Em várias passagens dos evangelhos há menções diretas ou indiretas a irmãos e irmãs de Jesus, todos filhos de Maria. Ao contar como Jesus nasceu, Lucas diz, no evangelho que leva seu nome, que Maria deu à luz seu filho primogênito. Se Jesus fosse o único filho de Maria, não haveria por que referir-se a ele como o primogênito, isto é, o primeiro entre outros.

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“Também no Evangelho de Mateus a palavra primogênito aparece nas antigas versões em latim, mas os tradutores cortaram essa palavra”, diz o historiador florentino David Donnini, autor do livro Jesus e os Manuscritos do Mar Morto. “Estava escrito em Mateus – diz ele: ‘Peperit filium suum primogenitum‘. A última palavra foi suprimida. E na versão em grego se lê, com mais detalhe: ‘E não a conheceu até que deu à luz seu filho primogênito, a quem deu o nome de Jesus’.” A frase refere-se a José, o pouco lembrado pai de Jesus, com quem Maria não teria tido relações sexuais “até que deu à luz seu filho primogênito”. E a família foi numerosa, segundo o especialista em cristianismo antigo Mauro Pesce, da Universidade de Bolonha: quatro irmãos e um número não sabido de irmãs.

Segundo o historiador David Donnini, a palavra primogênito figura nas primeiras versões em latim do Evangelho de Mateus, mas depois os tradutores a cortaram.

Tiago, o chefe da Igreja de Jerusalém após a morte de Jesus, seria outro dos filhos de Maria e José.

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Facção antirromana

“Sobre a existência dos irmãos e irmãs de Jesus não faltam menções no Novo Testamento. O mais importante deles chamava-se Giacomo (Tiago), que foi o chefe da Igreja de Jerusalém após a morte de Jesus”, diz o historiador. De acordo com ele e outros estudiosos, Tiago era o líder de uma facção antirromana do cristianismo antigo, até ser assassinado.

O Evangelho de Marcos diz explicitamente: “Chegaram sua mãe e seus irmãos e, tendo ficado do lado de fora, mandaram chamá-lo. Muita gente estava sentada ao redor dele, e lhe disseram: Olha, tua mãe, teus irmãos e tuas irmãs estão lá fora, à tua procura” (Marcos, capítulo 3, versículos 31-32). A mesma passagem é descrita por Lucas (Lc 8, 19-20). E Marcos, em outra passagem (Mc 6, 3), cita os nomes dos quatro irmãos de Jesus e ainda pergunta pelas irmãs: “Não é este o carpinteiro, o filho de Maria, irmão de Tiago, Joset (variação de José), Judas e Simão? E as suas irmãs, não estão aqui entre nós?”

A mesma passagem está em Mateus, com ligeiras diferenças de palavras: “Não é ele o filho do carpinteiro? Sua mãe não se chama Maria e seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas? E suas irmãs, não estão todas conosco?” (Mt 13, 55).

Em João também há referência aos irmãos de Jesus: “Aproximava-se a Festa dos Judeus, chamada dos Tabernáculos, e seus irmãos lhe disseram: Parte daqui e vai para a Judeia, para que também os teus discípulos vejam as obras que tu fazes” (Jo 7, 2-3). O trecho é importante porque faz uma clara distinção entre irmãos e discípulos. Irmãos poderiam significar não irmãos de sangue, mas de fé, e o texto descarta essa hipótese.

A menção de Paulo

De todos os textos canônicos do catolicismo, as cartas de Paulo, o grande propagador do cristianismo entre os não hebreus, são consideradas os documentos mais próximos da realidade histórica. Todas foram escritas por ele mesmo, após a morte de Jesus e muitos anos antes das transcrições dos evangelhos. Numa das cartas, ele diz: “Só três anos depois fui a Jerusalém para conhecer Pedro e não vi nenhum dos outros apóstolos, com exceção de Tiago, o irmão do Senhor” (Gal 1, 18-19).

Os evangelistas nunca escreveram seus evangelhos. Todos foram transmitidos por via oral e transcritos dezenas de anos depois por diferentes escribas da Igreja, que lhes deram os nomes que têm como homenagem aos apóstolos, já falecidos. As cartas de Paulo, ao contrário, não passaram por transcrições ou traduções de terceiros e foram preservadas tal qual o apóstolo as escreveu. Nelas, em nenhum momento Paulo fala em virgindade de Maria ou que Jesus fosse seu único filho. Na verdade, de Maria não cita nem mesmo o nome. Sobre o nascimento de Jesus, a única coisa que diz é que “nasceu de uma mulher, segundo a Lei”, referindo-se à lei dos hebreus.

O culto a Maria é posterior. Ela só foi declarada virgem no século 4 d.C., quando o patriarca Cirilo fez valer sua tese de que Maria era mãe de Deus, o Deus Jesus, e não do homem Jesus – tornando, assim, possível (ao menos no plano teológico) sua virgindade carnal. No entanto, a ideia de que Jesus era Deus é estranha aos evangelhos, pois o próprio Jesus refere-se inúmeras vezes ao “Pai que está no céu”, inclusive quando, na cruz, pronuncia a célebre frase: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mt 27, 46; Mc 15, 34) – cujo real significado permanece um grande mistério.

Sucessão familiar

As incongruências provam como era importante para a Igreja demonstrar a virgindade de Maria, 400 anos depois do nascimento de Jesus. E o porquê disso é também um mistério. A questão não existia na época em que Maria era viva. Aparentemente, havia coisas mais importantes a tratar. Havia perseguições, a Palestina vivia convulsionada. Quando Jesus morre, quem será seu sucessor? Jesus havia feito uma multidão de seguidores e eles precisavam de um chefe. Seria Pedro? João? Ou Maria Madalena? E Maria, a mãe, seria ouvida sobre essa questão? E José, o pai?

A sucessão de Jesus seria um problema sério se ele fosse o único filho de Maria. Felizmente, para o cristianismo, não era. O escolhido foi Tiago – o que pode parecer estranho, porque Jesus diz no Evangelho de Mateus (Mt 16, 18) que seu eleito para construir sua Igreja era Pedro. Mas Tiago foi escolhido porque era irmão de Jesus, “seguindo uma regra semelhante à do califado muçulmano xiita, em que o sucessor deve ser sempre um membro da família, diferentemente da regra sunita, em que o sucessor é eleito por seus seguidores”, explica o historiador Mauro Pesce.

Mas Tiago, além de irmão, tinha méritos. De acordo com o historiador Robert Eisenman, da California State University e autor de Tiago, o Irmão de Jesus, ele era o chefe de um grupo de cristãos que não aceitavam a dominação romana da Palestina, pregavam que o reino de Deus estava próximo – seria antirromano e neste mundo – e defendiam a pureza da tradição hebraica (eram, por isso mesmo, chamados de integristas). Não havia unanimidade entre os judeus sobre a dominação romana e toda a região vivia, já naquela época, em pé de guerra.

Sobrinhos de Jesus

O irmão de Jesus foi chefe da Igreja até o ano 61 d.C., quando irromperam violentas revoltas na Palestina e ele foi apedrejado até a morte, a mando de judeus colaboracionistas que o acusaram de estar por trás das rebeliões. Em 70 d.C., as tropas de ocupação romanas atearam fogo ao Templo de Jerusalém, destruindo-o, fato que é atribuído nos evangelhos apócrifos do Mar Morto à punição divina pelo assassinato de Tiago.

Outro irmão de Jesus, Judas, também teria participado dos movimentos de libertação. Seus filhos foram presos como subversivos em 90 d.C., durante as perseguições movidas pelo imperador romano Domiciano. O fato é citado por Eusébio de Cesareia – historiador, teólogo e bispo da Igreja do século 4 -, lembrando que os presos eram sobrinhos de Jesus e membros da estirpe real de Israel.

A Igreja Católica justifica a menção a irmãos e irmãs de Jesus nas escrituras como um mal-entendido semântico. Seriam primos dele, filhos de uma irmã de Maria também chamada Maria, dita “de Cleofas”. De acordo com essa explicação, a confusão vem do fato de que em aramaico se emprega a mesma palavra para irmão e primo. “Mas essa ideia não se sustenta”, afirma David Donnini. “Os evangelhos não foram escritos originariamente em aramaico, mas em grego, e o termo utilizado é adelphos, que significa inequivocamente irmão, e não primo.”

Outro historiador, Daniel Maguerat, da Universidade de Bolonha, foi tirar a prova: examinou os textos dos evangelhos na língua original e só descobriu um único caso em que o termo irmão podia estar sendo usado para designar primo. Em todos os outros, era irmão mesmo.