O maior desastre desde Chernobil, está longe de acabar.

O Japão é um dos países mais tecnologicamente desenvolvidos do mundo, habituado a lidar com desastres naturais e dono de invejável disciplina. Mas todas essas qualidades não têm conseguido evitar que novos vazamentos de radiação afetem o meio ambiente ao redor da usina de Fukushima Daiichi, destruída há quase três anos. Entender como aconteceu o desastre nuclear mais grave desde a explosão da usina de Chernobil, na Ucrânia, em 1986, ajuda a explicar como isso é possível. O acidente está ligado a duas grandes tragédias naturais. Em 11 de março de 2011, um terremoto de 9,0 graus na escala Richter atingiu o leito oceânico perto da costa leste do Japão. O tsunami que se seguiu deixou mais de 20 mil mortos. A usina de Fukushima Daiichi, preparada para lidar com uma onda de até seis metros de altura, foi atingida por uma parede de água de 14 metros.

A energia local foi interrompida. Dos seis reatores, dois estavam desligados. Os reatores 1 a 4 possuíam geradores de energia que os mantiveram  funcionando, até que o problema se tornou realmente grave. Os aparelhos foram inundados, cortando de vez a energia na usina. “Os reatores 1 a 4 estavam na cota mais baixa em relação ao nível do mar. Os reatores 5 e 6 não foram danifi cados porque estavam cerca de 1 ou 1,5 metro acima. Essa foi a grande falha. E já havia a avaliação desse problema no caso de um tsunami alto. Foi um erro da agência reguladora”, explica Leonan dos Santos Guimarães, membro da assessoria do diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica.

Toda a tecnologia, portanto, não impediu uma falha fundamental na regulação. A Tokyo Electric Power Company (Tepco), empresa que gerencia a usina, também é responsável, pois não operava no patamar mais seguro. Apesar disso, vários dispositivos – e o trabalho incansável de técnicos japoneses em condições precárias – impediram a ampliação do desastre. Ao contrário do que aconteceu em Chernobil, o reator em si não explodiu, o que limitou a liberação de material radiativo na atmosfera. O grande problema com a falta de energia em uma usina nuclear de água fervente, como a de Fukushima, é que interromper o resfriamento do material radiativo pode causar superaquecimento e levar à combustão. Os técnicos acionaram mecanismos que impediram a explosão dos gases no reator. Assim, apenas a parte superior do edifício que abrigava os reatores explodiu liberando ar contaminado, mas não o material radiativo em si.

A torneira que não quer fechar

Cerca de 320 mil toneladas de água foram usadas para resfriar os reatores. Em contato com o núcleo, o líquido se tornou radiativo e está sendo armazenado em cerca de mil tanques na usina. Reside aí uma das atuais dores de cabeça do Japão. Em agosto deste ano, a autoridade nuclear do país denunciou o vazamento de 300 toneladas de água radiativa dos tanques para o oceano e acusou a Tepco de negligência em relação ao assunto. A empresa afi rmou ter resolvido o problema, mas no início de setembro outra falha foi revelada: a Tepco admitiu que os níveis de radiação em torno dos tanques eram de 2.200 milisieverts por hora, e não de 100, como havia declarado antes. O motivo do engano? Os aparelhos usados para a medição não tinham escala acima de 100 milisieverts por hora. 

Além disso, como parte dos reatores derreteu, o material radiativo desceu até o fundo da instalação e pode ter se infi ltrado no solo. É impossível verifi car a situação in loco, mas descobriu-se que os lençóis freáticos que passam sob o local estão se contaminando e jogando material radiativo no oceano. O governo japonês anunciou que usará US$ 470 milhões em uma operação que vai congelar o solo ao redor da usina, forçando os lençóis freáticos a circular mais abaixo. Isso evitaria a contaminação, ao mesmo tempo que manteria a água impura dentro do solo congelado. O projeto, audacioso, só fi cará pronto em 2015.

Até lá, é provável que a água contaminada continue a correr para o oceano. Leonan Guimarães diz que os vazamentos não são tão graves quanto parecem. “É claro que são questões que não podem ser ignoradas, mas esses episódios acontecem numa proporção bem menor do que o acidente em si”, afi rma. “Além disso, quando misturadas à água do oceano, as concentrações de radiação caem a níveis desprezíveis.”

Renata Nitta, coordenadora da campanha de Clima e Energia do Greenpeace Brasil, discorda. “Se uma quantidade grande de água é despejada no mar, ainda mais de forma contínua, ela entra  na cadeia alimentar e pode contaminar peixes que eventualmente serão consumidos. Essa radiação tem um efeito cumulativo. Há uma preocupação grande dos outros países, como Coreia e China, porque essa contaminação não necessariamente vai se localizar no Japão.” Mesmo depois de controlar as fontes de contaminação, a Tepco tem outro problema nas mãos. O que fazer com as cerca de 700 mil toneladas de água contaminada que devem ser recolhidas e armazenadas até 2015? Uma estação de purifi cação e descontaminação da água foi montada, mas opera em velocidade baixa e ainda não trata todos os componentes radiativos.

Legado social de um desastre

Apesar dos problemas que um desastre nuclear pode causar, não há notícia de pessoas cuja saúde tenha sido prejudicada pela radiação. A própria Organização Mundial da Saúde, em seu último relatório sobre o tema, afi rmou que “para a população em geral dentro e fora do Japão, os riscos são baixos e não se preveem aumentos nas taxas de incidência de câncer”. No entanto, a agência ressalta que “o risco estimado de alguns tipos de câncer para certas faixas da população na cidade de Fukushima (a 70 km da usina) aumentou e esses indivíduos devem passar por monitoramento contínuo em longo prazo”.

Durante os dias que se seguiram ao tsunami, afirma Guimarães, apenas cerca de 500 pessoas foram atingidas pela chuva de radiação, e a carga recebida não ultrapassou a de uma tomografi a computadorizada. As avaliações de entidades internacionais e as palavras do governo japonês, porém, não acalmaram a população. No relatório Lessons from Fukushima, elaborado pelo Greenpeace em 2012, Tessa Morris-Suzuki, membro do Conselho Internacional de Políticas de Direitos Humanos, revela que muitos moradores da região haviam se reunido para comprar aparelhos de medição de radiatividade.

Embora os níveis nas cidades vizinhas da usina estejam abaixo do estabelecido como seguro pelo governo, a detecção de qualquer sinal de radiatividade deixa os moradores apreensivos. “Diante das incertezas, muitas famílias se dividiram: mulheres e crianças foram viver em outras partes do Japão, ou em outros países, enquanto os homens continuaram em seus empregos na cidade. Afinal, mesmo que o risco seja pequeno, que pais iriam correr o risco de ver seus fi lhos desenvolverem câncer só por não agirem a tempo?”, relatou Tessa. O grande número de separações relacionadas ao estresse pós-acidente nuclear ganhou um nome característico: genpatsu rikon, ou “divórcio atômico”.

Além das famílias que se mudaram por conta própria, outras 150 mil tiveram de deixar a zona estabelecida pelo governo. Depois de sair de suas casas, elas tiveram de conviver com outra difi culdade: o preconceito. Tal como aconteceu com os sobreviventes das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, quem vem da área de Fukushima é visto com cautela. Há relatos de que essas pessoas foram impedidas de doar sangue, tiveram janelas apedrejadas e até mesmo foram obrigadas a oferecer certifi cados médicos de níveis de césio quando procuraram um novo emprego. O temor da transmissão de radiatividade é tão grande que mães de recém-nascidos foram aconselhadas a não deixar seus parentes da região de Fukushima perto dos bebês e as mulheres do local foram publicamente aconselhadas a não ter filhos.

Para José de Jesus Rivero, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor em segurança nuclear, embora não apresentem maior risco do que outras instalações, as falhas em uma usina nuclear podem causar um pânico maior. “O tsunami matou muitas pessoas, mas ninguém morrerá como consequência direta do acidente nuclear”, afi rma. “Pode-se temer o eventual aparecimento de casos de câncer em longo prazo. Mas seria inadequado culpar Fukushima por essas possíveis mortes, porque elas também acontecem como resultado das emissões de outras indústrias e do transporte. Se substituirmos as usinas nucleares por térmicas de petróleo ou carvão, os poluentes, produto da combustão, também matarão pessoas de câncer e doenças respiratórias em longo prazo.”

Pelo menos o legado de Fukushima Daiichi não é de todo mau. “O nível do desastre levou todos os países (incluindo o Brasil) a fazer o stress test, a verifi cação de hipóteses mais rigorosas de acidentes, com a combinação de vários fatores e de ameaças aos principais sistemas de segurança”, diz Ivan Salati, diretor de Radioproteção e Segurança da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen). “No Brasil, a Cnen solicitou à Eletronuclear esse teste, que propôs um programa de melhorias.” Na Alemanha, o caso fez o país voltar-se para a energia renovável.

Enquanto isso, o Japão e a Tepco seguem seu programa de, pela primeira vez no mundo, desativar totalmente uma usina nuclear. O prazo? Pelo menos 40 anos.