Você pensa que está na Europa. Olha ao redor, tudo sugere aqueles vales recobertos de infinitos tons de verde e de casinhas floridas que se vê quando se percorre a região do Tirol, especialmente o trecho entre a Áustria e a Itália. O cenário, no entanto, fica a poucas horas de avião de qualquer capital brasileira: situa-se em Santa Catarina. Culturalmente, esse pedaço de Brasil é um prato repleto de aromas e sabores que se mesclam e se espalham pelo ar, herança dos povos que ali se instalaram: alemães, italianos, ucranianos, poloneses, tiroleses, portugueses, africanos e índios. E é dentro do coração deste Estado que pulsa o Vale Europeu, onde um curioso roteiro turístico nasceu e vem rapidamente ganhando fama: o das cervejarias artesanais. Embora o circuito tenha sido oficializado apenas no ano passado, o namoro entre a cerveja artesanal e os moradores dessa miniatura brasileira do Velho Continente é antigo. Data de 1860, quando o alemão Heinrich Hosang fundou a primeira cervejaria em Blumenau, que funcionou até 1923. Nesses quase 150 anos da produção artesanal, a cerveja passou por momentos de glória no início do século 20, quando as microcervejarias multiplicavam-se no Vale Europeu, apesar de toda a dificuldade para fabricá-la – era transportada em carroças e sua tampa era feita de cortiça e amarrada com barbante.

Também conheceu o abandono, quando mais tarde as grandes indústrias invadiram o mercado, incorporando algumas fábricas. Outras faliram. Mas deixaram saudade. Tanta que há alguns anos descendentes dos primeiros imigrantes alemães resgataram a receita original da cerveja e começaram tudo de novo. Hoje, somente entre Blumenau, Brusque, Pomerode, Gaspar, Timbó e Indaial existem nove microcervejarias.

Quando se pensa em um roteiro turístico de visitação às cervejarias da região, uma das primeiras perguntas que vêm à cabeça é: afinal, o que é uma cerveja artesanal? Em que ela difere de uma industrializada? À primeira vista, a resposta reside no modo de produzila. Mero engano. Claro que todas elas – ao menos as daquela região – obedecem à Reinheitsgebot (Lei de Pureza Alemã), criada em 1516 pelo duque Guilherme 4º, na Bavária.

Em vigor até hoje na Alemanha, ela estabelece que a cerveja só pode ser fabricada com quatro ingredientes: água, lúpulo, malte e fermento. Se para você isso não quer dizer nada, leia o rótulo das cervejas industrializadas. Constatará que a composição delas não obedece à Reinheitsgebot, incluindo aditivos, antioxidantes, conser vantes. Eles surgem sob o pseudônimo de cereais não-maltados e, na prática, são os responsáveis pela interminável ressaca do dia seguinte.

A cerveja deve ser degustada numa TEMPERATURA que varia entre 3 e 10 GRAUS, e não estupidamente gelada, conforme recomendam as propagandas

OUTRA LIÇÃO QUE SE aprende ao longo do trajeto é que chope não é sinônimo de cerveja. O primeiro é a bebida crua. Caso seja engarrafada, terá de ser pasteurizada – a garrafa cheia é submetida por 15 minutos a uma temperatura de 75 graus, a fim de eliminar os microorganismos e aumentar sua vida útil. A bebida, então, passa a ser chamada de cerveja, cuja durabilidade é de 15 dias. A partir desse momento, todo cuidado é pouco, porque começa a perecer. A menos que inclua em sua composição conservantes, o que fere a Lei de Pureza Alemã.

No sentido horário, o concorrido chope de trigo da Bierland; bandinhas alemãs animam os bares de algumas cervejarias da região; a rainha da Oktoberfest deste ano; Pomerode, onde fica a Schornstein; e rótulos de cervejas e refrigerantes produzidos pela extinta Feldmann. Em seu auge, a fábrica produzia 2,5 mil garrafas por semana. Na página ao lado, o bar da alegre Zehn Bier, em Brusque.

No percurso também é ensinado que a cerveja deve ser degustada numa temperatura que varia entre 3 e 10 graus, e não estupidamente gelada, conforme recomendam as propagandas das marcas industrializadas. Motivo? A temperatura extremamente fria – abaixo de 2 ou 3 graus – entorpece o paladar humano (ninguém consegue sentir o sabor de algo muito frio ou muito quente), driblando o paladar quanto aos ingredientes artificiais adicionados à cerveja.

A capital do Vale das Cervejas Artesanais pode ser considerada Blumenau, famosa pela Oktoberfest. Realizada na Vila Germânica, é a maior celebração da cultura alemã fora da Alemanha (só perde para sua irmã homônima de Munique). Além da festa, a cidade também abriga o Museu da Cerveja, que reúne um interessante acervo sobre a história da cerveja. Percorrer seu interior é conhecer um pouco sobre o processo de fabricação da bebida no fim do século 19 e início do 20, incluindo máquinas de fábricas extintas, como a Feldmann, fundada em 1898.

Também é em Blumenau que ficam duas das microcervejarias da rota turística: a Eisenbahn e a Bierland. Inaugurada em 2002, a primeira é a maior das microcervejarias da região. Com uma produção média de 200 mil litros de cerveja/mês, a Eisenbahn comercializa cervejas para 17 Estados brasileiros, além de exportar para os Estados Unidos e para a Suíça.

O tour para conhecer as loiras da região pode começar por aqui. Em sua visita, você será acompanhado pelo alemão Gerhard Beutling, mestre-cervejeiro formado na Weihenstephan (Alemanha), uma das mais conceituadas escolas do mundo. Ao lado dele, você vai aprender como é feita a cerveja, desde a moagem e o cozimento do malte até o engarrafamento, além de degustar alguns dos dez tipos de cervejas produzidos pela casa.

SE GOSTAR DE NOVIDADE, peça para provar o Lust e o Bierlikör, dois lançamentos que prometem surpreender o mercado, com sua fragrância e sabor diferenciados. Desenvolvido em parceria com a Vinícola San Michele de Rodeio (SC), o primeiro é um champanhe de cerveja. Já o Bierlikör é o primeiro licor de cerveja produzido no Brasil a partir do chope dunkel, uma variedade escura feita com cinco tipos de malte torrado. O produto nasceu da parceria entre a Eisenbahn e Mário Manzke, o proprietário da Schluck, uma empresa de destilados na Vila Itoupava. Aqui, um parêntesis: distante 25 quilômetros do centro de Blumenau, este vilarejo típico germânico merece sua visita. Aproveite e dê uma caminhada pelas ruazinhas que integram a sua bucólica paisagem rural. Preste atenção aos moradores. Reparou? A maioria deles conversa em alemão, um hábito cultuado até hoje neste pedacinho da Alemanha no Brasil.

Voltando às cervejarias, se o seu paladar aprovou as cervejas ou os lançamentos da Eisenbahn e você deseja repetir a dose, dê uma esticada no bar da fábrica. De sua ampla janela interior, você pode continuar observando o processo de fabricação da bebida enquanto se delicia com os petiscos, música ao vivo e toma mais umas. Mas não exagere, pois sua conta pode ficar meio salgada de digerir – se comparada com as versões industrializadas, a bebida artesanal custa mais – um copo de chope pode sair por R$ 4,50, R$ 5,50 ou mais, dependendo do local onde se vá beber.

Ainda em Blumenau, depois de constatar que o day after é apenas o day after e que ressaca é só um termo que consta nos dicionários quando o assunto é cerveja artesanal, prossiga sua viagem. Prepare-se! Desta vez, você vai conhecer o chope de trigo (é isso mesmo, trigo): o weizenbier. Com origem na região sul da Alemanha, sua receita inclui dois tipos de malte: de cevada e de trigo. Produzida com levedo especial – de alta fermentação -, a bebida não passa pelo processo de filtragem, ganhando assim uma coloração turva e consistência mais densa. Seu sabor é acentuado, com buquês de cravo e banana.

A VISÃO dos tanques de cobre atrás do balcão onde a bebida é preparada é apenas um APERITIVO para a degustação que virá a seguir

O endereço dessa perdição fica na Bierland, ou em linguagem tupiniquim, terra da cerveja. Ela foi concebida a partir da união de três empresários do setor de tintas. Cansados da atividade, eles trocaram os antigos sonhos pela velha paixão dos ancestrais germânicos: a cerveja. Assim, criaram a empresa, em 2003. A partir dessa época, modernos equipamentos e mão-de-obra de primeira garantem a produção de 80 mil litros de cerveja por mês, distribuídos entre os três tipos que comercializa: pilsen, bock e weizenbier. O controle de qualidade da bebida ali produzida fica a cargo do cervejeiro Ilceu Dimer.

DEPOIS DE TER degustado o chope (ou todos os tipos dele) diretamente da fonte, você pode continuar exercendo o levantamento de copos no bar da fábrica. Inspirado nas cervejarias européias, ele tem estilo rústico, capacidade para cem pessoas e estacionamento próprio. Seus ambientes – tanto o interior quanto as mesinhas ao ar livre – são acolhedores e um irresistível convite para curtir um dolce far niente, com direito a um preguiçoso e deslumbrante pôr-do-sol.

No alto, a galeria dos imortais da Zehn Bier; a Vila Germânica, onde a Oktoberfest é realizada; os “alemãezinhos” de Pomerode; prato típico alemão à base de carne moída crua. À direita, Eduardo Krueger, da Bierland; Alfred Feldmann, neto dos fundadores da fábrica de mesmo nome; o cartão de ponto da Zehn Bier; e mapas da região onde o novo roteiro turístico nasceu.

POMERODE É OUTRA cidade que integra o circuito. Colonizada a partir de 1861 por imigrantes vindos da Pomerânia, norte da Alemanha (atual Polônia), é uma autêntica vila germânica (80% de seus habitantes descendem de alemães e a maioria fala o idioma), com suas casas de arquitetura enxaimel. Também é ali que fica a Schornstein, onde pode-se apreciar quatro opções de cerveja: natural, cristal e fest (pilsen) e a bock, a prata da casa.

Seu bar é um charme. Logo na entrada, você vê o símbolo da Schornstein, uma chaminé de 30 metros de altura totalmente intacta, apesar de seus 50 anos. Em seu interior, a visão dos tanques de cobre atrás do balcão onde a bebida é preparada é um aperitivo para a degustação que virá a seguir. Quem pilota os tanques é José Carlos Rosa, um expert em cerveja que aprendeu o ofício exercendo-o na prática.

Localizada em Brusque, a Zehn Bier produz 60 mil litros por mês, sempre sob o olhar atento do mestre-cervejeiro Curt Zastrow. É ele quem controla o padrão dos três tipos ali fabricados: pilsen, bock e staut & porter. No bar da fábrica, uma invenção do proprietário José Carlos Zen chama a atenção: a galeria dos imortais da cerveja, cujos membros têm seu próprio copo numa estante exclusiva. A exemplo do que acontece na Academia Brasileira de Letras, as vagas são limitadas e os “acadêmicos” da confraria só são substituídos em caso de morte. Há ainda o cartão de ponto, que controla quantas vezes os “imortais” compareceram ou não ao local. Por seu alto-astral, a cervejaria virou balada e é o point descolado para quem curte gente bonita.

O roteiro inclui ainda outras microcervejarias. Caso da Borck, em Timbó. Única fabricante de malzebier artesanal do Brasil, é a mais antiga da região. Em Indaial, você pode conhecer a Heimat, que emprega uma receita criada há 700 anos para produzir suas cervejas. Ainda nessa cidade, conheça a Kannenbier, cujo carro-chefe é a stout. Em Gaspar, a Das Bier é a pedida. Oferece os chopes pilsen (claro) e braune ale (escuro) em sua sede, com bar e deck com vista para um cenário imperdível.

Cada uma das cervejarias tem seus encantos. Visitálas é um passeio indispensável para quem deseja conhecer o processo de fabricação ou simplesmente provar a bebida. Percorrer essa trilha também é viajar aos tempos coloniais, quando imigrantes desembarcaram aqui, com seus hábitos e costumes, imprimindo um novo colorido à nossa terra e à nossa gente. Por isso e muito mais, a região merece mesmo ser conhecida, ainda mais sabendo que em sua estadia você estará acompanhado pela loira que é uma antiga paixão nacional, a cerveja. Saúde ou Ein Prost!, como brindam os alemães.

SERVIÇO

Museu da Cerveja – Tel. (47) 3326-8380

Bierland – www.bierland.com.br

Borck – www.borck.com.br

Das Bier – www.dasbier.com.br

Eisenbahn – www.eisenbahn.com.br

Heimat – www.choppheimat.com.br

Schornstein – www.schornstein.com.br

Zehn Bier – www.zehnbier.com.br