De 8,7 milhões de espécies de seres que se estima viverem no planeta (não contando bactérias e outros microrganismos), apenas uma, o Homo sapiens sapiens, não é sustentável, ou seja, consome mais do que devolve ao ambiente. Todas as outras, de algum modo, estão em equilíbrio com o ambiente. Se não estão, é porque o ser humano ou algum desastre natural interferiu em suas condições de vida. Por isso, a humanidade tem muito a aprender com seus colegas terrestres.

Na verdade, isso já vem se tornando realidade com o biomimetismo, uma disciplina que leva ao desenvolvimento de novas tecnologias e produtos baseados ou inspirados no que a natureza já fez. Como muitas áreas do conhecimento, essa também deve seu nome ao grego: bios, “vida”, e mimesis, “imitação”. “O biomimetismo é uma forma de pensar que incentiva cientistas, inventores e pessoas comuns a estudar e usar as soluções da natureza para resolver problemas deles”, define a escritora científica canadense Dora Lee em seu livro Biomimetismo – Invenções inspiradas pela natureza.

“Ao aplicarmos seus princípios, talvez encontremos um jeito de fazer com que todas as espécies prosperem no planeta.” Segundo ela, “o que funciona para outros seres talvez funcione para nós também”. Um dos mais conhecidos produtos inspirados numa espécie viva é o velcro, nome que vem das palavras francesas velours e crochet (respectivamente, “veludo” e “gancho”). Ele foi inventado em 1948, pelo engenheiro suíço Georges de Mestral.

Conta-se que, em suas caminhadas diárias pelos Alpes, ele sempre notava que os frutos de uma planta do gênero Arctium, também conhecida como carrapicho, grudavam em suas calças e no pelo do seu cachorro. Estudando-os ao microscópio, Mestral constatou que os filamentos pontiagudos dos frutos tinham pequenos ganchos na ponta. Ocorreu-lhe então criar um material capaz de unir duas partes – uma com ganchos e outra com pelos – de modo reversível e simples, que foi patenteada em 1951.

Inovação na academia

No Brasil, praticamente não há empresas desenvolvendo produtos afinados com o biomimetismo. Mas existem alguns pesquisadores em universidades dedicados a isso. É o caso do engenheiro mecânico Wilson Kindlein Júnior, do Departamento de Materiais da Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele e sua equipe desenvolveram uma dobradiça inspirada na mandíbula de cobras, que tem uma grande abertura. “A que fizemos se abre num ângulo de 170 graus”, conta. “Ela pode ser empregada em portas que precisam ter abertura grande.” A invenção foi paten­teada, mas a tecnologia ainda não foi repassada a uma empresa.

O odontólogo Weber Adad Ricci, da Faculdade de Odontologia de Araraquara, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), estuda aspectos do dente humano para aplicar esse conceito de alguma forma no próprio dente que precisa de reparo. “No aspecto mecânico, ele é composto por dois materiais de propriedades distintas, mas que se harmonizam para criar um produto final capaz de ser funcional durante toda a vida de uma pessoa”, diz. “Esmalte e dentina, que separada­mente seriam extremamente frágeis, quando intimamente unidos formam um conjunto capaz de suportar até uma tonelada de carga.”

O peixe-cofre tem formas aerodinâmicas copiadas no Bionic Car, da Mercedes-Benz (acima)
O peixe-cofre tem formas aerodinâmicas copiadas no Bionic Car, da Mercedes-Benz (acima)

Por isso, Ricci tem buscado em outras espécies “colas” (adesivos) inertes e imunes à degradação pela água. Os estudos estão em fase inicial, mas com uma proposta definida de pesquisa na área de biologia marinha. “Estamos tentando buscar uma resposta para o desenvolvimento de materiais e técnicas mais eficazes na adesão de nossas restaurações dentárias”, explica. “Acreditamos que, para reproduzir um dente natural, não precisamos de materiais altamente resistentes, mas sim daqueles capazes de promover adesão entre si.” Em termos mundiais, já existem produtos biomiméticos consagrados e outros em desenvolvimentos.

Entre os primeiros está o famoso maiô de corpo inteiro usado pelo nadador americano Michael Phelps nas Olimpíadas de Atenas, em 2004. Desenvolvido com o apoio do Museu de Ciências Naturais de Londres, o Fastskin é inspirado no tubarão. A pele desse peixe, um dos mais velozes dos mares, possui dentículos parecidos com aerofólios e sulcos com formato em “V”, que reduzem a resistência e a turbulência da água ao redor do animal, tornando o nado mais eficiente e rápido. Até ser proibida, em 2010, essa tecnologia ajudou Phelps e vários outros nadadores a obter melhores resultados nas competições.

Aerodinâmica ideal

Outro peixe inspirou a Mercedes-Benz a desenvolver um carro conceito, o Bionic Car, criado apenas para pôr a ideia em prática. Trata-se do peixe-cofre, nome comum a várias espécies da ordem dos tetradontiformes, que se caracterizam por ter o corpo encerrado numa caixa óssea (daí o nome). Apesar desse formato de cubo, ele tem linhas fluidas e representa um ideal aerodinâmico. Durante os testes do túnel de vento, o carro conseguiu um coeficiente de arrasto de 0,095 – 65% menor do que o de um modelo comum do mesmo porte, um valor sem precedentes na engenharia automotiva. Além disso, o veículo consome 20% menos combustível.

No Japão, o meio de transporte inspirado num animal foi o trem-bala, da rede ferroviária Shinkansen, que viaja a 300 km/h. Os primeiros modelos construídos eram muito barulhentos, sobretudo na saída de túneis. Ao entrar em um deles, a composição em alta velocidade formava um colchão de ar à sua frente. Na saída, o ar se expandia instanta­neamente, causando um estrondo semelhante a um trovão. Eiji Nakatsu, engenheiro-chefe da empresa e contumaz observador de pássaros, notou que o martim-pescador mergulhava na água em busca de peixes como uma flecha, silenciosamente e causando poucos respingos. Ele então redesenhou a frente do trem, deixando-a semelhante ao bico da ave. Com isso, eliminou o ruído e ainda reduziu o consumo de energia em 15%.

Esses são alguns exemplos de como a humanidade pode se beneficiar ao copiar ou se inspirar em outros seres vivos. Como lembra Dora Lee, a vida tem cerca de 3,8 bilhões de anos de experiência em criar soluções para se manter e prosperar. “Na Terra, o laboratório definitivo, os modelos experimentais da natureza estão continuamente sendo testados em condições reais”, escreve. “O que funciona fica. O que não funciona desaparece.” Como o ser humano não tem milhões de anos para aperfeiçoar suas invenções, “faz sentido nos beneficiarmos das experiências da natureza”, diz. “Afinal, a forma e a estrutura das coisas naturais resistiram ao teste do tempo.”

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Próxima safra

Abaixo, três exemplos de pesquisas que visam desenvolver tecnologias e produtos baseados em “invenções” de seres vivos citados por Dora Lee no livro Biomimetismo – Invenções inspiradas pela natureza

Aeronave baseada em semente

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A forma similar a uma hélice e a estrutura leve ajudam a semente de bordo a voar para longe da árvore que a originou. Com isso, ela consegue um bom lugar e mais espaço para germinar. A Nasa pensa em projetos de naves com base nessas sementes

Cardo-rolador inspira veículos

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As sementes do cardo-rolador ou a própria planta, quando não está mais fixada nas dunas onde vive, rolam com o vento, passando por todo tipo de terreno. Um veículo-robô para exploração planetária da Nasa copia sua forma

Prédio-cupinzeiro

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A temperatura interna de um cupinzeiro é constante graças a canais e túneis que conduzem o ar da base ao topo, por onde sai levando o calor. O sistema foi adaptado em um prédio erguido em 1990 no Zimbábue