Quando menino, em São Carlos (SP), habituei-me a ver caravanas de ciganos nas ruas. Naqueles tempos eles ainda se deslocavam em carroças e se reuniam em acampamentos na periferia das cidades. Os homens ganhavam a vida vendendo tachos e outros utensílios de cobre fabricados por eles mesmos. As mulheres liam mãos ou jogavam as cartas para quem queria ter notícias do passado, do presente ou do futuro. Depois de uma semana ou duas, partiam cedo, em busca de uma nova parada.

“Cuidado com os ciganos, eles pegam as crianças e as levam embora”, alertava Dona Luzia, nossa velha babá, do alto de um antigo preconceito que nunca conseguiu apagar minha curiosidade sobre esse povo marcado pela adaptabilidade. No Brasil, o preconceito contra os ciganos diminui conforme eles se integram à sociedade – a umbanda tem, inclusive, as “Linhas Ciganas”, cultos mediúnicos frequentes em seus terreiros. Na Europa, porém, as coisas são mais difíceis, sobretudo depois que, com a queda da Cortina de Ferro, nos anos 1990, grandes levas de ciganos deixaram seus países de origem (Romênia, Bulgária, Moldávia, etc.) rumo ao Ocidente.


Policiais em acampamento no Leste Europeu, nos anos 1930

No Velho Continente, os ciganos preferem ser chamados roma, que na sua língua significa “homens” (o singular é rom). Os demais são gadjé, “os outros”, o resto do mundo, ou seja, os não roma. Eles veem o gadjo (singular de gadjé) como um ser crédulo, ingênuo, supersticioso, demasiado apegado às coisas, muitas vezes violento. Já os gadjé acham que eles são mal-arrumados, indignos de confiança, ladrões, incultos. Hoje em dia, porém, em geral os roma vivem em casas normais, trabalham, estudam e convivem tranquilamente com os gadjé.

Hoje espalhados pelo mundo, os ciganos descendem de um povo nômade originário do noroeste da Índia. Ao redor de 1000 d.C., eles começaram a deixar o delta do rio Indo, entre a Índia e o Paquistão, provavelmente devido a guerras, carestias e perseguições étnicas. Levaram consigo seus conhecimentos, tais como o trabalho com metais.

Nos séculos seguintes, grupos de ciganos ingressaram nos países a oeste da Índia. No fim do século 14 já tinham se fixado em vários pontos da Europa, a partir dos Bálcãs. Essa “invasão” do Ocidente, em vez de guerras e violência, foi marcada pela grande adaptabilidade dos ciganos a novos lugares e situações. Eles mudavam sua economia e ritmos de vida segundo as oportunidades oferecidas pelos países hospedeiros.

 

Religião flexível

A religião foi um cenário privilegiado dessa mutabilidade. Como regra, os ciganos adotavam rapidamente a religião dominante do país onde se fixavam. Tal como sucedeu com os africanos no Brasil, isso acontecia quase sempre dentro de um processo de sincretismo. Os ciganos vinham de uma tradição politeísta, o hinduísmo, e uma de suas principais divindades era Kali (“A Negra”), deusa da morte e do renascimento. Na Europa cristã, escolheram como protetora uma figura menor do panteão católico, Santa Sara, até hoje cultuada no sul da França. Sara, como Kali, é negra. Desde então, a santa dos ciganos é chamada de Sara Kali, “Sara, a Negra”…


Casal cigano romeno. Nesse país europeu, os roma constituem 3,3% da população total, uma das maiores porcentagens do mundo

Ao redor do século 16, as comunidades ciganas na Europa se concentravam em geral em duas áreas. Numa delas, nos Bálcãs, durante o Império Otomano, elas praticavam vários ofícios, sobretudo artesanais. No fim desse século, seus membros estavam recenseados, moravam em casas estáveis e pagavam impostos regularmente. Já na segunda zona, nos principados da Valáquia e da Moldávia (hoje parte da Romênia), os ciganos viraram escravos do príncipe. Quase sempre permaneciam assim a vida toda – a menos que o príncipe os doasse (com a família) a um mosteiro cristão ortodoxo em troca da absolvição de algum pecado maior do soberano.

Com o tempo, os ciganos passaram a ser escravos também de senhores feudais, trabalhando como camponeses. Eles assim permaneceram até meados do século 19, quando, com as revoluções liberais, a escravidão foi abolida naquela área. Hoje, essas regiões abrigam cerca de 90% dos roma europeus. Totalmente sedentários, eles vivem em casas com banheiro e cozinha, têm várias profissões, cultivam a terra. Na Romênia há 1,8 milhão de roma hoje. Segundo a Interpol, o índice de criminalidade nessas comunidades, sobretudo em relação a furtos, é próximo de zero, um dos mais baixos do mundo.

 

Nomadismo e adaptação

Foi numa terceira área, relativa ao resto da Europa e a outros países, que se desenvolveram os hábitos nômades das comunidades ciganas, ditados outra vez pela necessidade. Quando adentraram esses territórios, eles encontraram situações sociais e políticas conturbadas, grande diversidade de línguas e dialetos, muita rivalidade interétnica, governos despóticos. Nesses lugares, os estilos de vida dos roma “eram vistos como o resultado de inadequação social e fracasso, e não como uma escolha positiva e desejável”, afirma a historiadora Becky Taylor, da Universidade de Londres.

Os ciganos logo perceberam que deveriam se mover com cautela e discrição. Não adquiriam terras, ficavam pouco tempo nos lugares e se dividiam em pequenas unidades, que vez por outra se reuniam, mas que deviam permanecer móveis e escapar ao máximo aos controles oficiais. O nomadismo foi, assim, uma adaptação frente à repressão, e não uma condição cultural étnica. Mesmo assim, a partir de meados do século 18, em países como França e Itália, surgiram bandos e milícias especializados em perseguir e expulsar ciganos. A repressão aumentou com a Revolução Industrial, no século 19, quando as fábricas solicitavam mão de obra assalariada e estável e não se permitiam formas de vida nômade e profissões ambulantes.


Família roma na França, em 2013. Antes difícil, a convivência com os não ciganos no país é bem mais pacífica hoje

Apesar da repressão (em algumas fases, quem matava um cigano tinha direito aos seus bens), os roma se ligaram a vários territórios, inclusive adotando seu nome, tais como os sinti do Piemonte, os kalé andaluzes, os romanichals galeses. Depois, chegaram os tempos do terror. Cerca de 500 mil ciganos foram exterminados nos campos de concentração nazistas. Também os governos fascistas europeus os perseguiram.

Muitas circunstâncias interligam os povos cigano e judeu. Ambos foram perseguidos e escravizados. Os primeiros foram acusados de pertencer à estirpe maldita de Caim; os segundos, de deicídio. Arianos degradados os primeiros, raça inferior os outros. Os nazistas infligiram a shoah (destruição) aos judeus; aos ciganos impuseram o porrajmos (devoramento). Mas se aos primeiros a Alemanha reconheceu os danos, aos segundos não houve nenhum reembolso, sob a alegação de que os roma não são um povo, uma unidade cultural, mas apenas uma condição social. Isso é verdade?

Um jornalista da National Geo­graphic organizou uma longa viagem com um rom galês e demonstrou que ele podia se comunicar com palavras, gestos e canções com ciganos de várias partes do mundo. Se os judeus tiveram a Bíblia como plataforma de identidade cultural, os roma sempre tiveram a música. “Quem influenciou e enriqueceu compositores como Brahms, Schubert, Ravel, Stravinsky, Tchaikovsky?”, desafia o cigano italiano Santino Spinelli, doutorado em musicologia, línguas e literatura moderna e professor na Universidade de Trieste. “A música cigana fundou o jazz europeu. É uma forma de comunicação. Na música existem a língua, a ética, a filosofia de vida, a narrativa, toda a nossa memória”, afirma Spinelli.

 

Herança para o Ocidente

Vários costumes roma são dignos de nota. Segundo Ernesto Rossi, presidente da associação italiana Aven Amentza, às vezes, quando um cigano morre, todos os seus bens são queimados, para a herança não criar desavença entre os familiares do morto e desníveis sociais entre os membros do grupo. Sobretudo no Leste Europeu, as sepulturas são amplas a ponto de conter a cama, a cômoda, os quadros, as miniaturas dos carros de luxo e das motocicletas. O costume lembra o dos egípcios antigos, para os quais os objetos se animavam em benefício do morto quando a tumba era lacrada.

Outra tradição cigana notável são suas leis. Elas não se sobrepõem às leis do Estado, mas os roma as respeitam ao pé da letra. Essa legislação regulamenta litígios, danos cometidos e/ou sofridos, controvérsias matrimoniais. Se o fato é grave, convocam-se os juízes de outras comunidades, para que se garanta a equidade. A pena é sempre um ressarcimento. Vencedores e perdedores devem depois pagar os custos de uma festa para a comunidade. É uma forma de reconciliação coletiva.


Elementos importantes da cultura cigana, a música e a dança influenciaram a arte ocidental, em obras de compositores como Brahms e Schubert

Ciganos são sujos? Falso. Asseio pessoal,­ ordem e limpeza do local onde vivem são regras culturais e espirituais às quais nenhum cigano se furta. Usam nada menos de 14 recipientes para lavar seus pertences. Nossas tradições de camping são copiadas da tradição cigana. Mas eles detestam ter banheiro e vaso sanitário dentro do mesmo trailer, como fazem os gadjé… As ciganas são disponíveis e se prostituem? Falso. Elas evitam contatos físicos com os gadjé, por medo das impurezas, e quase sempre se casam virgens. Trata-se de uma sociedade em boa medida machista, mas nela é censurado severamente o homem que não respeita os deveres familiares.

Os ciganos predizem o futuro? Eles não creem nisso. Quando perguntadas, as ciganas dizem: “É uma profissão, a gente finge que sim”. A clarividência, segundo estudiosos, é um meio de transformar sua diversidade em vantagem aos olhos dos gadjé. Mas parece que o antigo ditado espanhol “no creo en brujas, pero que las hay, las hay” é, na verdade, um velho refrão cigano…

 

A presença no Brasil

Os ciganos começaram a chegar ao Brasil na segunda metade do século 16, expulsos de Portugal (há registros nas décadas de 1560 e 1570 de ciganos condenados em Portugal que solicitaram a comutação da pena pelo degredo e foram enviados para cá), e tiveram o Nordeste como primeira porta de entrada. Esperava-se que eles ajudassem a povoar áreas dos sertões ocupadas por índios. Os ciganos eram considerados perigosos, mas a Coroa portuguesa os preferia aos índios.

Hoje, segundo o Censo 2010 do IBGE, há no país cerca de 800 mil ciganos. Existem assentamentos em 291 cidades, concentradas sobretudo no litoral das regiões Sul, Sudeste e Nordeste. A Bahia abriga o maior número de grupos. Em São Paulo, existem acampamentos em 25 municípios, entre eles a capital, Sorocaba e Campinas. Em geral, os atuais ciganos brasileiros são sedentários, mas algumas famílias ainda preferem morar em tendas de lona, geralmente montadas em terrenos baldios.

Até hoje, a maioria dos ciganos vive do comércio e as mulheres se dedicam à leitura das mãos. Cresce o número de indivíduos integrados à sociedade urbana e de casamentos de ciganos com não ciganos. Em São Paulo, são famosas as festas ciganas organizadas pela família Sbano, da etnia kalderash, abertas a toda a população.

Existem hoje dois grandes grupos ciganos no país. Um é o calon, oriundo da Península Ibérica, que fala o dialeto caló, é em geral nômade e ligado ao comércio de cavalos, carros, correntes e artefatos imitando ouro. Suas mulheres leem mãos em praças públicas, exibem dentes de ouro e pintas (sinais) no rosto. O outro é o roma, vindo sobretudo do Leste Europeu e que fala a língua romani. (Confira no quadro “Ciganos pelo mundo”)