Populistas costumam afirmar que a politica estabelecida ignora os interesses dos cidadãos. Na Alemanha procura-se contrapor essa narrativa com novas formas de diálogo. Em boa hora, opina Marcel Fürstenau.Sim, há muitos motivos e ocasiões para se preocupar com o futuro da cultura democrática, na Alemanha, na Europa, no mundo. As imagens da invasão do Capitólio, em Washington por uma turba estão marcadas a fogo na memória global. E reforçaram as dúvidas já existentes sobres se a democracia dos Estados Unidos ainda resiste às intempéries. Ou será que entra em colapso na próxima tempestade?

É uma pergunta que não parece exagerada, em absoluto. Afinal de contas, quase a metade dos americanos votou novamente em Donald Trump nas eleições presidenciais de novembro de 2020. Apesar ou por causa de quatro anos de um mandato caracterizado por mentiras, ódio e racismo.

É certo: nem Boris Johnson, no Reino Unido, nem Viktor Orbán, na Hungria chegam a tais extremos, porém ambos populistas estão longe de ser exemplos cintilantes de uma política baseada em lealdade e respeito.

Haveria muitos outros a citar, como o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro – para nem falar de Vladimir Putin, na Rússia, ou de Recep Tayyip Erdogan, na Turquia. Resumindo: por todo o planeta, a democracia se encontra sob forte pressão.

Radicalização gradativa da AfD

Diante das circunstâncias em outros países, a Alemanha é uma espécide de modelo de comportamento, uma ilha dos bem-aventurados. Um chefe de governo tão desprezível quanto Trump não é sequer teoricamente cogitável, mesmo após as eleições gerais de 26 de setembro próximo.

Apesar disso, também a Alemanha precisa mais do que nunca considerar como manter mais coesa a sociedade, que também aqui se fragmenta em diversos pontos. O mais tardar desde a crise migratória de 2015, uma profunda fissura atravessa a nação. No campo político, ela se manifesta no avanço e fortalecimento da populista de direita Alternativa para a Alemanha (AfD), criada dois anos antes da arbitrária decisão de Merkel de abrir as fronteiras.

A responsabilidade pela metamorfose da AfD – de partido eurocético a populista, cada vez mais radical e, em parte, também extremista – recai, em primeira linha, sobre ela mesma. No entanto, outras forças políticas e também partes da mídia deixaram passar a chance de dialogar com a nova concorrência, na época em que isso ainda seria possível num nível decente.

No entanto a AfD não passa de o sintoma mais visível de uma sociedade cuja comunicação se dá crescentemente em mundos paralelos: bolhas de Twitter e canais de Youtube, em que os grupos permanecem fechados em si, em vez de se expor aos argumentos do lado contrário, numa troca de opiniões aberta. Não sobra qualquer espaço para pensamentos outros, novos, e para a disposição ao consenso. No longo prazo, isso danifica qualquer democracia.

“Conselhos dos Cidadãos” podem ampliar a visão

Por isso deve-se saudar toda tentativa de um diálogo mais frequente e melhor. E de contrapor a impressão de numerosos cidadãos de boa vontade de que estão sendo ignorados no cotidiano da política profissional.

Um belo exemplo nesse sentido é o Bürgerrat (Conselho dos Cidadãos), em que 160 indivíduos escolhidos por sorteio (dez para cada estado alemão) desenvolvem ideias em conjunto. Na estreia desse formato, em 2019, sob o patronato do presidente do Parlamento federal, Wolfgang Schäuble, o tema foi nada menos do que a democracia.

A segunda rodada, apenas iniciada, trata do papel da Alemanha no mundo. Sem dúvida um tema amplo, em que as recomendações ao governo elaboradas pelo Conselho não serão vinculativas. Afinal, o grêmio não é um substituto de Parlamento.

Assim, é possível descartar-se a iniciativa como passatempo inconsequente para interessados em sociopolítica. Ou, por outro lado, compreendê-la como uma admissão autocrítica do Parlamento e do governo federal: “Nós entendemos!”

Pois o fato de que há um distanciamento crescente se reflete em muitas facetas, sendo a baixa participação eleitoral apenas uma delas. E quem mais se aproveita disso são as margens da política, como diagnosticam repetidamente pesquisadores eleitorais e politólogos.

Diálogo sobre bases constitucionais

Os sucessos dos populistas de direita parecem confirmar essa tese. O fato de a AfD dominar 10% da preferência nas pesquisas de opinião, em âmbito nacional, não deveria assustar nem tranquilizar, mas antes ser um incentivo a reconquistar esses 10% para o discurso democrático.

Aí o partido até teria a chance de ser levado a sério, no sentido positivo. E o Departamento de Proteção da Constituição, que mantém a AfD cada vez mais na mira, teria um problema a menos. No entanto isso pressupõe, antes de tudo, disposição ao diálogo.

A base desse diálogo é e sempre será a Lei Fundamental alemã. Os pilares principais constitucionais são o Artigo 1º, “A dignidade humana é inalienável”, e o Artigo 5º, que garante a liberdade de opinião. Ambos são elementares para uma democracia estável.

A maioria esmagadora dos que vivem na Alemanha é a favor da ordem básica liberal-democrática. Para que isso permaneça assim e para que diminua o número dos que desprezam a democracia, é preciso muita boa vontade e boas ideias – como o Bürgerrat. Está mais do que na hora!

Marcel Fürstenau é jornalista da DW. O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente da DW.