São Paulo. Luzes se acendem todas as 2as, 4as e 6as à noite no ginásio de esportes da Nova Escola. Arquibancada vazia. No início, a cena emociona. Os primeiros atletas, movendo- se meio desajeitados, pendendo o corpo para o lado, chegam para mais um treino de voleibol. Colocam os uniformes ali mesmo, junto ao alambrado. Nos bancos ficam as roupas de trabalho, mochilas e próteses. Alguns vão pulando, outros engatinham até o centro da quadra para iniciar o aquecimento. São os integrantes da equipe Cruz de Malta, base da seleção brasileira de vôlei paraolímpico.

Nessa versão do esporte, os atletas jogam sentados. A regra número 1 e mais importante é a chamada “bunda no chão”, como eles mesmos dizem, se divertindo. O jogador não pode tirá-la do chão da quadra durante a ação. Comparada à modalidade tradicional, a quadra é menor (6 m x 10 m), e a altura da rede limita-se a 1,15 m do solo.

Quando o treino começa, é ganhar ou ganhar. E logo vê-se que eles não vieram ali para brincar. Vieram competir. A alegria e a garra se misturam a cobranças e a elogios. “Boa bola!” “Grande!” “Ruim, hein!” Transmitem confiança e bem-estar. Felicidade é para dividir. Mas o caminho das pedras para chegar até ela veio do sofrimento. Contudo, adotaram uma postura de superação, transcenderam a causa da dor e repararam as feridas, fazendo da própria deficiência uma força de viver.

Em 1988, o importante para Juan Ricardo Urrejola eram as festas e o curso para sargento do Exército. Era boa-pinta, tinha 19 anos, corpo atlético e a vida que pediu a Deus. E Deus estava mesmo ao seu lado. Mas, às 9h14 do dia 14 de julho, uma bomba fez seus sonhos voarem para longe, bem longe. Durante um treinamento militar, um rojão estourou ao seu lado e ele viveu nas primeiras semanas o drama de ter a perna direita amputada, mas isso não aconteceu. Depois de oito meses e várias cirurgias, deixou o hospital com uma sequela irreversível na perna: a atrofia dos músculos resultou em paralisia do joelho para baixo.

O ano de 1970 foi de angústia para a família Freitas, de Minas Gerais. Giovani nasceu sem os membros inferiores. Era mais uma vítima da talidomida, um medicamento contra enjoo em mulheres grávidas, que causa deformações nos fetos. O remédio vinha sendo utilizado no Brasil mesmo após seu banimento em nível mundial. A vida também estava para lá de boa em 2005 para o ex-cortador de cana José Paulino, então com 26 anos. Tinha uma moto, trabalhava como gráfico em Diadema (SP) e seu filho estava com nove meses. “Foi tudo muito rápido.” Quando percebeu o acidente com a moto, sua perna esquerda estava decepada.

O que essas três pessoas têm em comum, além de jogarem no mesmo time? A resiliência – a capacidade de se adaptar a uma situação nova, de se regenerar, de recriar a vida. Que sentido havia em fingir que eram os mesmos? “Sou fisicamente diferente, mas me pergunto de que adianta ter duas pernas e não ter consciência do significado da vida”, resume Giovani.

A vida está repleta de desafios. E esses atletas do Cruz de Malta, time patrocinado pela Nossa Caixa, revisaram a própria história e refizeram seus sonhos por meio do esporte. Mas todos são unânimes em apontar o amor da família como base para desenvolver a confiança e a vontade de superar o trauma da deficiência física. “Minha família foi muito importante durante aquele período”, recorda Juan Ricardo. “Minha tia Ruth fez o papel da minha mãe, que havia falecido”, prossegue ele. “Também minha irmã Laura foi especial. Até hoje não sei como ela conseguia ir todos os dias ao hospital, pois trabalhava. Minha recuperação mesmo veio com o casamento com a Cristina, que até hoje me apoia e é minha fã no vôlei.”

“Pronto, minha vida acabou.” Foi assim que José Paulino pensou enquanto estava hospitalizado. Dois meses depois, já em casa, sua mulher, Maria Ilma, o forçava a ir para a rua e queria provar que nada havia mudado. Ele conseguiu se restabelecer, mas ninguém pense que foi fácil, pois viveu momentos de desespero. Graças à sua mulher, porém, ele descobriu o voleibol. “Não penso mais naquela época, antes do acidente. O passado foi bom, mas agora, com o vôlei, está melhor”, afirma.

O primeiro desafio de Giovani foi aceitar a diferença, pois nunca soube o que seria ter duas pernas. Por mais que a família ajudasse, ele tinha complexo. Quando parecia que aquela dor não ia acabar nunca, fincou pé no esporte. No início, era basquetebol. Destacou-se como um dos melhores jogadores brasileiros da categoria, ganhou autoestima e se mostrou para a sociedade. “Casei e hoje tenho dois filhos. Mas tudo isso ocorreu porque minha família sempre me apoiou”, diz.

Equipe do Cruz de Malta. À esquerda, o primeiro em pé é o técnico e campeão olímpico de voleibol em Barcelona, Amauri Ribeiro.

O sonho é a Olimpíada. O técnico da equipe Cruz de Malta, Amauri Ribeiro, campeão olímpico de vôlei em Barcelona, em 1992, explica que esse esporte paraolímpico é novo no Brasil, onde começou em 2003. Mas os resultados alcançados pelo País já são destaque no mundo. Isso se deve à grande qualidade e à intensa dedicação de nossos atletas. Depois da conquista do Parapanamericano de 2007, no Rio de Janeiro, todos esperam ser convocados para a próxima Olimpíada. Amauri se orgulha de sua nova missão: dar maior visibilidade a esse esporte. “O vôlei jogado sentado é uma nova modalidade de esporte”, afirma o bloqueador da nossa seleção em quatro Olimpíadas.

É sempre um mistério permeado de temor para nós – os que não sofremos mutilações – a motivação que leva alguém a se atirar a uma nova vida, que começa bem diferente do que era. A pergunta é sempre a mesma: e se fosse comigo, como reagiria?

A resposta pode estar na última participação desses atletas em competições internacionais: Sarajevo Open 2009, Bósnia-Herzegovina. Nessa competição de vôlei paraolímpico, com a participação das oito melhores seleções do mundo, o Brasil, representado pelo Cruz de Malta, terminou em quarto lugar. Arquibancada lotada. E o Brasil aplaudido de pé.