Uma das características mais marcantes dos chineses é sua crença em presságios, profecias e talismãs. Números da sorte, o esforço para evitar pronunciar sons que possam ser interpretados como a palavra para morte e a (re)valorização do feng shui – a prática de arrumar os móveis e edificações de modo a trazer felicidade e boa saúde para seus habitantes – são assunto constante tanto na conversa de camponeses humildes como nas rodas de pessoas instruídas e de alta condição social.

O governo comunista chinês naturalmente não defende essas idéias, mas, no caso da Olimpíada, decidiu não remar contra a maré. Como o 8 é considerado o número da sorte no país, marcou a abertura do evento para o dia 8 do mês 8 do ano ocidental 2008, às 8h08.

ESTE DEVERIA ser um ano triunfal para o país, mas, por enquanto, ele já acumula uma série de infortúnios. Logo em seu início, uma pesadíssima tempestade de inverno paralisou o sistema ferroviário e impediu milhões de pessoas de chegar ao seu destino nos feriados do Ano-Novo chinês. Depois veio o levante no Tibete. A dura reação do governo a esse respeito provocou uma torrente de protestos internacionais que nublaram o que deveria ser um “harmonioso” período olímpico. Mais recentemente, uma epidemia de vírus intestinal iniciada na região central da China matou 42 crianças, e uma colisão de trens tirou a vida de 72 passageiros no leste do país. Por fim, veio o violentíssimo terremoto de Sichuan, cujo número de vítimas fatais ronda os 85 mil.

Tanta má notícia certamente não passaria incólume pelo lado supersticioso dos chineses – e seus líderes estão atentos a isso, salienta Yiyan Wang, professora de estudos chineses na Universidade de Sydney, na Austrália. “O governo sabe que muitos chineses verão o terremoto como um sinal de que as coisas estão fora de equilíbrio”, disse a professora. O povo chinês liga há muito tempo o poder político ao divino – um conceito conhecido como mandato celestial, pelo qual os governantes trabalhavam com as bênçãos do céu. Segundo essa crença, aqueles que se tornavam corruptos ou insensíveis às necessidades do povo eram removidos do poder após uma sucessão de desastres naturais. Por isso, não espanta a exposição – fora do comum para os padrões do país – do primeiro-ministro Wen Jiabao durante sua visita à zona do terremoto algumas horas depois da catástrofe. Ela pode ser interpretada como um ato legítimo de relações públicas, mas também como uma espécie de satisfação dada pelos governantes aos temores dos mais crédulos – significaria que os representantes do poder temporal estão presentes e vão cuidar de tudo.

MAS TALVEZ NÃO seja tão fácil eliminar a impressão de que a harmonia geral está perturbada. Um indício dessa inquietação está numa história de invasão de sapos, ocorrida em Mianzhu dois dias antes do terremoto. Muitos habitantes dessa cidade da província de Sichuan reagiram aterrorizados ao incidente, acreditando que ele era o portador de más novas em breve. A fim de acalmálos, o diretor do birô florestal de Mianzhu concedeu uma entrevista para a tevê de Sichuan pouco antes do terremoto, na qual disse que a migração em massa era uma etapa normal da temporada de procriação dos sapos. Pelo menos 3 mil pessoas morreram em Mianzhu, e outras 4.500 eram consideradas perdidas.

Era previsível, portanto, que a entrevista deflagraria uma torrente de boatos e acusações na internet do país sobre a possibilidade de se prever fenômenos desse tipo. Como se não bastasse a história dos sapos, divulgou-se na rede de computadores que um suposto alerta do escritório de sismologia de Sichuan sobre o abalo teria sido omitido por funcionários do governo da província. Zhang Xiadong, cientista do Centro Sismológico da China, garantiu que, contrariamente à crença popular, os sismólogos não são capazes de prever desastres naturais, mas muita gente não assimilou bem essa afirmação. Um blogueiro comentou na internet que todos os funcionários do órgão responsável deveriam ser demitidos. “Esses sismólogos estão gastando o dinheiro dos contribuintes”, comentou. “Educar alguns sapos seria melhor do que gastar dinheiro com eles.”

De qualquer maneira, o governo mostrou que não está para brincadeiras nesse caso. Durante uma entrevista na rede oficial de tevê realizada alguns dias após o terremoto, uma pergunta sobre a boataria foi imediatamente seguida por imagens de arquivo sobre os resgates de vítimas. Depois delas, a pergunta havia ganhado um tom mais ameno. Mais tarde, no mesmo dia, as autoridades anunciaram a prisão de quatro pessoas por estarem espalhando os boatos. Com isso, o governo comunista deixa claro que – tenha ele as bênçãos celestiais ou não – continua comandando o país com mão de ferro.