Apesar de comemorar a febre de festivais literários que toma conta do país, o escritor Cristovão Tezza acredita que a literatura se reduz cada vez mais a um nicho de mercado

É difícil acreditar que até 2006, quando concluiu o celebrado romance O Filho Eterno, Cristovão Tezza escrevia todos os livros à mão, e já tinha escrito mais de dez. De lá para cá, o computador passou a fazer parte da sua rotina, que se estende todas as manhãs, das 9 horas ao meio-dia, religiosamente, de segunda a sexta. A dedicação integral à literatura é algo novo na vida do autor. Até 2009, ele combinava a escrita com a atividade rotineira de professor na Universidade Federal do Paraná, onde lecionava língua portuguesa. 

Apesar de ser um escritor famoso desde os anos 90, a consagração de Tezza veio com O Filho Eterno, publicado em 2007, que está prestes a virar fi lme pelas mãos do cineasta Paulo Machline. Por coincidência, outro de seus romances, Juliano Pavollini (Ed. Record, 2010), também chegará brevemente às telas, com direção de Caio Blat . 

Cristovão Tezza nasceu em Lages, em Santa Catarina, mas mudou- se para Curitiba na adolescência. Seus primeiros livros, Gran Circo das Américas e O Terrorista Lírico foram publicados nos anos 70, e no início dos 80, e hoje só estão disponíveis em versão digital. Depois de lançar O Professor, em maio de 2014, o autor tem viajado quase todas as semanas para participar de eventos literários, o que faz com prazer. Nem por isso perdeu o ceticismo da condição de escritor num país iletrado.

Atualmente, você se dedica só à escrita, mas durante anos trabalhou como professor na Universidade Federal do Paraná. Que importância a atividade acadêmica teve em sua vida?
Antes de tudo, me deu as condições de sobrevivência para me manter escritor, numa época – anos 80 e 90 – em que não havia muita alternativa. Se eu tivesse me tornado jornalista ou publicitário, outras hipóteses que se apresentavam naquele momento, não sei se conseguiria reservar um tempo para a literatura. A vida de professor me deu uma rotina estabilizante, depois dos meus loucos e confusos anos 70. Por outro lado, minha formação acadêmica na área da linguagem (por opção, fui professor de língua portuguesa e não de literatura) foi um bom lastro para pensar sobre questões literárias. Acabei escrevendo resenhas e críticas na imprensa, durante um tempo, o que me deu alguma visibilidade fora de Curitiba, naqueles tempos pré-internet. Não sei o quanto a vida acadêmica interferiu na minha ficção, mas, com certeza, deixou marcas. Os “professores” são personagens recorrentes nos meus livros.

Você já disse que os brasileiros sem acesso à literatura dos anos 60 pularam direto para a oralidade da tevê dos anos 80. É por isso que a nossa literatura é elitista? 
O Brasil é historicamente um país iletrado. O livro sempre foi um objeto de elite entre nós. Havia o culto da biblioteca pessoal como índice de inteligência dos barões do saber – mas ninguém se orgulhava das bibliotecas públicas, e poucos se lembravam delas. Sempre fomos um paísrural estagnado, mas pelo menos nos centros urbanos a nossa literatura tinha uma presença forte, conversava com o país, por assim dizer. De meados dos anos 1950 em diante, quando começou a intensifi car-se o processo de urbanização, que não parou mais até hoje, a palavra escrita e o livro não acompanharam a modernidade. A implantação das redes de televisão nos anos 70 foi um fator civilizatório para o país, mas o livro foi ficando cada vez mais para trás. Com a salização do ensino básico e o advento da internet, do Plano Real em diante, abriuse uma outra era – mas nela, em grande parte, a literatura brasileira está se reduzindo quase que num pequeno nicho de mercado.

A internet recuperou a força da palavra escrita, mas também revelou uma incultura assustadora. Ela pode abrir caminhos e melhorar a nossa relação com a literatura?
Eu já fui mais otimista sobre os efeitos da internet. A princípio, ela significou um retorno espetacular da palavra escrita na vida das pessoas, depois do império da TV. Mas, da mesma forma que aconteceu com a televisão, ela entrou diretamente na vida de milhões de pessoas iletradas. O computador chegou antes do livro, repetindo a história da TV. Estamos vivendo assim uma transição selvagem, que tornou nosso atraso brutalmente visível, porque a internet nada mais fez do que trazer o país real à tona. Mas continuo achando a internet positiva a médio e longo prazos, porque agora a escrita de fato voltou a ser um valor social importante e transformador. Especialmente para a literatura, ela vem sendo uma dádiva, em todos os aspectos, pela incrível disseminação da informação que proporciona, da circulação de textos ao acesso potencialmente universal aos livros.

Você tem livros publicados na China, nos Estados Unidos, na Eslovênia e em outros países europeus. Tem feedback dos leitores? 
No caso da crítica, sim, porque os textos acabam chegando até mim. Já o acesso ao leitor comum é mais difícil. Tenho poucas referências indiretas, pelos comentários de leitores de língua inglesa na internet. No caso da China, minha viagem a Pequim e Xangai me colocou diretamente em contato com leitores, em alguns eventos, o que foi muito legal. Posso dizer que a resposta a O Filho Eterno é mais ou menos semelhante, aqui e lá. 

Ao que você atribui o sucesso de O Filho Eterno? Ao tom confessional e à experiência pessoal que dá vida à narrativa?
O tema da relação pai-filho é difícil, porque é muito batido e tem muitas armadilhas sentimentais e lugares-comuns, mas é um tema forte e universal – o mundo inteiro entende e vive problemas semelhantes. Não sei dizer exatamente o que deu certo no livro. Eu diria que a sinceridade meio brutal do narrador deu um toque especial ao romance, assim como o jogo de distância e proximidade que a narração mantém com o pai, alguém que ao mesmo tempo vive os fatos e se obser-va de longe. O fato de ser um romance “baseado em fatos reais”, para repetir o chavão, tem algum apelo publicitário, mas durante a leitura isso desaparece, porque o tom da ficção é dominante. Enfim, é um livro de um escritor maduro, e acho que o leitor sente isso.

Qual é a relação que seu filho, Felipe, tem com o livro?
Meu filho acha o maior barato ter um livro baseado nele, o que percebe intuitivamente. Mas não tem o domínio da abstração da escrita e da leitura. Como muitas pessoas com Down, tem limites cognitivos importantes na apreensão e no uso da linguagem. Noções de tempo, conceitos abstratos ou subordinação sintática, por exemplo, são apreensíveis para ele somente de uma forma
precária, embora seja muito inteligente em outros aspectos da integração social. Ele jamais vai ler o livro. Obviamente, esse fato foi determinante para o romance ser o que é.

Os festivais literários e o estímulo do Estado (Lei Rouanet e programas da Biblioteca Nacional de apoio à tradução) são hoje um fato na vida cultural brasileira. De que maneira ajudam a difundir a literatura num país que lê tão pouco?
A Lei Rouanet, com todos os seus apregoados defeitos, vem sendo fundamental para a circulação da cultura brasileira, e a literatura pegou uma carona importante nos programas de renúncia fiscal. O panorama hoje é completamente diferente dos anos 70 e 80, de minha formação, quando não havia nada semelhante. Hoje, está se tornando possível um escritor viver de literatura, o que era uma utopia completa. Toda semana há algum evento cultural em algum lugar do país, e isso é muito bom, porque toda festa literária coloca o livro e a leitura em cena. Já os programas de apoio à tradução são o modo mais simples, barato e eficaz de consolidar alguma presença da literatura brasileira no exterior.

E como um torcedor fanático do Atlético Paranaense engoliu a derrota do Brasil na Copa de 2014?
É bem pior quando o próprio Atlético perde uma final…Parece que os torcedores sofrem mais com seus times do coração do que com a seleção. É o lado tribal do futebol. Mas a derrota do Brasil mexeu muito, e teve mesmo um toque inacreditável. Quem poderia imaginar um desastre tão monumental? Depois daquele 7 a 1, deveriam erguer um memorial aos nossos heróis de 1950.

Do que gosta mais em Curitiba?
Fui aprendendo a gostar de Curitiba ao longo das décadas. Hoje, é uma cidade que não troco por nada. Eu me adaptei a ela como uma ostra na pedra. Para ser realista, muito da fama curitibana é mito. Curitiba não é uma cidade marciana – ela tem exatamente todos os problemas das grandes cidades brasileiras, sendo a violência o pior deles. O sistema de transporte, que sempre foi a chave do prestígio de Curitiba, está numa crise que é uma expressão da crise brasileira: o privilégio à cultura do carro – um desastre estimulado pela política econômica federal, que acaba por inviabilizar em toda parte o transporte coletivo de qualidade. Mas Curitiba mantém algumas qualidades secretas, um senso de organização, uma certa atmosfera, um jeito de ser curitibano que me agrada muitíssimo. É uma cidade que favorece a introspecção e a reserva da vida pessoal, qualidades cada vez mais raras no país. E é ótima para quem escreve.