Em um subúrbio de Paris, em um cofre-forte subterrâneo fechado por três chaves, cuja posse cabe a três pessoas distintas, repousa o “Grand K” e um instigante mistério científico. Aos olhos de qualquer desconhecedor da metrologia, a ciência das medições, o objeto protegido por três redomas de vidro no Bureau Internacional de Pesos e Medidas (BIPM, na sigla em francês), no pavilhão de Breteuil, em Sèvres, não passa de um pequeno cilindro de 39 milímetros de altura e diâmetro, composto de 90% de platina e 10% de irídio. No entanto, esse artefato brilhante raramente tocado por seus guardiões tem um valor inestimável: é o padrão utilizado no mundo todo como referência de medida do quilo, o peso perfeito – Le Gran K.

O pequeno cilindro à esquerda, de 39 milímetros de altura,

feito de platina e irídio, encapsulado em três redomas de

vidro, é o venerável Le Grand K o pai de todas as medidas.

O mistério é o fato de o Grand K não apresentar mais a mesma quantidade de massa de quando foi fabricado em 1889, na Inglaterra. Ou seja, algo mudou em 122 anos. A mudança foi identificada nos procedimentos de verificação do peso do protótipo que acontecem em média a cada 40 anos – único momento em que ele deixa seu cofre. Nessa ocasião, o Grand K é comparado a outros protótipos nacionais disseminados ao redor do mundo, que são enviados à França para o procedimento, e às seis cópias “testemunhais” que são mantidas nas mesmas condições de conservação do padrão internacional.

Antes da verificação, todos são cuidadosamente lavados a fim de eliminar qualquer tipo de contaminação capaz de alterar a massa. Uma mistura de álcool e éter é aplicada por um pedaço de pele de camurça, seguida de uma lavagem a vapor, como explica Alain Picard, diretor do Departamento de Massa do BIPM. Após uma semana da lavagem, o cilindro é pesado por balanças especiais conhecidas como “comparadoras”, capazes de medir com precisão uma parte em um bilhão.

Os resultados das últimas verificações confirmaram a tendência da perda de massa do Grand K em relação às cópias. Ou então, de acordo com a definição da unidade de massa no sistema métrico, trata-se do resto do universo que está ficando mais pesado. Como essas balanças medem apenas a diferença de peso entre vários objetos, não se sabe ao certo quem está perdendo ou ganhando massa.

A variação identificada desde a fabricação do protótipo equivale ao peso de um grão de areia, 50 microgramas, uma diferença de aproximadamente meio micrograma por ano. Quando se trata do quilo do arroz e do feijão, a quantia é insignificante, mas pode se tornar preocupante nos próximos 20 anos para o desenvolvimento de tecnologias de ponta que dependem da exatidão das medidas, por exemplo.

Não se sabe ao certo o motivo da mudança de massa do protótipo. Uma das hipóteses levantadas pelos cientistas está ligada ao fato de que as cópias teriam sido usadas mais vezes que o Grand K, aumentando assim as chances de contaminação das superfícies. Outros falam do possível escape de gases que estariam presos no metal. Diante do cenário de instabilidade e imprecisão, uma coisa é certa: “Não podemos mais nos basear numa referência instável”, admite Alain Picard em seu escritório no BIPM.

Acima, a sede do Bureau Internacional de Pesos e Medidas, em Paris.

Abaixo, Christian Bordé, da Academia Francesa de Ciências: “Precisamos de um sistema mais estável.”

Esforços têm sido feitos para criar uma nova definição da unidade de massa independente de um objeto material criado pelo homem. A propósito, o quilo é a única das sete unidades do Sistema Internacional que ainda é definida por um artefato. A definição do metro, por exemplo, que antes era representada por uma barra em platina e irídio, apresentou problemas de degradação semelhantes aos do Grand K e foi substituída em 1960. Hoje, o metro é definido pelo comprimento da trajetória percorrida no vácuo pela luz durante 1/299.792.458 de segundo.

Os metrologistas querem substituir o Grand K por uma definição do mesmo tipo do metro, ou seja, uma que faça referência a uma constante da natureza. Seguindo essa direção, especialistas no assunto reunidos em outubro de 2011, na 24ª Conferência Geral de Pesos e Medidas (CGPM), em Paris, aprovaram unanimemente uma resolução sobre a eventual revisão futura do Sistema Internacional de Unidades. Além do quilograma, o ampère (medida de intensidade da corrente elétrica), o kelvin (unidade de medida de temperatura) e o mol (medida de quantidade de matéria) também entram na lista das unidades que devem ter suas definições alteradas nos próximos anos.

“A reforma será a mudança mais importante desde a Revolução Francesa”, anuncia, enfaticamente, Terry Quinn, diretor emérito do BIPM e um dos cientistas que lideram a campanha pela substituição do Grand K. A referência histórica não é gratuita. A primeira versão do sistema de unidades que está atualmente sendo questionado pelos metrologistas foi criada na França em 1791, em plena efervescência da revolução. Na época, o objetivo dos iluministas era construir um sistema universal de medidas que pudesse servir a todas as pessoas, de todos os tempos.

“A ideia, agora, é criar um sistema mais perene, estável e universal a partir da redefinição de quatro das sete unidades do Sistema Internacional”, explica Christian Bordé, membro da Academia Francesa de Ciências e presidente da CGPM pela quarta vez consecutiva. O cientista especialista em metrologia confessa que a tarefa não é simples, especialmente no caso da massa, no qual duas constantes fundamentais da física concorrem à vaga do Grand K.

Constante perfeita

A constante privilegiada no momento é a de Planck, descoberta em 1900 por um dos pais da física quântica, Max Planck. A ideia dos cientistas que lideram a experiência é ligar o valor da constante ao valor do quilograma, comparando a potência mecânica com a potência eletrônica, por meio de um sofisticado aparelho chamado de balança de Watt. O problema é que, até o momento, os resultados alcançados por duas das cinco balanças existentes no mundo são diferentes e ainda distantes das exigências de precisão estipuladas pelos metrologistas.

Gérard Genevès, responsável pela experiência francesa da balança de Watt no Laboratório Nacional de Metrologia e Testes (LNE, na sigla em francês), acredita que o principal desafio é colocar em prática a definição do quilograma baseada na constante de Planck. “É preciso encontrar uma maneira de disseminar e materializar o quilograma ao usuário, pois as balanças não poderão ser usadas com frequência, talvez a cada dez anos.” De acordo com o cientista, essa questão ainda não foi definida e está sendo estudada por um grupo de trabalho do Comitê Consultivo da Massa e Grandezas Derivadas.

A balança de Watt é um aparelho complexo e caro, que mais parece ter saído de um filme de ficção científica. No caso do LNE, o prédio localizado em Trappes, nos arredores de Paris, foi construído respeitando os requerimentos de funcionamento da geringonça. As duas salas onde ficam os instrumentos são blindadas e estão apoiadas sobre uma laje antivibração de dois metros de espessura. A temperatura e a umidade são sistematicamente controladas.

A outra experiência que corre contra o tempo para alcançar resultados precisos e tomar o lugar do Grand K baseia-se na constante de Avogrado. Nesse caso, a ideia é definir a unidade do quilograma pelo exato número de átomos presentes numa esfera de cristal de silício, equivalente a um quilo de massa. A experiência tem sede em Brunswick, na Alemanha, e conta com a colaboração de vários laboratórios espalhados pelo mundo.

Defensores do método de Avogrado, como Picard, afirmam que o procedimento é muito mais simples do que o da balança de Watt, o qual exige “conhecimentos em diversos setores como eletricidade, massa, eletromagnetismo e óptica”. Além disso, existiriam poucas balanças no mundo em condições de dar resultados. Do outro lado do jogo, os defensores da experiência da balança de Watt ressaltam o fato de ela ser autossuficiente e replicável a qualquer um que disponha do aparelho, destacando o fato de o método de Avogrado depender do uso de um único artefato.

Não obstante a saudável disputa entre as experiências, a realização dos dois métodos é extremamente importante para o processo, pois uma pode ser usada para checar a outra. Além disso, um dos critérios para a escolha da nova definição é que as duas experiências deem resultados similares.

Acima, Le Gran K na hora do banho a conta-gotas, com éter e álcool.

Abaixo, uma das cinco complexas balanças de Watt existentes, em Trappes, subúrbio de Paris.

Nenhum dos entrevistados ousa fornecer uma data precisa para a aposentadoria do ilustre Grand K. Todos, porém, acreditam que a mudança deve acontecer nos próximos dez anos. De acordo com Bordé, não existe urgência para aplicar a reforma e a estratégia mais razoável no momento é esperar que as experiências acertem seus desacordos e alcancem seus limites. Picard ressalta que, independentemente de a decisão ser tomada na próxima conferência, de 2014, ou na de 2019, o objetivo é evitar qualquer perturbação que possa afetar os usuários de laboratórios especializados. “Na vida cotidiana, nada vai mudar. Um quilograma será sempre um quilograma”, conclui.

Para Genevès, a palavra de ordem é cautela: “Estamos mudando definições estabelecidas por cientistas há 100, 200 anos, por isso todo cuidado é pouco.” Questionado sobre o significado da reforma no contexto da metrologia, o especialista explica que a substituição da definição das unidades por constantes da natureza coloca o Sistema Internacional em outro patamar. “Precisamos de um sistema em harmonia com a ciência do século 21 e mais distante da de outrora”, conclui Genevès. É essa ciência que poderá futuramente nos revelar o mistério da perda ou do ganho de massa do Grand K e suas cópias.

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