Após uma série de escândalos, pela primeira vez o premiê britânico vê sua sobrevivência política seriamente ameaçada. Revelações sobre festas na sede do governo durante lockdown causaram indignação.Adversários políticos de Boris Johnson já haviam pressagiado que, com sua negligência em relação a deveres e regras, o primeiro-ministro britânico acabaria cavando a própria cova. Agora, tudo indica que o “Partygate” pode acelerar dramaticamente o fim de seu mandato.

Após as recentes notícias de festas na sede do governo, o número 10 da Downing Street, em Londres, durante o lockdown pela pandemia de covid-19, Johnson se viu obrigado a pedir desculpas pessoalmente à rainha Elizabeth 2ª. Dois eventos em abril ocorreram na véspera do funeral do consorte real, o príncipe Philip.

Pouco antes, o premiê já havia admitido no Parlamento em Londres que fora a uma festa no jardim na Downing Street, em maio de 2020, e pediu desculpas. Ele pensara tratar-se de uma “reunião de trabalho”, alegou, desencadeando uma onda de escárnio nas redes sociais. No Twitter, um usuário ironizou o premiê com uma foto em que uma estante de vinhos num supermercado é classificada como “material de escritório”.

No jornal conservador The Times, o articulista Daniel Finkelstein comentou que “a burrice e arrogância do nº 10 são espantosas”, e sugeriu que Johnson renunciasse. Em contraste com o comportamento do chefe de governo, percebido como desrespeitoso e indecoroso, ganhou peso simbólico a tocante foto da rainha de 95 anos sentada num banco da igreja no dia do funeral de Philip, sozinha e distante da família, em respeito às regras anticovid.

“Uma regra para eles, outra para nós”

No último domingo (16/01), o apresentador da emissora Sky News Trevor Phillips mal conseguia conter as lágrimas ao entrevistar o parlamentar conservador Oliver Dowden sobre o “Partygate”: a filha do jornalista morreu sozinha em casa, em abril de 2021, sem que a família pudesse estar presente.

Enquanto isso, no jardim da Downing Street 10, algumas dezenas de funcionários faziam uma festa regada a álcool, à qual Boris Johnson esteve presente. “O primeiro-ministro consegue entender por que as pessoas estão tão furiosas?”, indagou Philips ao entrevistado.

Na Câmara dos Comuns, o deputado norte-irlandês Jim Shannon foi quem ficou com lágrimas nos olhos ao contar sobre a morte solitária de sua sogra durante o confinamento antipandemia. Ao mesmo tempo, os festeiros de Downing Street enviavam um funcionário ao supermercado com uma mala de rodinhas, para comprar mais vinho.

Indignada, grande parte dos britânicos repudiou seu primeiro-ministro, e o Partido Conservador está dez pontos atrás da oposição nas consultas de popularidade. “Uma regra para eles, outra para nós” é a conclusão de muitos. Essa violação do princípio de igualdade e justiça é o que torna o “Partygate” tão perigoso para Boris Johnson.

Táticas de despistamento, bodes expiatórios

No último fim de semana, a ministra britânica da Cultura, Nadine Dorries, uma das apoiadoras mais fiéis do premiê, anunciou que o governo pretende eliminar em 2027 a taxa de rádio e televisão arrecadada para a BBC, substituindo-a por um novo modelo de financiamento. Isso significaria o fim da tradicional emissora, conceituada como fanal do jornalismo de qualidade.

A ala de direita do Partido Conservador, que há muito denuncia a BBC como esquerdista e tendenciosa, aplaude. Será que Johnson pretende, assim, satisfazer os direitistas de sua legenda, cada vez mais impacientes devido às pesquisas de opinião negativas e ao “Partygate”?

O oposicionista Partido Trabalhista interpreta o anúncio contra a BBC como mero ataque diversionista. “O primeiro-ministro crê que quem noticia sobre suas violações das regras deve arcar com as consequências, enquanto ele escapa”, comentou a deputada Lucy Powell.

Combina com essa interpretação a forma como o governo planeja agora lidar com o caso: está planejada uma grande devassa entre os porta-vozes, assessores e outros que, ao ver de Johnson, o arrastaram para esse escândalo. Já se fala, sarcasticamente, de uma “longa noite dos bodes expiatórios”.

Boris Johnson terá que lutar para se manter no cargo. Após uma série de escândalos, este é o primeiro que realmente o ameaça. O desperdício de bilhões de libras esterlinas na compra de vestes de proteção médica, com que pró-conservadores lucraram desavergonhadamente; ou a dispendiosa reforma da residência governamental em Downing Street, para que a esposa do premiê escolheu papel de parede com apliques de ouro: por tudo isso, com sua petulância de sempre, o premiê conseguiu passar incólume.

As festas de lockdown, contudo, são capazes de fazê-lo cair. É esperado para o fim desta semana o relatório da funcionária independente Susan Gray, contendo uma lista precisa de todas as transgressões do governo durante a pandemia de covid-19. Essa pode ser a gota d'água que fará o barril transbordar.

Segundo a imprensa local, os grêmios partidários competentes já dispõem de 35 das 54 cartas necessárias para uma moção de censura. Só o próprio partido pode fazer o primeiro-ministro abandonar o cargo. Está em aberto quando e se os conservadores darão esse passo. No meio tempo, porém, possíveis candidatos à sucessão, entre eles a ministra do Exterior, Liz Truss, e o ministro das Finanças, Rishi Sunak, já começam a esquentar as turbinas.