenterrado da Abadia de Chiaravalle, para ser queimado em fogueira na praça com os seus discípulos.

O motivo desse insano gesto do inquisidor, contudo, vai bem além das simplórias pregações de Guglielma. Ela, por ser encarnação do Espírito Santo, iria subir ao céu, no Pentecostes de 1300, na presença de seus discípulos para elevar as mulheres e instaurar uma nova Igreja com hierarquia feminina. Tanto é que, ainda em vida, ela havia designado uma discípula, Maifreda, como vigária. Maifreda, na espera de ser eleita papisa, pregava, exercitava poderes sacerdotais, solicitando de seus seguidores gestos de obséquio usualmente reservados ao papa.

Após a morte de Guglielma, Maifreda e Andrea Saramita tornaram-se os líderes do movimento. Eles sustentavam que, com o auxílio do Espírito Santo, os homens poderiam encontrar Deus dentro de si mesmos, sem terem de recorrer às hierarquias eclesiásticas. Pensem bem: se o número de seguidores de Guglielma que acreditassem nessa premissa aumentasse vertiginosamente, como é que a instituição Igreja iria sobreviver, não é mesmo? Daí as mortes de todos os integrantes do movimento na fogueira da Inquisição.

Também fica evidente nessa história de heresias, que se concluiu em 1302 com a condenação à fogueira não somente dos discípulos, mas até do próprio corpo de Guglielma, o anseio pela edificação de uma Igreja no feminino. Bom, mas esse é um assunto para outra hora. Voltando à condenação e morte de Guglielma, seus seguidores continuaram (e ainda hoje isso ocorre) a idolatrá-la como uma santa em Milão.

 

Texto: fabiola@planetanaweb.com.br