A psiquiatra Priscila Menegon Castrucci Caviglia e a psicóloga Zilda de Paula Machado estudaram o significado da morte para nossa cultura.

Zilda (esquerda) e Priscila: mergulho profundo nos sentimentos relacionados à morte.

A morte nos coloca diante da fragilidade de nossa condição humana. Somos mortais. Como em tudo na natureza, cumprimos os ciclos da vida: nascemos, crescemos e deixaremos de existir um dia. Mas esse fato nos assusta muito. Conscientes do modo como nós, ocidentais, nos relacionamos com a morte, a psiquiatra Priscila Menegon Castrucci Caviglia e a psicológa Zilda de Paula Machado, de São Paulo, se debruçaram sobre o tema.

Baseadas em relatos de pacientes e em estudos de casos, elas dissecaram os sentimentos que envolvem a morte, elaborando os estudos “Luto: Abordagem Mitológica” e “Saudade na Alma Enlutada”. O primeiro busca compreender a experiência da morte pela análise comparativa dos rituais e mitologias relacionados a ela. Já o segundo discorre sobre o poder transformador da saudade. A seguir, as profissionais explicam como suas conclusões podem ajudar as pessoas que estão sofrendo alguma perda.

Por que você decidiu estudar a morte com uma abordagem mitológica?

Priscila – Há mais de 20 anos venho me dedicando a esse estudo. A experiência da morte é universal e atemporal. Desde o início das civilizações, o homem cria mitologias na tentativa de explicá- la, e inventa rituais que o ajudem a suportar essa dor. Comparei algumas mitologias e alguns rituais das culturas ocidentais e orientais para conhecer o que havia em comum entre eles. Na clínica, pude observar que as pessoas que tinham crenças envolvendo a morte e que seguiam algum tipo de ritual para enterrar os seus mortos (vesti-los, colocar um terço em suas mãos) enfrentavam processos psicológicos semelhantes aos descritos nas mitologias.

Qual foi o resultado que você obteve em sua pesquisa?

Em quase todas as mitologias, constatei que existe, inicialmente, um cuidado com a preparação do corpo (lavá-lo, vesti-lo, embalsamá-lo, enfeitá-lo). A seguir, aparece quase sempre um elemento de transição, geralmente parte humano e parte divino. É o caso de Anúbis (entidade mitológica metade homem e metade chacal, no antigo Egito) e de Niu-Tori (Cabeça de Boi) e Na-Mien (Face de Cavalo), ambos da mitologia chinesa.

Essas figuras são chamadas na psicologia de psicopompos (condutores de almas). Conduzida por elas, a alma inicia a sua travessia para o outro mundo, onde haverá um julgamento de suas ações em vida (pesagem das almas, juízo final). Nesse julgamento se define o destino da alma, se ela ganhará o repouso eterno ou se purgará as suas penas em algum tipo de inferno.

Em que medida esses conhecimentos podem ajudar uma pessoa em luto?

A morte de uma pessoa assinala o início de um processo de transformação que afeta aqueles que estão emocionalmente ligados a ela. Os rituais são realizados por medo, para proteção de si mesmo, ou para auxiliar a alma do falecido. Do ponto de vista da psicologia, eles servem para guiar a consciência da pessoa em luto, durante todo o período de elaboração da morte até a transcendência desse sofrimento.

Nos momentos iniciais da perda, é comum pensar que há poucos instantes a pessoa estava viva e que agora não está mais. Vive-se, portanto, um conflito entre a entrega à evolução e a resistência à mudança inerente ao ego.

A pessoa em luto precisa de um tempo para se adaptar a essa nova realidade e assimilar o processo de transformação. Enquanto se lava e se prepara o corpo para a “passagem”, também se deseja preservar alguma coisa daquilo que o indivíduo foi. É nesse estágio que a pessoa em luto vai se despojando de valores egoístas e começa a se apoiar em outros valores, mais espirituais.

À medida que a preparação do corpo se completa, a pessoa que está em luto começa a tecer ponderações mais amplas. Essa pode ser vista como uma fase de transição. Surgem, então, considerações sobre os traços mais fortes e permanentes do morto. Define-se de que maneira ele marcou as vidas dos entes que o rodeavam. Passa-se da visão momentânea da morte para a história da pessoa e do meio em que ela viveu.

É aqui que surgem as questões relativas à fé. Faz-se a “travessia”, atravessa-se a fronteira conhecido/desconhecido e o ego cede lugar ao “eu” espiritual. Infelizmente, é justamente nesse ponto que o homem moderno costuma ficar bloqueado. E qualquer tipo de bloqueio costuma dar origem à doença.

Como ocorre esse processo?

Em geral, o homem hoje vive sem convicções espirituais, apegado a valores concretos e temporários. Para transcender a polaridade vida/morte, necessitamos de algo que nos guie para além do saber intelectual, entrando no campo do acreditar, da fé. Sem esse recurso, não é possível transformar a lembrança do falecido e recuperar a energia psíquica que estava com ele. A falta prolongada dessa vitalidade pode levar ao aparecimento de diversos quadros patológicos.

A MENSAGEM CONTIDA NA PERDA DE ALGUÉM QUERIDO É O FATO DE A PESSOA EM LUTO PODER SE REPOSICIONAR EM RELAÇÃO AOS SEUS ATOS

Priscila Menegon Castrucci Caviglia

E quanto ao julgamento e ao destino das almas?

Eles são conseqüência do modo como o morto viveu e das convicções que a pessoa enlutada tem sobre a existência ou não de uma vida após a morte. Essas crenças atam e integram profundamente a vida à morte e levam a pessoa enlutada a repensar como ela viveu cada momento da sua vida, que opções fez, se realizou o que lhe cabia. Durante o julgamento, a consciência da pessoa em luto reavalia a sua própria escala de valores, a sua forma de vida e propõe novas metas para o novo ciclo que começa. Nesse sentido, a morte se torna motivação para uma vida melhor.

Nesse contexto, é possível afirmar que a morte é propulsora da vida?

Sim, a grande mensagem contida na perda de alguém querido é o fato de a pessoa em luto poder se reposicionar em relação aos seus atos e escolhas. Por exemplo, ela terá de refletir, decidindo se vai evitar ou imitar o modo de vida daquele que se foi.

Também é importante que essa pessoa tente resolver, pelo menos simbolicamente, os eventuais conflitos que possam ter ocorrido entre ela e o morto. Somente depois desse balanço é que a sua energia psíquica volta a se normalizar.

Qual é a importância da crença nesses momentos?

As mitologias salientam a responsabilidade de cada um perante o mundo e a humanidade. Portanto, o destino da alma (para onde ela vai depois da morte) é um fenômeno que ocorre na dimensão do inconsciente coletivo. À medida que a energia psíquica vai se reincorporando, a pessoa em luto pode encontrar maneiras ou crenças que permitam estabelecer novas relações com aqueles que a cercam. Isso é fundamental para que ela consiga atravessar o processo da perda e elaborar a dor da morte, voltando a sentir prazer na vida.

Qual é a sua conclusão?

Em nossa sociedade ocorre a total negação da morte. O resultado desse comportamento implica um maior sofrimento diante da perda. Se acreditarmos em algo, em uma religião, encontraremos conforto nessa crença. Na realidade, ela nos ajudará a elaborar os nossos sentimentos de luto e, por meio desse processo, transcender o nosso sofrimento.

Qual é o seu conselho para os que acabam de perder alguém?

Essas pessoas devem respeitar os seus sentimentos, lembrando que estão desenergizadas e, portanto, limitadas para a realização de muitas tarefas. Também defendo que busquem encontrar em si aquilo que a pessoa falecida representava. Que reavaliem os seus valores, permitindo que se opere nelas a grande transformação.

O que é a saudade, Zilda?

Zilda – Quando se fala de morte, é preciso entender que duas forças lutam em sentido contrário: de um lado, para o inconsciente, a morte é uma etapa natural da vida. De outro, para o consciente, pelo menos na nossa cultura ocidental, ela é sentida como a interrupção da vida. É a saudade que, fazendo o papel de mensageiro, vai ajudar na aproximação e na confrontação desses opostos, restaurando o equilíbrio psíquico e energético da pessoa.

A saudade vai se transformando à medida que o luto se transforma. Por meio da lembrança, ela vai passando de saudade externa, voltada ao outro, para saudade interna. Nesta, a lembrança do outro se torna motivação para uma ação que conduz ao futuro.

A “alquimia” que você menciona em seu trabalho consiste nessa elaboração de sentimentos e na transformação da dor da perda?

Sim, pois em toda a experiência de perda existe um movimento transformador. As perdas deixam a alma de luto, mas nós também precisamos nos abrir para o mundo, para os sentimentos. Se, por exemplo, uma pessoa que perdeu um filho ficar somente na tristeza, naquilo que chamo de saudade externa, acabará doente.

Ao passo que se ela, apesar da dor e da tristeza, procurar entender simbolicamente o sentido dessa perda em sua vida, aos poucos aquela saudade vai se transformando no que chamo de saudade interna, que não é mais dor, e sim um alento. E essa transformação nada mais é do que um processo alquímico, no sentido psicológico.

Sua teoria pode ser aplicada à experiência da perda em geral, como a perda de uma amizade ou o término de um relacionamento afetivo?

Sim. Elaborar as perdas é entrar na dor, é sofrer e dar vazão a todos os sentimentos. É se perder na saudade, pois só assim a pessoa consegue ir separando o que é dela do que é do outro. Por exemplo, no caso do rompimento de uma relação, é preciso avaliar o que do outro nos faz tanta falta, a ponto de nos deixar prostrados. Saber se estamos tristes pela falta do outro ou por questões nossas não resolvidas. Só depois disso é que estaremos prontos para uma vida nova.

O DESEJO É O ELEMENTO DINÂMICO DA SAUDADE. É NELE QUE NASCE A ESPERANÇA DO REENCONTRO

Zilda de Paula Machado

A saudade, então, nos conforta e nos incentiva a viver?

O desejo é o elemento dinâmico da saudade. Mas, mesmo nas religiões que acreditam na ressurreição do corpo ou na reencarnação da alma, a saudade existe. No fundo da saudade, existe a esperança do reencontro, do renascer, da volta à vida. É comum a gente ouvir frase do tipo “Quando vou acordar desse pesadelo?”. No fundo, essa frase expressa o desejo de que a dor acabe e, também, a esperança contida na saudade. Na verdade, quero que a dor acabe, mas, ao mesmo tempo, quero ter a pessoa de volta.

É possível sair da tristeza sozinho?

Em princípio, sim. Mas isso varia de pessoa para pessoa. Para uns, esse processo de elaboração é solitário, ao passo que para outros a presença de um interlocutor auxilia na discriminação dos sentimentos. Se você está ligado aos seus princípios, de uma maneira ou de outra, aos poucos vai percebendo a sua saudade se transformando, trazendo alívio e paz interior.

Qual é a mensagem que você deixa para uma pessoa que acaba de perder alguém?

Na perda de um ente querido, morre uma parte de nós mesmos. Cria-se um enorme espaço vazio. É preciso se abrir para o sentimento da perda e dar condições para que a alma renasça a partir desse espaço.