Atividades que combinam realização de objetivos, desafios e recompensas estão sendo cada vez mais adotadas para engajar pessoas e mudar comportamentos. Mas por que isso funciona e dá resultados?

Na escola e na empresa, entre executivos, publicitários, gestores de recursos, professores e alunos, um assunto vem ganhando importância nas conversas: a gamifi cação, ou gamifi cation, a estratégia de aplicar elementos do mundo dos games – tais como missões, conquista de recompensas e classifi cação em rankings – para atrair a atenção das pessoas e engajar o público, seja ele um consumidor, um funcionário ou um estudante. Muitos recursos tecnológicos utilizam esses componentes. Basta pensar no aplicativo de smartphone Waze, misto de GPS com rede social, muito usado para compartilhar informações em tempo real sobre o  trânsito. Quanto mais os usuários interagem na plataforma, mais pontos acumulam e mais importantes se tornam na “escala socia” do programa. Os aplicativos Foursquare e Busuu, de idiomas, também  são exemplos de recursos eletrônicos que funcionam dessa forma.

A transposição de elementos lúdicos, contudo, não depende só de plataformas digitais. Em 2010, em Estocolmo, na Suécia, uma montadora de automóveis usou o recurso para induzir os motoristas a diminuírem a velocidade. Aqueles que cumprissem a meta de dirigir a 25 km/h, no máximo, em avenidas da cidade, poderiam ganhar prêmios em dinheiro – uma espécie de multa às avessas. Nessa experiência, o controle da velocidade foi feito da forma tradicional, com câmeras e radares, e os recursos vieram do fundo em que é depositado o dinheiro pago pelos infratores: as pessoas que descumprissem a orientação não seriam multadas, apenas deixariam de participar da loteria. Isso foi sufi ciente para reduzir a velocidade média, antes de 32 km/h.

Ferramenta nova
“A gamifi cação é uma abordagem dinâmica que mistura os melhores propósitos dos games, dos programas de fi delidade e da economia comportamental. É particularmente útil em situações que requerem uma mudança de comportamento ou de processos”, diz um dos principais especialistas do assunto, o canadense radicado nos Estados Unidos Gabe Zichermann, autor de livros que são referência entre os adeptos da técnica.

Em 2011, o Grupo Fleury, de medicina diagnóstica, gamificou um programa interno desenvolvido para ouvir as sugestões dos colaboradores que não participam das tomadas de decisões. Chamado de Central de Ideias, o programa ganhou uma interface interativa para as pessoas apresentarem e venderem ideias como se estivessem num pregão. Nele, podem ser publicadas propostas para estreitar o relacionamento com os clientes, aumentar o retorno fi nanceiro da empresa, melhorar os processos operacionais e tornar as atividades do grupo mais sustentáveis.

Utilizando uma moeda virtual, os funcionários do Fleury têm a opção de comprar ou rejeitar a proposta dos colegas, dependendo da avaliação que fizerem. Quanto maior o número de compradores, mais valiosas as sugestões e, consequentemente, maior o retorno “‘fi nanceiro” daqueles que apostaram nela. Os recursos acumulados podem ser convertidos em vouchers que dão direito a um jantar com acompanhante ou um dia num spa, para citar alguns exemplos. 

Mas, segundo Patrícia Maeda, gerente de Inovação do Fleury, a maioria das pessoas não está interessada nas recompensas reais. O que as motiva mesmo é a interação e “a possibilidade de ver sua proposição implantada”, o que pode acontecer quando uma iniciativa tem 80% de aprovação dos colegas e sua viabilidade é atestada. O reconhecimento é a grande força motivadora. A sugestão de Alessandra Maldonado, de 43 anos, e de outras duas colegas, por exemplo, foi implantada em novembro de 2013 e ajudou a empresa a reduzir o desperdício de gelo seco usado na conservação de amostras e de outros materiais durante o transporte. Antes, cada setor retirava a quantidade do insumo julgada necessária. Com o controle estabelecido pelas funcionárias, a cada nova retirada do produto foi possível diminuir os excessos. A ideia foi uma das 3.085 postadas em 2013, ano em que 43,8% dos colaboradores, de um total de 11.225, participaram. Sucesso total.

Jogar para aprender
O pedagogo Luciano Meira, professor do Programa de Pós- Graduação em Psicologia Cognitiva da Universidade Federal de Pernambuco e Ph.D. em Educação Matemática, é um dos entusiastas da utilização da técnica em sala de aula. Ele defende que a ferramenta lúdica tem o poder de inserir o aluno no cerne do problema, criando um senso de propósito imraramente presente na escola.

Meira relata uma visita que fez à escola Quest to Learn, em Nova York (EUA). Nessa instituição, todo conhecimento é transmitido e construído como em um jogo. Na aula de geografi a, ele viu uma tarefa ser transformada em missão e os alunos participarem como se estivessem brincando. No contexto de uma narrativa, o professor apresentou um problema que exigia dos estudantes o desenho e o estudo de mapas. Sem isso, o desafio não teria como ser solucionado. “Teria sido uma experiência totalmente diferente se o educador tivesse simplesmente apresentado os mapas para dar mais uma aula de geografi a”, diz Meira. O pedagogo brasileiro reconheceu os três “efes” descritos por Gabe Zichermann para a realização
de uma estratégia bem-sucedida de gamificação: fun (diversão), friends (amigos; conceito, no contexto, próximo à interação) e feedback. Meira destaca a importância que a nova geração dá a esse último componente. Os jovens são imediatistas e querem saber como estão progredindo, o que funciona como um estímulo para a continuação da atividade.

Trata-se de uma atitude típica de nativos digitais que mostram peculiaridades no funcionamento neurológico, diz o médico Leandro Teles, membro da Academia Brasileira de Neurologia (ABN). A atenção e a capacidade de elaborar estratégias são diferentes nesse grupo, para não falar da coordenação motora. Por isso, não é incomum que os jovens considerem a leitura uma atividade maçante e cansativa. “Essa é uma habilidade que pode estar carente em pessoas muito ligadas à tecnologia”, diz o neurologista.

Trivial que funciona
A nova geração está criando oportunidades para a gamificação e também implantando-a nas empresas. Carlos Augusto Santos, CEO da consultoria de gamificação Ludium, explica que a chegada ao mercado desses profissionais acelerou o entendimento das empresas sobre o conceito e a percepção de que ele atende aos anseios por satisfação e diversão nas relações e nos processos do ambiente de trabalho. 

O prazer, tão valorizado pela geração Y, é de fato um dos elementos que explicam por que a combinação de objetivos, desafios e recompensas funciona. Teles afirma que essas situações ativam o sistema dopaminérgico, responsável pelas sensações de prazer e bem-estar. Com mais dopamina no cérebro, as pessoas também ficam mais criativas, concentradas e propensas a aprender e memorizar conteúdos. “Em projetos bemsucedidos, as pessoas podem nem perceber que por meio de um programa de treinamento corporativo, por exemplo, estão exercitando habilidades que as tornarão mais qualificadas. Elas apenas se divertem diz Zichermann.

O fato de colocar o indivíduo no centro da situação – na gamificação, a ênfase é dada à experiência do usuário, lembra Santos – é mais um fator positivo, além das recompensas. Mas, como atesta a executiva do Fleury ao relatar o caso dos funcionários que não trocam seus pontos por prêmios, não são exatamente bens materiais que motivam, embora eles possam estar presentes e sejam sempre bem-vindos. Quando se propõem a cumprir uma meta ou a participar de uma competição em rede, o valor mais apreciado é o reconhecimento social. Além de ser o elemento mais importante, o status é o mais barato. Afinal, qual o custo de conceder ao usuário uma estrelinha a mais para ele exibir em seu perfil?
Justamente por esses aspectos, a psiquiatra Silvia Jardim, do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro critica a gamificação. “Isso é um refinamento dos métodos de exploração e de dominação do trabalhador; seria melhor se os funcionários fossem remunerados financeiramente”, diz a médica, coordenadora do Programa de Atenção à Saúde Mental dos Trabalhadores da universidade. “Sem contar que a técnica se assemelha a instrumentos de condicionamento, adestramento. Estão lidando com homens ou ratos?”, brinca. Sobre isso, Zichermann reconhece que há, sim, na tática, componentes do condicionamento clássico, baseados em estímuloresposta. “Eles também estão presentes em todos os videogames eprogramas de mudança de comportamento. Mas criar um sistema gamificado, que funcione em longo prazo e dê resultados, vai além de trabalhar com condicionamento”, defende.

Com a disseminação do conceito, a possibilidade de tornar as pessoas dependentes de estímulos é uma preocupação pertinente, na opinião de Teles. “Nosso cérebro reflete, em grande parte, estímulos bombardeados pelo ambiente. Isso gera padrões cognitivos e emocionais que determinarão nossa tomada de decisões e interação com o mundo”, afirma. Mas, como nem tudo pode ou deve ser gamificado, como dizem os especialistas, é pouco provável que o mundo a nossa volta se transforme em uma grande missão performática. As técnicas continuarão restritas a algumas situações e, a despeito das críticas, seguirão engajando as pessoas. Como diz Silva Jardim, citando Freud e Jacques Lacan, todos somos movidos por objetos de desejo, e eles estão contemplados nas recompensas desses programas.