Longe de perpetrar atentados ou desafiar abertamente a democracia, uma rede de organizações procura lançar as bases para “revolução cultural” de ultradireita. Órgão de segurança interna alemão as registra como ameaça.Um breve subcapítulo do mais recente relatório anual da agência de inteligência doméstica da Alemanha sugere que uma nova sensibilidade começa a permear as forças de segurança do país: pela primeira vez, o Departamento Federal de Proteção da Constituição (BfV) incluiu uma seção sobre a “Nova Direita” em seu catálogo de extremistas políticos.

Segundo o órgão, esse termo passou a designar uma “rede informal” de indivíduos e organizações que não perpetram atentados violentos, mas alimentam uma “revolução cultural” de direita, representando uma ameaça a Lei Fundamental alemã.

O termo é tudo, menos novo: cunhado pela primeira vez na França para designar um contramovimento às manifestações estudantis esquerdistas da década de 1960, ele se transformou uma corrente do espectro político direitista que tenta criar uma ponte entre a direita radical e a legitimidade democrática.

Segundo o relatório do BfV, publicado em meados de junho, a Nova Direita também se define por sua sutileza: “Associações extremistas de direita não são sempre óbvias, mas costumam chamar a atenção por violar os princípios da dignidade humana, do Estado de direito e da democracia, em diversas formas de expressão.”

Mais sutil do que populistas e extremistas

Axel Salheiser, diretor de pesquisa do extremismo de direita do Instituto para a Democracia e a Sociedade Civil (IDZ), saudou a nova inclusão no relatório do departamento federal: “Esses têm certamente sido pontos cegos da proteção da Constituição até agora. Estamos falando de uma zona cinzenta ou de um contínuo entre o centro burguês e as margens extremas da ultradireita, e mostra que as categorias relevantes para a proteção do Estado estão sendo reexaminadas.”

Como explicou Salheiser à DW, a Nova Direita se caracteriza pela estratégia expressa de se apresentar como classe média, patriótica e conservadora, ao mesmo tempo que promove “posições radicalmente antidemocráticas, étnico-racistas e antiliberais”.

Destaca-se entre estas a teoria de conspiração da “Grande Substituição”, segundo a qual uma elite poderosa e oculta (muitas vezes especificada como judaica) estaria tentando desalojar a população etnicamente branca através de imigração da África e do Oriente Médio,

Embora todas sejam descritas como “casos suspeitos”, nenhuma das organizações citadas pelo BfV nessa nova subseção do relatório está proibida ou foi colocada sob vigilância estatal secreta. Apenas uma, o Movimento Identitário, já foi mencionada em publicações anteriores do departamento.

Movimento Identitário Alemanha (IBD)

O Movimento Identitário é uma organização de âmbito europeu que, menos de uma década atrás, conquistou notoriedade com ações públicas sensacionalistas, como flash mobs, visando especificamente mobilizar a juventude.

O BfV registra a existência de 575 membros do IBD na Alemanha, enquanto o website do movimento computa 300 ativistas e mil adeptos. Sua influência vai mais longe, contudo, e a plataforma ostenta estar “profissionalizando a resistência”. O grupo mantém sucursais em todos os 16 estados alemães, assim como uma agência de imprensa, uma consultoria financeira, uma loja online de artigos merchandise e até mesmo sua própria cerveja artesanal.

Seu “blog de teoria” expõe uma ideologia baseada no princípio do “etnopluralismo”, segundo o qual todas as nações devem preservar sua identidade cultural (há quem diria “racial”) e a imigração precisa ser contida. O departamento alemão de proteção da Constituição considera essa definição biológica de identidade nacional uma “violação do princípio da democracia”.

COMPACT

O COMPACT se estabeleceu como o veículo de imprensa mais lido da Nova Direita alemã. Fundado em 2010, inclui o website COMPACT Online e o canal de Youtube COMPACT TV, além de uma revista mensal com uma circulação de 40 mil exemplares. Distribuída gratuitamente em muitas bancas de jornal, ela se apresenta como uma “revista pela soberania”, aparentemente calcada na americana Breitbart. Suas manchetes indicam um viés inegavelmente unilateral.

A operação de paraquedas do Greenpeace que quase causou um acidente numa partida da Euro 2020 na Alemanha, por exemplo, foi descrita como “eco-terrorismo”. Outro artigo, de junho de 2021, afirma que a reeleição de Donald Trump teria sido “roubada” através de fraude, apesar da ausência de evidências, e especula como o bilionário poderá retornar à presidência dos EUA.

Porém foi a agitação contra o governo e o sistema político alemães que atraiu a atenção do BfV, em especial pelo emprego de uma “retórica de resistência e revolução”. O fato ficou especialmente patente quando, em protestos anticonfinamento do movimento Querdenken, o cofundador do COMPACT Jürgen Elsässer falou de um “vento de mudança” contra o “regime Merkel”, “como no outono de 1989”.

Na análise do BfV, com essa alusão o direitista equiparou, para todos os efeitos, a derrubada da ditadura comunista da Alemanha Oriental e a destruição da ordem democrática da Alemanha. O serviço de inteligência doméstica também identificou conexões entre o COMPACT e políticos de ultradireita como Björn Höcke, do partido Alternativa para a Alemanha (AfD), ou com o IBD. Ambos recebem cobertura positiva na revista.

Ein Prozent

O grupo do “Um Por Cento”, fundado em 2015 e com ligações estreitas com o IBD, se define como “plataforma profissional de resistência pelos interesses alemães”. Seu nome parte da tese que bastaria o apoio de 1% da população do país (cerca de 830 mil) para virar a maré da opinião pública em favor das metas da organização, a qual alega atualmente contar com 52 mil apoiadores.

Assim como outros grupos listados pelo BfV, o Ein Prozent dá grande ênfase ao profissionalismo em seu marketing digital, conexão em rede e publicações. Os projetos listados em seu website incluem um canal do Youtube, um podcast (um episódio recente inclui uma entrevista com Björn Höcke) e um videocast produzido pelo “primeiro estúdio cinematográfico patriótico”.

Além disso, diversos projetos visam promover artistas de direita, como um álbum de rock produzido e distribuído independentemente e a impressão de um livro de histórias em quadrinhos. O Ein Prozent recruta, ainda, voluntários para atuarem como “observadores eleitorais”. Após a recente eleição regional na Saxônia-Anhalt, o grupo questionou o desempenho relativamente fraco da ultradireitista AfD, evocando suas altas taxas de popularidade em pesquisas de opinião anteriores.

Da mesma forma que todos os demais grupos da lista, o Ein Prozent considera a “imigração em massa”, em especial de países muçulmanos, como a maior ameaça à sociedade alemã. Para o BfV, esse difamação generalizada dos imigrantes infringe os princípios de igualdade e dignidade humana da Lei Fundamental alemã.

Institut für Staatspolitik (IfS)

O “Instituto de Política de Estado” (IfS) é um think tank intelectual de ultradireita fundado em 2000, pelo autor e ativista Götz Kubitschek, entre outros. Na época com 30 anos, ele se transformou numa figura de proa da Nova Direita, tendo influenciado o desenvolvimento ideológico tanto do Ein Prozent quanto do IBD. Além disso, em 2015 e 2016 participou regularmente como orador das passeatas do movimento dos “europeus patrióticos contra a islamização do Ocidente” Pegida, e tem conexões estreitas com Björn Höcke, da AfD.

O IfS é sediado na cidade natal de Kubitschek, Schnellroda, no estado da do Leste alemão Saxônia-Anhalt, onde promove conferências regulares e publica estudos e outros artigos acadêmicos. Entre os oradores dessas “academias” estão membros da seção nacionalista linha-dura da AfD, conhecida como “a Ala”.

O think tank se considera um corretivo para o que vê como tendência esquerdista da política estabelecida, postulando que as siglas conservadoras tradicionais alemãs, como a União Democrata Cristã (CDU), da chefe de governo Angela Merkel, e o Partido Liberal Democrático (FDP), adotaram o multiculturalismo.

“Nosso trabalho educacional se orienta numa direção única: a preservação do Estado alemão”, afirma o IfS em seu website, acrescentando que “sem uma identidade nacional, não há futuro para a Alemanha”. Do ponto de vista do órgão de segurança interna alemão BfV, essa ideologia, que nega às minorias étnicas o direito de pertencer a uma identidade nacional, também viola os princípios de igualdade e dignidade humana estabelecidos na Lei Fundamental.