A guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia provoca um cisma na Igreja Ortodoxa: enquanto o patriarca russo Cirilo justifica a ofensiva, ele é condenado tanto pelas Igrejas ucranianas quanto por alguns sacerdotes da Rússia.

“O patriarcado moscovita silenciou longamente sobre a guerra”, comenta o professor de Ecumenismo, Igrejas Católicas Orientais e Pesquisa da Paz Thomas Bremer, da Universidade de Münster. Contudo, isso mudou: em seus sermões em Moscou, Cirilo apresenta a guerra de Vladimir Putin como uma resistência legítima aos valores ocidentais.

“Ele afixa isso às paradas do orgulho gay, que se teria supostamente tentado impor ao Donbass”, explica. Na linha do decreto presidencial vedando que se noticie, ou sequer se caracterize a guerra como tal, o patriarca evitou usar o termo em relação à invasão da Ucrânia, referindo-se a “acontecimentos” e “ações militares”.

Duas Igrejas ortodoxas na Ucrânia

Enquanto na Rússia apenas a Igreja Ortodoxa Russa é relevante, sendo seguida por 75% da população, a Ucrânia é marcada por diversidade religiosa. O cristianismo ortodoxo tem uma história movimentada no país, sobretudo desde a independência em relação à União Soviética, em 1991.

Atualmente há no país duas comunidades ortodoxas: de um lado, a Igreja Ortodoxa da Ucrânia (IOdaU), autônoma e liderada pelo metropolita Epifânio. Ela foi reconhecida em 2019, em Istambul, por Bartolomeu 1º, uma espécie de “pontífice honorário” dos 260 milhões de cristãos ortodoxos de todo o mundo.

Do outro lado está a Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscou (IOU-PM), uma comunidade independente dentro da Igreja Ortodoxa Russa e que no passado não se manifestou com frequência sobre questões políticas. Juntas, elas representam 60% da população ucraniana.

Ambas chamam pelo nome a guerra deflagrada por Moscou e a condenam expressamente, explica Bremer. Isso já seria de se esperar da IOdaU, porém mesmo o patriarca da IOU-PM, que afinal é parte da Igreja Ortodoxa Russa, já falava de uma “invasão” da Ucrânia desde o primeiro dia da operação militar, e instou Putin a dar fim à guerra.

“O Sínodo das Igrejas ortodoxas da Ucrânia chegou a apelar ao patriarca de Moscou para fazer valer sua influência sobre Putin e se engajar pela paz”, diz o teólogo. “Mas o noticiário da Rússia deixou isso de fora. Lá os horrores da guerra não são absolutamente visíveis.”

Assinaturas corajosas

Pelo fato de o patriarca Cirilo não ter se empenhado pela paz, diversos bispos da IOU-PM aconselharam a não mais mencionar o nome dele nas orações, como é usual. A indicação foi seguida até mesmo no nordeste da Ucrânia, na fronteira com a Rússia.

“Desse modo, se nota um grande afastamento da Igreja em relação a Moscou”, destaca Bremer. O patriarca de Moscou perdeu a confiança de seus irmãos da Ucrânia e, com isso, também numerosos fiéis praticantes no país: das 38 mil congregações da Igreja Ortodoxa Russa, cerca de 12 mil se localizam na Ucrânia e são parte da IOU-PM.

No início de março, clérigos e sacerdotes ortodoxos-russos publicaram uma carta aberta exigindo o fim da guerra. O documento em russo diz, literalmente: “Nós, os sacerdotes e diáconos da Igreja Ortodoxa Russa, apelamos em nosso próprio nome a todos em cujo nome a guerra de irmãos na Ucrânia terminará, e conclamamos à conciliação e a um cessar-fogo imediato.”

Eles se referem ao “calvário a que os nossos irmãos e irmãs da Ucrânia são expostos, sem merecer”, e já olham para o futuro: “Estamos tristes ao pensar no abismo que nossos filhos e netos na Rússia e na Ucrânia vão ter que transpor para voltar a ser amigos, a se respeitar e a amar mutuamente.” Até a terça-feira (08/03), 286 sacerdotes e diáconos já haviam assinado a carta.

Thomas Bremer admira a coragem desses signatários, embora se trate ainda de um grupo relativamente pequeno, entre os 36 mil clérigos da Igreja Ortodoxa Russa. Mas agora eles estão expostos a represálias e perseguição por parte das autoridades russas e do serviço secreto FSB.

Putin evoca falsa dimensão religiosa

Para os russos, a adesão à Igreja Ortodoxa pode ser tanto religiosa quanto cultural: “Há gente na Rússia que se define como ortodoxo, mas ao mesmo tempo diz que não acredita em Deus”, observa Thomas Bremer. “É também uma questão de identidade.”

Historicamente, o cristianismo ortodoxo está intimamente ligado à Rùssia, e Putin se aproveita disso. Assim, num discurso em que justificava suas “operações militares especiais” na Ucrânia, chegou a evocar uma dimensão religiosa, também ao afirmar, falsamente, que ortodoxos russos seriam perseguidos na Ucrânia.

Trata-se de uma narrativa de unidade que tanto a IOdaU quanto a IOU-PM repudiam decididamente, o mais tardar desde a eclosão da guerra. Segundo o pesquisador do ecumenismo, os efeitos da invasão sobre as Igrejas ortodoxas dependerá dos próximos desdobramentos – e de quem vai sair vencedor.

Caso a Rússia anexe o país-irmão, isso será o fim da autônoma Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscou, prediz. Mas, seja como for, a Igreja Ortodoxa Russa já perdeu diversos fiéis na Ucrânia, e talvez também alguns na própria Rússia.