A Terra vista de Marte é minúscula. Nós, humanos, no espectro do universo, menores ainda. Há menos de um ano, a Nasa detectou a existência de água em Marte. E se existe água, existe sentido para a vida. Na grandeza cósmica, somos pequenos, insignificantes. Somos pequenos, sim, mas também somos grandes. Se nos olharmos com outras lentes, veremos que significamos muito. Na Terra, cada vida tem a importância de um universo. O microcosmo do planeta já é grande o bastante. Tanta complexidade às vezes nos confunde. Este início de milênio é daqueles momentos em que a crença na humanidade é questionada. Diante da violência, quase sempre gratuita, da intolerância, do desrespeito à natureza, é inevitável perguntar: qual é o sentido disso tudo? Qual é o sentido da vida?

Acima, cena de O Sentido da Vida, filme do português Miguel Gonçalves Mendes inspirado por seu pânico da morte. À direita, Mendes e Giovane Brisotto, portador de paramiloidose familiar e personagem principal da obra
Cena de O Sentido da Vida, filme do português Miguel Gonçalves Mendes inspirado por seu pânico da morte. Fotos: divulgação / arquivo pessoal

“Quanto mais louca e imprevisível é a vida, mais pensamos sobre o que ela significa e sobre a nossa transitoriedade aqui”, diz a enfermeira e Ph.D. em política de saúde pública Norma Bowe. Idealizadora e professora do curso Death in Perspective (Morte em Perspectiva), na Universidade Kean, em Nova Jersey (EUA) – com lista de espera de três anos –, Norma acredita que somente ao encararmos a morte podemos descobrir o significado da vida. “Nós, humanos, nos consideramos invencíveis até sofrermos uma primeira grande perda. Só assim para entender o real significado da mortalidade”, afirma.

Foi o pânico da morte que levou o cineasta português Miguel Gonçalves Mendes a iniciar sua nova obra, O Sentido da Vida, que deverá estrear em 2017. “Quando entro em um avião, eu choro. É vergonhoso! Principalmente ao lado do Giovane Brisotto, personagem central do filme, portador de paramiloidose familiar, uma doença hereditária rara e sem cura”, confessa.

De origem portuguesa, a paramiloidose familiar veio para o Brasil há 500 anos, mas pouco se conhece da doença no país. “Queremos divulgá-la aqui e, por meio dela, falar sobre processos históricos que nos levaram a estar todos conectados, como a globalização”, diz. A ideia do diretor com esse filme é criar uma cápsula do tempo para cristalizar o mundo esquizofrênico de hoje – nas palavras dele –, com o que há de bom e ruim.

A produção reúne outras sete realidades diferentes para mostrar formas distantes, ou não, de lidar com a vida. Os personagens já confirmados são: o escritor português Valter Hugo Mãe; a artista japonesa Mariko Mori; o juiz espanhol Baltasar Garzón; o músico islandês Hilmar Örn Hilmarsson; e o astronauta dinamarquês Andreas Mogensen.­

“Circulando pelo mundo, vi que cada país é mais xenófobo e racista do que o outro”, diz Mendes. Para ele, a xenofobia foi a razão real para o Brexit (a saída do Reino Unido da União Europeia), e não a questão econômica. Justamente os ingleses, que colonizaram e exploraram o mundo inteiro, agora não querem aceitar os estrangeiros. “A Europa toda fez isso, inclusive Portugal. E vou fazer uma crítica ao Brasil: continua sendo um país de colonos brancos, matando índios.”

Fotos: divulgação / arquivo pessoal
Mendes e Giovane Brisotto, portador de paramiloidose familiar e personagem principal da obra. Fotos: divulgação / arquivo pessoal

Mendes questiona o que será do mundo se o candidato Donald Trump, conhecido por sua ideo­logia racista, ganhar a eleição presidencial nos Estados Unidos. Ou se o Brasil tiver um governante evangélico, como o deputado Jair Bolsonaro, que prega a intolerância aos homossexuais, homenageia torturadores e desrespeita as mulheres. “Será que vamos evoluir ou vamos regredir, como do Império Romano para a Idade Média? A humanidade tem de passar por uma revisão, estamos perdendo o senso de comunidade, não podemos deixar um igual morrendo de fome. Temos de pensar se queremos paz social”, argumenta.

O filme pode ter surgido como uma forma de terapia pessoal para Mendes, mas ele tem tudo para ser uma verdadeira terapia em grupo, em que cada um encontra respostas para si. Mendes diz que até agora não conseguiu exorcizar o medo da morrer, mas já deixou de ser tão ansioso. “Aprendi a ser mais paciente, dar tempo para as coisas maturarem. Neste mundo rápido e acelerado em que vivemos, geralmente, não há muito espaço para isso.”

“O sentido da vida é viver”

Miguel Gonçalves

PARADAS OBRIGATÓRIAS

No cenário de demandas do cotidiano e imposições da sociedade, como encontrar espaço e tempo para refletir sobre a própria vida? “Vivemos de forma automática, do jeito que alguém disse que temos de viver, com uma sensação de escassez de tempo, mas não devemos esperar a aposentaria para nos questionarmos sobre qual é o sentido da nossa vida”, afirma Gabriel Carneiro Costa, escritor, com especialização em coaching profissional, pessoal e familiar e estudos em educação emocional, psicologia positiva e análise transacional.

Assim como não devemos nos questionar sobre isso apenas no fim da vida, não podemos achar que haverá uma única e definitiva resposta para a vida inteira, muito menos que exista uma resposta “certa” aplicável a todo mundo. Para Costa, o sentido da vida é o tipo de pergunta que não deve ser respondida, mas mantida como pergunta. Ao longo da existência, vários dilemas vão surgir, e a resposta vai mudar com o tempo. Por isso, é preciso refletir constantemente sobre essa questão em diferentes fases da vida. “O sentido da vida é a própria caminhada, deve estar conectado às coisas que você escolhe no seu dia a dia. O sonho já é outra coisa, é um ponto de chegada, é finito”, expõe.

A proximidade da morte é quando muitas pessoas começam a refletir sobre o sentido da vida, mas cada um deve se fazer essa questão ao longo da sua vida
A proximidade da morte é quando muitas pessoas começam a refletir sobre o sentido da vida, mas cada um deve se fazer essa questão ao longo da sua vida

Mas Costa alerta: a afirmação “o sentido da vida é ser feliz” não vale como resposta. “Conhece alguém para quem o sentido da vida seja ser infeliz? A questão é: o que é ser feliz pra você?”, provoca (leia quadro à pág. 42). No processo de mudança que ele desenvolve, a maioria dos seus clientes tem entre 35 e 55 anos. “Parece que inicialmente temos de realizar um compromisso social – do que os outros esperavam da gente –, para depois fazer uma reflexão mais profunda sobre os próprios desejos. E aí assumir o que queremos ser”, analisa.

6

Caso contrário, corremos o risco de chegar ao leito de morte engrossando o coro do arrependimento mais comum, como Bronnie Ware, enfermeira especializada em cuidados paliativos, afirma no livro Antes de Partir (Geração Editorial): ter vivido como os outros esperavam e não ter tido a coragem de viver uma vida fiel a si mesmo.

 

PERCALÇOS DO CAMINHO­

Mas prepare-se: honrar seu propósito de vida implica perdas. Você terá de abrir mão de convites, oportunidades, hábitos e até mesmo do dinheiro para viver mais de acordo com o sentido que vê na sua vida. Lidar com as renúncias é o maior desafio de se ligar à própria essência. “No sentido filosófico, todo mundo considera que o dinheiro tem menos importância, mas, na esfera prática, ninguém quer diminuir a renda que recebe”, diz Costa.

“Quem você quer ser?” é uma questão que deve vir antes e está acima do que você quer ter, seja cargo, salário, casa, marido/esposa, filho, etc. “As pessoas sabem que filho querem ter, mas não pensam que pai/mãe querem ser. Sabem que marido/esposa querem ter, mas não pensam em quem querem ser na relação. Todos estão comprometidos com a mudança do outro. Mas a questão aqui é olhar para si”, aponta.

Olharmos para dentro inclui nos perguntarmos o que podemos fazer para melhorar o relacionamento ou o emprego em que estamos, antes de trocar tudo o tempo todo, como os integrantes da nova geração (conhecida como Geração Y) costumam fazer. “Devemos trabalhar com atitude em tempo presente, sem perder a visão de médio e longo prazo”, observa Costa.

“O fato de estarmos aqui apenas se justifica pela existência
do outro”

Valter Hugo Mãe, escritor português

Essa urgência de “ser feliz” dos jovens pode ser prejudicial à vida deles, mas denota uma liberdade maior para viver os próprios caminhos atual­mente. Renato Janine Ribeiro, professor de filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e ex-ministro da Educação, lembra que, até pouco tempo atrás, a maior rea­lização que a sociedade oferecia às mulheres eram o casamento e os filhos. Hoje não é mais assim, mas pode ocorrer o contrário: a mulher que decide cuidar da casa e dos filhos costuma ser criticada por isso. “As imposições da sociedade mudam com cada época.”

Para o escritor Gabriel Carneiro Costa, cada pessoa deve descobrir o que ela mesma considera ser feliz
Para o escritor Gabriel Carneiro Costa, cada pessoa deve descobrir o que ela mesma considera ser feliz

Voltando mais para trás, por muito tempo, as religiões determinavam o sentido da vida, sem deixar espaço para que cada um refletisse sobre isso. Por isso, Janine enfatiza que a pergunta correta é: “Qual é o sentido da SUA vida?”. Segundo ele, a visão dominante hoje no meio filosófico é que o sentido da vida não é dado, cada um constrói o seu. Cabe até mesmo saber se existe ou não.

“A evolução nunca será um ponto de chegada, mas a própria jornada, e é isso que considero o sentido maior da minha vida”

Gabriel Carneiro Costa: escritor e coach 

Para cada um achar seu caminho, Janine sugere duas questões essenciais: “O que realmente me alimenta?” e “Como eu alimento o mundo, ou seja, o que eu deixo de legado para os outros e para o mundo?”. Mas ele pondera que existe um elemento muito forte de acaso, uma sucessão de situações externas sobre as quais não temos controle e que podem afetar as oportunidades a que temos acesso.

Mesmo diante das surpresas desagradáveis que a vida lhe apresentar, bagunçando todos seus planos e pondo seus sonhos em xeque, é preciso ser capaz de encontrar propósito e significado em cada fase. “Somos responsáveis pelas nossas alegrias e decepções, pelos bons e maus momentos que vivemos”, afirma Norma. “Temos sempre o poder de decidir como reagir à adversidade. Devemos parar de culpar os outros e tomar a responsabilidade pela forma como vivemos.” Afinal, a felicidade está muito mais alinhada às nossas decisões do que ao destino que nos apresenta.

2