Seja por curiosidade, por desejo de crescimento pessoal e econômico ou por reais necessidades de sobrevivência, o ser humano se desloca pelo planeta desde o início da sua existência e nunca deixará de fazê-lo. Em 2017, de uma população mundial estimada em 7,6 bilhões de habitantes, 258 milhões de pessoas moram em um país diferente do qual nasceram, de acordo com o Relatório de Migrações Internacionais da ONU. Isso quer dizer que de cada 100 seres humanos, pelo menos três (mais exatamente, 3,4) vivem fora da sua terra natal – em 2000, essa taxa era de 2,7.

Dentro desses 258 milhões, cerca de 10% são refugiados, aqueles que fugiram para preservar a própria vida, por sofrer com conflitos armados, perseguições e violência dos direitos humanos nos seus países de origem – diferentemente dos migrantes, que optaram por sair. Mudanças internacionais voluntárias ou não costumam envolver um longo processo de adaptação e esbarram nas resistências pessoais dos migrantes e do povo anfitrião, assim como dos seus governos.

Venezuelanos prestes a sair de Roraima rumo a outras partes do Brasil (Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil)

Os contínuos movimentos migratórios internacionais têm atraído mais a atenção do mundo desde 2015, quando mais de 1 milhão de pessoas chegaram à Europa, vindos principalmente de áreas conflagradas do Oriente Médio. Atualmente, o destaque é a caravana de centro-americanos que caminhou cerca de 5 mil quilômetros para deixar a região de maior índice de assassinatos do mundo (excluídas as zonas de guerra), o chamado “Triângulo Norte” – Guatemala, El Salvador e Honduras –, rumo ao sonho de entrar nos Estados Unidos. Ela se encontra barrada na fronteira México-EUA por portões, muros, arames, policiais, e, principalmente, pela postura anti-imigração do atual presidente americano, Donald Trump – um descendente de alemães e escoceses, casado com uma eslovena e ex-marido de uma tcheca.

Mais ao sul, a escassez de alimentos, custos de vida exorbitantes, alta criminalidade e perseguição a opositores do regime geradas pelo regime de Nicolás Maduro fizeram com que mais de 3 milhões de venezuelanos deixassem o país. Enquanto a Colômbia acolheu um terço deles, e até o Panamá recebeu cerca de 100 mil, até novembro, no Brasil, a recepção inicial aos venezuelanos não foi das melhores. Calcula-se que nesse mesmo período tenham chegado aqui em torno de 85 mil venezuelanos, dos quais 65 mil pediram refúgio.

Novas perspectivas

O despreparo dos governos de todas as esferas frente à crise há tempos anunciada e a pressão sobre os serviços básicos geraram resistência de parte da população local, protestos e até ataques aos venezuelanos, principalmente em Pacaraima, Roraima, posto da fronteira brasileira com a Venezuela. Mas o processo de “interiorização” dos recém-chegados já vai abrindo perspectivas melhores para todos.

Migrantes do Oriente Médio deixam a Hungria, em 2015 (Foto: iStock)

Embora se trate do maior território da América do Sul e da maior economia da região, o Brasil não abriga muitos estrangeiros hoje. Segundo dados da Polícia Federal, a população de imigrantes – voluntários ou não – é de 750 mil, o que não representa nem 0,5% do total do país, enquanto a média mundial é de 3%. Em 1920, entretanto, 5,1% dos residentes no Brasil eram pessoas de outras origens. Já os brasileiros que decidiram sair do país somam o quádruplo dos estrangeiros recebidos: mais de 3 milhões, de acordo com dados do Ministério das Relações Exteriores.

“A meu ver, uma coisa positiva desse drama é que enfim o Brasil desperta para essa temática. Apesar de termos uma história supercosmopolita, atualmente preci­samos nos abrir mais para o internacional, procurar entender essas pessoas, aprender com elas”, afirma Monique Sochaczewski, coordenadora acadêmica e de projetos no Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), ligada pessoal e profissionalmente ao tema de migrações.

Migrante da Guatemala em colheita de tomates na Flórida (Foto: iStock)

Apesar de todos os muros, cercas e leis levantados por países para evitar a entrada de quem é de fora, a contribuição dos estrangeiros sempre foi um dos principais motores de evolução da própria espécie. Embora os ânimos exaltados dos que querem se proteger do diferente – muitas vezes considerado “invasor” – não lhes permitam perceber, os impactos dos estrangeiros são benéficos na economia, na sociedade e no conhecimento, principalmente, no médio e no longo prazos. Confira!

Desenvolvimento econômico

Vários estudos respeitáveis mostram que imigrantes e refugiados representam vantagem econômica, principalmente quando bem acolhidos, para os países em que se instalam e também para seus países de origem.

Para começar, apesar de serem 3% da população mundial, os imigrantes foram responsáveis por 10% do PIB global em 2015, de acordo com estudo do McKinsey Global Institute (MGI), instituto de pesquisas ligado à consultoria McKinsey, mas independente de seus clientes. A pesquisa mostra que o PIB mundial foi US$ 3 bilhões maior do que se essas pessoas não tivessem se mudado. Já as remessas enviadas em 2015 aos países de origem alcançaram US$ 580 bilhões, cerca de 10% da produção total.

“Os migrantes de todos os níveis de habilidade contribuem positivamente para a economia, seja via inovação, empreendedorismo ou liberação de nativos para trabalhos de maior valor”, informa trecho do estudo do MGI.

Migrantes italianos em Alfredo Chaves (ES): fluxo iniciado em 1877 (Foto: Divulgação)

Do ponto de vista do mercado de trabalho, embora se pense que a chegada de internacionais só aumente a competição e derrube os salários, para cada emprego que eles “tomam” cria-se 1,2 posto de trabalho, segundo estudo publicado também em 2015 pelo Escritório Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos (NBER, na sigla em inglês). Afinal, os imigrantes também são consumidores e aumentam a demanda por garçons, vendedores, professores, etc.

Além disso, eles amenizam os efeitos do progressivo envelhecimento da população, principalmente, em países desenvolvidos. E mais: os imigrantes também pagam impostos – às vezes mais que os locais –, principalmente se estiverem devidamente documentados.

Para que esses benefícios sejam colhidos, claro, é fundamental dar oportunidade de autossustentabilidade aos estrangeiros. “As pessoas precisam ter condições de se integrar economicamente ao novo território, e isso só se dá por meio do trabalho”, afirma Luiz Fernando Godinho, porta-voz no Brasil para o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur). Ele reforça que oferecer refúgio não é “deixar ficar”, não tem caráter assistencialista. “É um caráter humanitário, emergencial e que visa à integração das pessoas no país onde se encontram.”

Segurança nacional

Por trás do discurso de garantir a “soberania nacional”, governantes – sobretudo de direita – acabam disseminando uma aversão ao estrangeiro em seu território, por associá-lo a ameaças e crimes de todo tipo, inclusive ao terrorismo. Os únicos que saem ganhando são tais líderes, que conseguem concentrar mais poder e manipular as massas por meio do medo. Perde a população local, que se fecha em si e deixa de aprender com quem vem de fora.

No Brasil, especialmente, essa preocupação é infundada. A imigração não tem impacto expressivo na segurança pública do país. “Os refugiados e os estrangeiros não constituem uma população de grande nota no sistema de justiça criminal brasileiro. Não são uma população carcerária expressiva nem clientes preferenciais do sistema”, afirma Rafael Alcadipani, professor da Escola de Administração da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “O Brasil não precisa importar criminoso, já tem o suficiente aqui”, alfineta.

Migrante africano em laboratório de informática na Alemanha: o bom acolhimento é fundamental para a inserção na sociedade (Foto: iStock)

Alcadipani destaca que a grande questão da segurança sempre é a população em condições mais frágeis. “Quanto mais vulnerável se está, mais relacionado ao crime”, lembra. Por isso, um efetivo acolhimento aos internacionais, com oportunidade de integração social e econômica, é sempre a melhor política.

A legislação brasileira recentemente se atua­lizou para corrigir uma visão distorcida do estrangeiro como ameaça em potencial, com origens nos tempos da ditadura militar. O Estatuto do Estrangeiro foi substituído, em 2017, pela Lei de Migração, de postura vanguardista, respondendo a uma dívida histórica com os imigrantes, segundo juristas.

Mais voltada aos direitos humanos, a nova lei concede mais direitos aos imigrantes, desburocratiza a renovação de visto e descriminaliza aqueles em situação irregular, que já não vão mais presos por isso. O que não quer dizer que está tudo liberado. Afinal, o controle migratório continua sendo realizado pela Polícia Federal e o imigrante sem documentação ou visto ainda pode ser multado.

Identidade cultural

É inquestionável que os estrangeiros oferecem outra perspectiva para as peculiaridades locais e levam consigo habilidades, ideias e conhecimentos novos. O fascínio pelas pedras preciosas brasileiras, por exemplo, nasceu do olhar do alemão Hans Stern, que chegou ao país fugido da guerra. Ele não só descobriu o potencial de muitas variedades como criou uma classificação das gemas e ainda promoveu a beleza e o valor delas pelo planeta afora por meio da H. Stern, que hoje é a maior rede de joalherias do Brasil e uma das cinco maiores do mundo, presente em 30 países.

“Eu sempre brinco que a maior briga entre árabes e judeus em São Paulo é qual é o melhor hospital – o Albert Einstein ou o Sírio Libanês”, diz Monique, do Cebri. No Rio de Janeiro ela gosta de destacar, entre muitas outras, a história da Livraria Da Vinci, fundada por uma refugiada romena, que antes da internet era o lugar onde os intelectuais tinham acesso a livros e à cultura estrangeira. “Se você parar para pensar, a vinda dos imigrantes para o Brasil devido à Segunda Guerra Mundial, que foi a outra grande crise humanitária anterior à atual, deixou um saldo muito positivo aqui”, afirma.

Livraria Da Vinci, no Rio de Janeiro: obra de uma refugiada romena que virou referência de livros estrangeiros. À esquerda, o alemão Hans Stern, criador da joalheria H. Stern (Fotos: Divulgação)

“Não temos estudos científicos, mas verificamos empiricamente no dia a dia das nossas operações no Brasil e no mundo que os refugiados têm total capacidade de contribuir para as comunidades de acolhida, se forem dadas condições de fazerem isso, seja dentro de empresas, na música, na gastronomia, com outros tipos de arte”, aponta Godinho, do Acnur Brasil.

Godinho acredita que a desinformação é a causa maior do rechaço ao estrangeiro. “Entender as razões que levam os refugiados a se deslocarem e por que se encontram no seu país é vital para permitir um maior engajamento e uma postura mais solidária.” O que se aplica perfeitamente também aos imigrantes, aliás. Ele destaca que o acolhimento não é tarefa apenas das autoridades, é também do cidadão comum.

Nas empresas já se sabe que equipes mais diversas em gênero, raça, cor, necessidades especiais, sexualidade, etc. têm mais riqueza de pensamento, são mais inovadoras e criam estratégias diferenciadas. O resultado costuma ser maior engajamento, produtividade e desempenho financeiro. Nos países não é diferente.

NOVOS HORIZONTES

Venezuelano em Roraima: o fenômeno migratório é mal gerido ao redor do mundo (Fotos: Mauro Pimentel / AFP)
Apesar do crescimento de governos de direita pelo mundo, munidos por discursos nacionalistas e, muitas vezes, xenófobos, em dezembro de 2018 o mundo busca se unir para administrar de forma mais humana e criteriosa essa constante dos deslocamentos por meio do Pacto Global para Migração. O acordo pioneiro, programado para ser assinado durante a Cúpula da ONU em Marrakech, no Marrocos, entre 10 e 11 de dezembro, envolve 23 objetivos para uma melhor gestão do fenômeno migratório em níveis locais, regionais e global. Afinal, estatísticas históricas indicam que restringir a migração não costuma reduzir a entrada de imigrantes. Mas, sim, acaba aumentando o número de indocumentados e, portanto, só criminaliza a situação do migrante.
* Atualização: Embora o Brasil tenha assinado este acordo internacional na ocasião, logo após tomar posse em 2019, o governo de Jair Bolsonaro retirou o país do pacto, alegando que interferia na “soberania nacional”. (O que nos leva a sugerir que você, leitor, retorne ao trecho sobre “Segurança nacional” desta reportagem)