No centenário de seu nascimento, Arthur Bispo do Rosário (1911- 1989) é amplamente reconhecido como grande artista e ganha a maior retrospectiva de sua obra, com exibições no Rio de Janeiro, na Espanha, na Bienal de Arte Contemporânea de Lyon, na França, e na Bélgica. Em 2012, Bispo será destaque da 30ª Bienal de São Paulo e ganhará um museu novo no Rio.

A comoção em torno da vida deste artista sergipano cresce à medida que se investiga seu misterioso processo criativo em luta contra a esquizofrenia. Sua obra é um campo livre para a imaginação que intriga artistas, filósofos e psicanalistas. Mas, para o psiquiatra Ricardo Aquino, diretor do Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea, no Rio de Janeiro, ele não se tornou artista: era artista.

À esquerda, ruínas da fazenda de café nos arredores do Instituto Municipal de Assistência à Saúde (antiga Colônia Juliano Moreira), em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, que hospedará o futuro Museu do Bispo.

Cada vez mais Arthur Bispo do Rosário é reconhecido como mestre criador.

Por que, então, a insistência de rotular suas obras como arte do inconsciente? “Porque é mais fácil identificar sua genialidade como fruto de surtos do que explicar a beleza de seus trabalhos sob estado de loucura”, explica Wilson Lázaro, curador do museu situado na antiga Colônia Juliano Moreira, hoje Instituto Municipal de Assistência à Saúde, no bairro carioca de Jacarepaguá.

Bispo é um artista surpreendentemente moderno não apenas pelo estilo, mas pela consciência. Em sua trajetória de 50 anos de internação, construiu um universo singular.

De Japaratuba a Jacarepaguá

Nascido em Japaratuba, no Vale de Cotinguiba, a 55 quilômetros de Aracaju, Bispo era filho de ex-escravos. Sem parentes e sem profissão, chegou ao Rio por volta de 1925, ingressou na Escola de Aprendizes da Marinha e tornou-se pugilista, chegando a ser campeão de boxe brasileiro na categoria peso leve. Em 1933 foi excluído da corporação por indisciplina.

Pouco se sabe de sua vida até o dia 22 de dezembro de 1938, quando sofreu um surto psicótico. Nesse dia, disse ter visto sete anjos azuis que desceram do céu e lhe atribuíram a missão de recriar o universo para apresentá-lo a Deus no dia do Juízo Final.

Alienado, perambulou pela cidade até ser conduzido ao Hospital Nacional, onde o diagnosticaram como esquizofrênico paranoide, sendo então encaminhado para a Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá. “EU VIM 22 12 1938 MEIA NOITE”, bordou em um fardão azul-escuro, consciente do dia em que nasceu para uma obra maior do que a vida.

Nos primeiros 20 anos ainda alternou temporadas na instituição com períodos fora dela, sendo a mais duradoura em uma clínica em Botafogo onde, isolado em um quartinho no sótão, produziu boa parte de sua obra. Em 1964, a bordo de dois caminhões de mudança que transportavam os seus trabalhos, retornou à Colônia Juliano Moreira para nunca mais sair.

Acima, o Manto da apresentação tecido para o dia do acerto de contas com Deus, no Juízo Final. Em todos os seus objetos o artista imprimiu uma marca estética inconfundível. À direita do Manto, as faixas para a Miss Brasil e a Miss Paquistão.

Deus e os doentes

Bispo não fazia trabalhos, cumpria

uma missão. Ao morrer em 1989, tinha realizado 806 obras, 804 das quais estão no museu. Jamais se desfazia das peças. Andavam juntos, entrelaçados, sem possibilidade de separação. Muitas delas estão enumeradas, em uma espécie de código que determina serem únicas e ao mesmo tempo pertencerem a um conjunto.

“O criador não está preocupado em vender”, disse certa vez. Para compor seu universo peculiar, Bispo utilizava materiais do cotidiano, em sua maioria novos, que obtinha por meio de pedidos – dizem que era muito sedutor – , e de doações de visitantes de outros pacientes.

A matéria-prima favorita era o fio azul que conseguia ao desfiar seu uniforme e o de outros internos. Com ela criou os famosos bordados sivamente para o dia do acerto de contas com Deus. Sem contar brinquedos, barcos, veículos, carrosséis e faixas de miss.

À esquerda, a romântica cama Romeu e Julieta. Abaixo, a estátua do artista em sua cidade natal, Japaratuba, em Sergipe, erguida na praça principal. A placa aos pés diz: “Pise forte neste chão: Arthur Bispo do Rosário está de volta.” A obra de Bispo confirma a frase famosa de Carl Gustav Jung: “Estar louco é uma questão extremamente relativa.”

“Ele criava esses objetos tendo como preocupação a estética. Utilizou a escrita nas obras como elemento pulsante. Ao recorrer a essa linguagem manipulou signos e brincou com a construção de discursos, fragmentando a comunicação em códigos privados. Trata-se de um gênio sem precedentes na história da arte nacional”, diz o respeitado crítico de arte Paulo Herkenhoff.

Na Juliano Moreira, Bispo não seguia terapia ocupacional nem tomava medicamentos. Seu prontuário, desde 1938, está praticamente em branco, pois se recusava a falar com os médicos. Em uma das folhas, o analista anotou que, ao justificar seu silêncio, o artista se explicou: “Eu sou Deus, não falo com doente.”

“Para ele, Deus é o termo que designa criador”, explica Wilson Lázaro. Para os médicos era um doente irrecuperável, uma mente desorganizada. No entanto, passava todas as manhãs na biblioteca da instituição, absorto nos dois únicos livros ali existentes: um dicionário da língua portuguesa e um atlas universal. Sua mente costurou também o conteúdo desses dois volumes.

“É mais fácil identificar sua genialidade como fruto de surtos do que explicar a beleza de seus trabalhos sob estado de loucura.”

Wilson Lázaro, curador do Museu do Bispo.

Na Colônia, tinha um espaço para criar. Seu quarto era mais do que um ateliê, um refúgio. “Ele sabia quando ia surtar e, nesse período, se isolava”, conta Lázaro. Daquele ponto em diante seu bem-estar se ancorava no movimento da agulha. Produzia cor e forma, prendendo ali sua obra e configurando o próprio universo.

A inserção da obra de Bispo no cenário artístico aconteceu no início da década de 1980, graças à sensibilidade do cineasta Hugo Denizart. Ao ser convidado para dirigir um documentário sobre a Colônia, Denizart “descobriu” o artista e apaixonou-se pelo seu trabalho. Sua primeira exposição ocorreu no Museu de Arte Moderna do Rio, sobre a curadoria do crítico de arte Frederico de Morais.

Nos seus bordados, estandartes e túnicas, bispo mistura materiais, linguagens e imagens como um artista contemporâneo. Ao lado, a obra intitulada partida de xadrez. Embaixo, Carrossel.

Vaidoso, o artista vaticinou que seria famoso e as pessoas iriam falar dele. Mostrou ter clarões de lucidez quando trabalhou com o fotógrafo Walter Firmo, inventariando sua obra. “Rapaz, essa foto não tem nada a ver com meu trabalho, é melhor fazer desse jeito”, dizia. Ou então: “Posicione a luz aqui. Assim será criado um mistério a mais sobre a peça.”

Hoje, o trabalho de Bispo é descrito como arte conceitual. Mas o que ele mesmo pensava sobre sua obra continua um mistério.

Para saber mais:

● Arthur Bispo do Rosário – Século 20. Wilson Lázaro. Editora Cosac&Naify, 2006.

● Arte e Loucura:Arthur Bispo do Rosário. Jorge Anthonio e Silva. Rocco, 2003

● Arthur Bispo do Rosário: Prisioneiro da Passagem. documentário de Hugo Denizart, 1982.

● O Senhor do Labirinto. Filme longa-metragem dirigido por Geraldo Motta (a ser lançado)

Agradecimentos:

● Gol Linhas Aéreas Inteligente

● Hotel Marina All Suites