O racionamento de água ronda São Paulo e várias metrópoles. A cultura brasileira do desperdício está com os dias contados. Veja o que é preciso fazer para sair da crise e garantir o abastecimento e a conservação dos mananciais.

A grande seca que assola o Sudeste do país, a mais severa dos últimos 50 anos, reduziu a 15% a capacidade do reservatório Cantareira, o maior do sistema de abastecimento da região metropolitana de São Paulo, responsável por 47% da água consumida pela população. O mais preocupante é que, apesar da volta gradual das chuvas, o nível dos reservatórios continuava a cair em março, tornando plausível a hipótese de um racionamento.

Mesmo que não ocorra, a falta de água de reposição arma um cenário pessimista para julho – o mês da Copa do Mundo. São Paulo virou o exemplo da crise de abastecimento no Brasil – país que detém 12% da água de superfície do planeta.  Na emergência, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) ofereceu um desconto de 30% na conta para quem economizar água e diminuiu o fornecimento para as cidades “permissionárias” – aquelas que compram água no atacado –, instituindo, na prática, o racionamento na cidade de Guarulhos. O governo estadual também anunciou a construção de um novo canal de 15 quilômetros de extensão para captar água do rio Paraíba do Sul, na represa Jaguari de Igaratá, com apoio federal e da Agência Nacional de Águas (Ana).

Medidas emergenciais não serão sufi cientes para superar o cenário de escassez diante de um aumento permanente da demanda. O alerta já foi dado há tempo. Benedito Braga, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e presidente do Conselho Mundial da Água, lamenta que na crise de 2004, quando os reservatórios caíram a 20%, a cidade não tenha se engajado num programa de economia de água.

“Nos últimos 15 anos o sistema vem recebendo menos água dos rios da sua bacia, e não consegue se recuperar. Entretanto, depois que a crise passa, todo mundo esquece. Quando começa a chover, o risco de desabastecimento é posto de lado e todos voltam a gastar água de forma inconsequente”. Marcelo Nakagawa, professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), ressalta que “estamos acostumados com o uso da água em abundância porque pagamos pouco por ela. Toda mudança de hábito só ocorre a partir de uma crise aguda”. Para evitar o trauma numa conjuntura de complicações climáticas crescentes, o consumo deveria ser reduzido em até 50%, induzido por campanhas de mídia e por uma legislação que aplicasse multas para desperdício. A mentalidade de que o Brasil é um país com fontes naturais inesgo táveis precisa ser mudada, pois a ampliação permanente da oferta e a água tratada custam caro. A última grande ampliação do abastecimento em São Paulo foi feita em 1993, com a implantação dos reservatórios do Sistema Alto Tietê. A próxima, a do Sistema São Lourenço, só estará pronta 25 anos depois, em 2018, e custará R$ 2,2 bilhões. 

Desperdício espaçoso 
Na cabeça dos brasileiros, seca só acontece no Semiárido nordestino. A seca no Sudeste  evidencia o limite do uso do recurso, nas cidades onde o crescimento populacional e industrial não é acompanhado pelo aumento da oferta de água tratada. Dados da ONU mostram que o uso da água cresceu a uma taxa duas vezes maior do que o aumento da população ao longo do último século. Enquanto a população global evoluirá dos atuais 7 bilhões para 9 bilhões em 2030, até 2025 o gasto de água deverá ser elevado em cerca de 50% nos países em desenvolvimento, e em 18% nos países desenvolvidos. Ainda existem 780 milhões de pessoas no mundo sem acesso a água potável. E até 2025, 2 milhões viverão em regiões com absoluta escassez. Como muitos já sabem, 70% da água disponível no planeta é utilizada para irrigação. No Brasil, o índice chega a 72%, com  uma área irrigável de 29,6 milhões de hectares. Mas de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), quase 60% da água em projetos de irrigação é perdida por fenômenos como a evaporação. Uma redução de 10% no desperdício já poderia abastecer o dobro da população atual.

O que poucos sabem é que o Brasil é um caso desastroso de desperdício agrícola, “uma das maiores ineficiências na irrigação”, diz Giulio Boccaletti, autor do relatório Charting Our Water Future, publicado pela International Finance Corporation. “O Brasil gasta 14,5 milhões de metros cúbicos de água para cada mil hectares irrigados, muito mais do que a Índia, a África do Sul e a China. Só 11% das terras irrigadas brasileiras usam tecnologias efi cientes”, diz o especialista. O mapa do estresse hídrico da Agência Nacional de Águas identifica dois tipos de situação crítica, a quantitativa e a qualitativa. No Nordeste, impera o estresse quantitativo, com baixa disponibilidade hídrica para atender à demanda. No Rio Grande do Sul, a alta demanda de irrigação para as culturas de arroz também confi gura uma situação de carência grave. Em várias cidades há problemas com a qualidade das águas devido à poluição por esgotos. Já nas regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre, Distrito Federal e Goiânia, a crise é tanto quantitativa quanto qualitativa, porque a demanda de água aumenta com a enorme carga de esgotos não tratados jogada nos rios, comprometendo a qualidade da água e exigindo investimentos para tratamento.

O crescimento das cidades está engolindo os mananciais e poluindo as águas tanto de superfície quanto subterrâneas. “Na imensa maioria dos municípios brasileiros com menos de 50 mil habitantes, os sistemas de abastecimento são precários”, ressalta Sérgio Ayrimoraes, coordenador do Atlas Brasil de Abastecimento Urbano de Água. “Cerca de 73% dos municípios são abastecidos por águas superfi ciais sujeitas a todo tipo de poluentes.”

Soluções práticas
Para superar a crise de demanda, São Paulo aposta no Sistema São Lourenço, que aumentará a oferta com 4.700 litros por segundo de água tratada, o suficiente para abastecer mais 1,5 milhão de paulistanos. A Sabesp fornece água para 364 dos 645 municípios do Estado e vende o insumo para cidades “permissionárias” como Guarulhos e de uma capacidade instalada de produção de 73 mil litros de água tratada por segundo. Na região metropolitana, o sistema interligado permite transferir água de reservatórios por meio de túneis e estações elevatórias, viabilizando o manejo das reservas em situações de crise.

O Sistema São Lourenço captará água do rio Juquiá, em Ibiúna, a 80 quilômetros, na bacia do rio Ribeira do Iguape. Já o sistema Cantareira vai captar água a 90 quilômetros, no rio Jaguari, em Extrema (MG). As fontes estão cada vez mais longe e o transporte do insumo, mais caro. Frederico Fábio Mauad, professor da Escola de Engenharia da USP de São Carlos, cobra uma política constante que assegure o abastecimento. Não é possível depender só das chuvas. É preciso recarregar as bacias hidrográficas e implementar programas de proteção às nascentes. “O planejamento tem que anteceder a crise”, diz Maud. “Temos tecnologia avançada e técnicos. A questão é de prioridade pública. Vemos o crescimento econômico da cidade e da população, mas não vemos medidas que deveriam ser tomadas sempre, não durante crises. O racionamento é o pior e último recurso. Signifi ca que tudo oque foi planejado e feito deu errado”, critica. Para especialistas estrangeiros como Giulio Boccaletti, a solução requer o amadurecimento da sociedade. Há três campos de ação. Primeiro, é preciso fomentar a economia no uso, usando incentivos e taxação para reduzir o desperdício de água. Em segundo lugar, é preciso expandir a produção de água de reúso industrial, como faz o Projeto Aquapolo, da Sabesp e da Odebrecht Ambiental, que converte água de esgoto do rio Tietê em insumo para as indústrias do polo petroquímico de Capuava, em Mauá. No Rio de Janeiro, a Estação de Tratamento de Alegria, da companhia estadual de águas Cedae, também vai converter esgoto em água de reúso para abastecer as obras do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), em Itaboraí, e a reurbanização do Porto Maravilha. O uso de água reciclada aumenta a disponibilidade de água tratada para o consumo da população e gera lucros para as empresas. 
 

Um terceiro foco de atuação é reduzir as perdas por vazamento nas redes. Em todos os Estados há desperdício. Na região Norte,  onde a água existe em abundância, os índices são assustadores: o Amapá perde 76% da água da sua rede pública e o Acre, 62,78%. Alagoas perde 65,87%. O Rio de Janeiro, quase a metade do que trata, 46,95%. O Estado com menor índice de perdas é Mato Grosso do Sul, com 19,65%. Em São Paulo, a Sabesp divulga perdas de 24%, mas o índice real chegou em 31,2% em 2013, segundo a Agência Reguladora de Saneamento e Energia de São Paulo. Em média, o país perde 37,57% da água que circula pelas redes. Se essas perdas fossem reduzidas, não se cogitaria em racionamento. 

Em países com redes efi cientes como Japão e Alemanha, as perdas são de 7%; no Reino Unido chegam a 16% e na França, a 26%. A comparação revela uma faceta “subdesenvolvida” do trabalho de conservação. Japoneses e alemães não lidam com fraude, “gatos” ou submedição de água. Quando visitam o Brasil, os técnicos se surpreendem com a quantidade de artimanhas para desviar água e a criatividade dos fraudadores. Na área da Sabesp, os vazamentos respondem por 20,3% das perdas; já as fraudes, “gatos” e submedição configuram 10,9% de perdas. Desde 1990, a companhia paulista promove ações para controlar e reduzir perdas. O Programa Corporativo de Redução de Perdas de Água, desenvolvido com R$ 5,9 bilhões oriundos do BNDES e da Agência de Cooperação Internacional do Japão, prevê a renovação da infraestrutura, substituição de redes e ramais, pesquisas de vazamentos não visíveis, reparos em vazamentos, implantação de melhorias no sistema de distribuição, redução e controle de pressão, substituição de hidrômetros e combate a fraudes.

Investimento pesado
A Sabesp investe R$ 2,5 bilhões por ano no abastecimento de água e na coleta e tratamento de esgoto das cidades em que atua. Isso signifi ca 30% de tudo que é aplicado em saneamento no Brasil, embora a empresa atenda apenas 13% da população. Esse investimento poderia ser ainda maior se tributos federais, como PIS, Pasep, Cofi ns e Imposto de Renda, deixassem de ser cobrados do saneamento, pois sobraria R$ 1,2 bilhão por ano para investir. As Parcerias Público-Privadas (PPP) podem ser fontes importantes de recursos. Em 2011, a PPP Alto Tietê agregou 5.000 litros de água potável a cada segundo ao sistema, volume sufi ciente para abastecer 1,7 milhão de pessoas, ao custo de R$ 418 milhões. Desde 2009, a companhia estatal investe nas obras de ampliação da Estação de Tratamento Taiaçupeba, em Suzano, que agregará 17 quilômetros de novas adutoras e quatro reservatórios capazes de armazenar e tratar 70 milhões de litros de água. Na área educativa, o Programa  de Uso Racional da Água diminuiu em 14,3% o gasto de água na Grande São Paulo. Indústrias, prédios públicos e estabelecimentos comerciais foram convencidos  a adotar equipamentos econômicos como torneiras e chuveiros com acionamento automático. Escolas, hospitais, postos de saúde e penitenciárias também já adotaram o programa. Há muito a fazer para evitar a crise anunciada do racionamento, que está a caminho. São Paulo sofre a maior crise de demanda do país e dispõe da maior capacidade para lidar com o problema. Resta saber se vai dar conta do desafio.