Comer para matar a fome, comer por gula, comer para celebrar, comer por comer. Não há nada de estranho nisso, há séculos. Mas, para muitas pessoas, essas atitudes estão se tornando cada vez mais raras. Hoje em dia, come-se para prevenir a osteoporose, melhorar a elasticidade da pele, reduzir os níveis de colesterol, desintoxicar o organismo ou obter benefícios para a saúde. A comida deixou de ser comida e o ato de comer deixou de ser impensado. 

Cada vez mais comum, esse é o comportamento típico da era do nutricionismo, o atual estágio em que vivemos, como defi niu o jornalista americano e ativista culinário Michael Pollan, autor de diversos livros sobre a alimentação moderna, entre eles. O Dilema do Onívoro (que fi cou dois anos na lista dos mais vendididos do jornal e New York Times, em 2007), Em Defesa da Comida e As Regras da Comida – Um Manual de Sabedoria Alimentar (Intrínseca). Na introdução desse último trabalho, Pollan chama a atenção para o fato de que todos os adultos minimamente informados sabem, ou pelo  enos têm uma vaga ideia, do que são antioxidante, ômega 3, probiótico e gordura saturada, para citar alguns termos. Para Pollan, professor de jornalismo na Universidade da Califórnia em Berkeley, esse é um despropósito característico da “desordem alimentar” em que vivemos – correndo ansiosamente atrás de dietas malucas, cada vez mais obesos, anoréxicos ou bulímicos. 

Foi na última década que cresceu a preocupação com a saúde e com a alimentação saudável e sustentável, observa o psiquiatra Alexandre Pinto de Azevedo, do Programa de Transtornos Alimentares  (Ambulim) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP). A moda da saúde alimentar se tornou tão exagerada que hoje é  considerada uma das principais causadoras dos transtornos alimentares. Soma-se a isso a valorização cultural da estética. “Nunca se falou tanto em corpo e magreza como nos últimos anos e em sua associação (inadequada) com sucesso e bem-estar”, relata o médico. 

Alguns especialistas associam o fenômeno ao excesso de informações veiculadas na imprensa e nas redes sociais sobre nutrição. A nutricionista e doutora em saúde mental Rosane Pilot Pessa Ribeiro, da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP), é uma das que partilham essa opinião. Com atuação na área de transtornos alimentares, Rosane diz que a ênfase dada aos efeitos dos alimentos em nosso organismo tem feito com que muitas pessoas hipervalorizem “regras e modismos tentando evitar doenças que não necessariamente vão deixar de existir, mesmo com uma alimentação mais saudável”. 

Ao contrário do que se poderia supor, quanto mais lemos a respeito dos alimentos, mais indecisos fi camos. Afi nal, ovo faz bem ou mal para a saúde? E o que dizer da carne vermelha e do café? Nesse meio, não é raro encontrar opiniões totalmente controversas. Atualmente, as críticas estão voltadas à lactose e, mais intensamente, ao glúten. “Assim como o ovo já foi crucifi – cado, agora é a vez do glúten”, aponta a nutricionista Priscila Farage, pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB).

Não é difícil encontrar nos supermercados e restaurantes dos grandes centros urbanos uma variedade considerável de preparações dessa proteína, disponível em cereais como trigo, aveia e cevada. Quem  sofre de intolerância (doença celíaca), alergia ou sensibilidade ao glúten não pode ingerir alimentos e bebidas feitos à base de cereais – como pães, massas, biscoitos, cerveja e uísque –, pois a substância impede ou difi culta a absorção de nutrientes pelo organismo, além de causar uma série de distúrbios. Segundo Priscila, o diagnóstico dessas doenças aumentou com a ampliação de sua divulgação no meio científi co. Isso explica, em parte, o aumento da oferta de produtos sem a proteína. 

Mas uma parte deve ser creditada à promessa de que uma dieta sem glúten seria melhor para o aproveitamento de nutrientes, mesmo entre os não alérgicos, e que ela poderia favorecer a perda de peso. A pesquisadora esclarece que a restrição é desnecessária entre indivíduos saudáveis, mas reconhece que existe um efeito colateral sobre o peso. Afi nal, quem segue a dieta diminui o consumo de bolos, tortas, sanduíches e outros alimentos calóricos. Mas não é a exclusão do glúten em si que traz o resultado.  

Quanto à lactose, as acusações são de que a ingestão de leite e seus derivados causam desconforto e distensão abdominal em função da difi culdade do intestino em digerir a substância. Todavia, apenas quem sofrede intolerância à lactose apresenta o problema, pois justamente entre essas pessoas falta no intestino delgado a enzima responsável por sua digestão, a lactase, como explica Sonia Trecco, nutricionista-chefe do Serviço de Atendimento Ambulatorial do HC-FMUSP.

Quando a preocupação em evitar alimentos que possam fazer algum mal ao organismo se torna uma ideia fi xa, instala-se a ortorexia (termo derivado do grego “orthos”, que signifi ca correto, e “orexsis”, que signifi ca fome) – a obsessão pela alimentação saudável. O distúrbio ainda não é reconhecido ofi cialmente como um transtorno alimentar, mas já é acompanhado pelos especialistas e tem até sintomas descritos. De acordo com Alexandre Azevedo, o problema foi relatado pelo médico norte-americano Steve Bratman, em 1997, e diz respeito à necessidade rigorosa de seguir uma dieta seletiva e considerada saudável. “Só que essa necessidade de selecionar os alimentos ganha uma proporção obsessiva, tornando-se uma fixação”, diz.

Nada contra a ecologia e o consumo consciente, muito pelo contrário. Mas atenção para indivíduos que querem ter absoluto controle sobre a procedência dos alimentos, desde o plantio ou a industrialização até a maneira como foi manipulado e preparado. Não é incomum que ortoréxicos se afastem dos amigos e da família para evitar contato com alimentos que não consideram adequados. Ou que acabem aderindo a alguma dieta radical obscura. 

O equilibrio ficou no passado

Ao mesmo tempo que cresce o número de ortoréxicos, como atesta Priscila, também cresce a proporção de brasileiros que se alimentam mal e estão acima do peso. Em face de tantos extremos, parece contraemergir uma tendência de recorrer aos hábitos alimentares de nossos avôs e às tradições culinárias. 

A nutricionista Ana Paula Machado Lins, do Grupo de Obesidade e Transtornos Alimentares do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia (Iede) do Rio de Janeiro, ressalta que há uma corrente que defende que o equilíbrio está em comer como há algumas décadas, ou seja, “comida de verdade”, preparada em casa, sem corantes nem aditivos químicos, cultivados na natureza, e não entregues por alguma indústria alimentícia em embalagens “mirabolantes”.

Os hábitos de consumo da vida moderna também estão no alvo das críticas feitas por Sonia Trecco: “Hoje, com 51 anos, lembro que quando eu era criança, por volta dos 6, 7 anos, não havia pessoas com sobrepeso ou obesas. Também não havia ainda supermercados. Fazia- se compras na feira, na mercearia, de produtos como arroz, feijão, óleo, açúcar, farinha e margarina, e no açougue. O leite era entregue em casa e os refrigerantes vinham em uma garrafinha de 290 mililitros, e não em embalagens de 2,5 litros”.

Na mesma linha, a pesquisadora da UnB defende o resgate dos hábitos de consumo que sempre fizeram parte da cultura brasileira. “As pessoas geralmente acreditam que a alimentação saudável é algo distante do que o que estão acostumadas a consumir”, afirma. Essa retomada inclui voltar a comer arroz e feijão, uma combinação cada vez menos presente à mesa, além de frutas, hortaliças e leguminosas, fartamente disponíveis no país. Pollan, que chegou a escrever regras de alimentação para facilitar a vida daqueles que se encontram perdidos, descreveu em seis palavras o que ele julga ser o melhor e o mais simples conselho: “Coma comida; coma pouco; sobretudo vegetais”.