Diante de uma sequência de reações sérias de pacientes à covid-19, médicos e enfermeiros às vezes lutam para encontrar opções de tratamento viáveis. Mas quando examinamos as respostas baseadas na fé ao vírus, a orientação espiritual tem se mostrado ainda mais evasiva.

As diretrizes para líderes religiosos dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos Estados Unidos, incentivam os grupos a limpar superfícies e limitar encontros ou reuniões. Mas elas não tratam dos efeitos emocionais que as vítimas da covid-19 (e nós, que vivemos com medo de contraí-la) podem experimentar.

Figuras religiosas como o papa Francisco elaboraram orações para proteção contra o coronavírus. Mas a ideia da oração como parte vital de qualquer resposta à covid-19 pode parecer inapropriada ou até irresponsável para alguns em um mundo que muitas vezes vê a medicina e a religião como opostos polares – uma se voltando para a ciência e a outra, para Deus.

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Como historiador social do mundo islâmico medieval, penso e escrevo sobre o papel da religião na vida cotidiana. Observar como as pessoas pensavam sobre ciência e religião no passado pode trazer informações à abordagem do mundo contemporâneo à covid-19.

Pragas, um fato da vida

As pragas eram um fato da vida nos mundos antigos e medievais. Cartas pessoais do Cairo Geniza – um tesouro de documentos dos judeus do Egito medieval – atestam que crises de doenças generalizadas eram tão comuns que os escritores tinham palavras diferentes para elas. Elas variaram de um simples surto – wabāʾ, ou “doença infecciosa” em árabe – a uma epidemia – dever gadol, hebraico para “pestilência maciça”, que remonta à linguagem das dez pragas da Bíblia.

Durante o tempo do jurista e filósofo Maimônides (1138-1204), que liderou a comunidade judaica do Egito, Fusṭāṭ (Antigo Cairo) enfrentou uma praga tão assustadora em 1201 que a população judaica da cidade nunca voltou à sua antiga glória.

Punição divina?

As pessoas religiosas ao longo da história costumavam ver pragas como a manifestação da vontade divina, como uma punição pelo pecado e uma advertência contra a negligência moral. O mesmo coro é ouvido por uma minoria hoje. Como judeu, fico envergonhado ao ler que um rabino foi recentemente citado por dizer que a covid-19 era um castigo divino para as paradas do orgulho gay.

Maimônides ensina a discípulos: para o mestre judeu, a metafísica não estava dissociada da física. Crédito: Wikimedia

Em Uma Sociedade Mediterrânea, o pesquisador do Geniza S.D. Goitein descreve a reação de Maimônides à praga: “O que quer que os filósofos e teólogos da época possam ter dito sobre a capacidade do homem de influenciar as decisões de Deus por seus atos, o coração acreditava que eles poderiam ser eficazes, que a oração intensa e sincera, a esmola e os jejuns poderiam manter a catástrofe longe”.

Mas a comunidade judaica também lidou com a doença de outras maneiras, e sua resposta holística às epidemias revela uma parceria – não um conflito – entre ciência e religião.

Ciência e religião

No período medieval, pensadores como Maimônides combinaram o estudo da ciência e da religião. Como Maimônides explica em sua obra-prima filosófica Guia dos Perplexos, ele acreditava que o estudo da física era um precursor necessário da metafísica. Em vez de ver a religião e a ciência como inimigas umas das outras, ele as via como mutuamente favoráveis.

De fato, estudiosos de textos religiosos complementaram seus estudos com escritos centrados na ciência. O contemporâneo islâmico de Maimônides, Ibn Rushd, também conhecido como Averróis (1126-1198), é um exemplo perfeito. Embora fosse um importante filósofo e pensador religioso, Ibn Rushd também fez contribuições significativas para a medicina, inclusive sugerindo a existência do que mais tarde viria a ser chamado de doença de Parkinson.

Averróis, em detalhe de “Triunfo de São Tomás”, de Andrea Bonaiuto (século 14): talento em múltiplas áreas, inclusive a medicina. Crédito: Wikimedia

Mas não foram apenas os estudiosos de elite que viram a religião e a ciência como complementares. Em Uma Sociedade Mediterrânea, Goitein diz que “mesmo a pessoa mais simples de Geniza era membro daquela sociedade helenizada do Oriente Médio e do Mediterrâneo que acreditava no poder da ciência”. Ele acrescenta: “A doença foi concebida como um fenômeno natural e, portanto, teve que ser tratada com os meios fornecidos pela natureza”.

Cuidando da vida interior

Ciência e religião, portanto, eram parte integrante da alma da pessoa do Geniza. Não havia sentido que esses dois pilares do pensamento se desafiassem. Ao cuidar de suas vidas internas através de rituais que o ajudava a lidar com a tristeza e a ansiedade, e de seu corpo através das ferramentas de medicina disponíveis, o povo do Geniza adotou uma abordagem holística das epidemias.

Para eles, seguir o conselho médico de Maimônides ou Ibn Rushd foi uma parte essencial de sua resposta à praga. Mas, enquanto se acocoravam em suas casas, também procuravam o conselho espiritual desses pensadores e de outros para cuidar de suas almas. Aqueles de nós que sofrem estresse, solidão e incerteza em meio à pandemia de coronavírus podem aprender com o mundo medieval que nossa vida interior também exige atenção.

 

* Phillip I. Lieberman é professor associado da Vanderbilt University (EUA)

** Este artigo foi republicado do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original aqui.