A curitibana Verônica Stasiak, de 24 anos, portadora da fibrose cística, se tornou a principal promotora da conscientização contra a doença.

“Quer beijar minha mão?”, pergunta Verônica Stasiak à repórter, com a mão estendida. E logo emenda, rindo: “É brincadeira.” Verônica tem fibrose cística (FC), doença causada por defeitos no gene CFTR que alteram o transporte de íons através das membranas das células e afetam o funcionamento das glândulas responsáveis pela produção de substâncias como mucos, suor e enzimas pancreáticas.

Nos pacientes fibrocísticos, essas secreções são muito mais grossas do que o normal, o que dificulta seu transporte e eliminação, gerando graves complicações. Por esse motivo, a doença também é chamada de mucoviscidose (muco + víscido, viscoso) ou ainda “doença do beijo salgado”, por conta do suor rico em sódio, que deixa a pele com gosto de sal. Entendeu, agora, por que Verônica faz piada quando estende a mão?

Mesmo desconhecida, a fibrose cística é a doença genética mais comum, com alta incidência entre pessoas de pele branca, mais rara nos negros e muito rara ainda nos asiáticos. No Brasil, país marcado pela miscigenação racial, ela pode se manifestar em todo tipo de população. Trata-se de uma doença genética autossômica recessiva, ou seja, tanto os cromossomas do pai quanto da mãe têm de ser portadores do gene defeituoso, ainda que o mal não se manifeste em nenhum dos dois. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), se ambos os pais carregam o gene defeituoso, cada gravidez possui 25% de chance de gerar um filho com FC.

O teste do pezinho, feito nos primeiros dias de vida do bebê, já pode detectar os primeiros indícios de risco da fibrose.

O caráter genético da doença afeta também seu quadro sintomático. Segundo a doutora Fabíola Villac Adde, pneumologista pediátrica do Instituto da Criança, do Hospital das Clínicas da USP, já foram mapeadas mais de 1.500 mutações do gene da FC, o que, na prática, significa manifestações muito diferentes e individualizadas da doença. Há quem tenha sintomas muito leves, mas há também quem, como Verônica, apresente o quadro completo e mais grave.

Mesmo com as variações, em geral os aparelhos respiratório e digestivo são os mais afetados. No primeiro caso, o muco viscoso fica retido nas vias aéreas, o que facilita infecções por bactérias. Por isso, pneumonias de repetição e tosse crônica são sintomas comuns. Além disso, as alterações nas enzimas pancreáticas geram problemas na absorção dos nutrientes dos alimentos, o que faz com que os fibrocísticos tenham dificuldade em ganhar peso e estatura.

Os primeiros indícios da FC podem ser detectados já no teste do pezinho, realizado entre os primeiros 3 e 7 dias de vida da criança. Por meio da análise de gotas de sangue coletadas no calcanhar do recém-nascido, é possível diagnosticar quatro doenças, divididas em 3 fases, sendo a fase 3 a mais completa e a única que inclui a FC. Ainda que o teste seja um direito garantido por lei a toda criança nascida no país, atualmente, apenas seis Estados estão tecnicamente habilitados a realizar a fase 3 via Sistema Único de Saúde (SUS): Paraná, Santa Catarina, Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo e Rio de Janeiro.

Uma vez que a probabilidade de ocorrência de falso positivo ou falso negativo no teste do pezinho é muito alta, caso seja apontada a FC, o teste deve ser repetido. Se o segundo resultado também for positivo, é realizado o teste do suor, possível a partir do segundo mês de vida da criança, ou o teste genético. São esses os procedimentos indicados para o diagnóstico em adultos, com atenção especial para o teste do suor, o único considerado comprobatório da FC.

O teste genético é apenas indicativo, pois, dada a diversidade de mutações do gene, apenas os tipos mais frequentes são detectados. Infelizmente, mesmo o teste do suor é alvo de discussões. “É muito comum que esse teste seja feito de maneira errada, o que contamina o resultado”, explica Fabíola. Dessa forma, a atenção ao diagnosticar a fibrose cística deve ser redobrada. A FC não é uma doença simples nem em seu diagnóstico.

O perigo do diagnóstico tardio

Foi o teste do suor que diagnosticou a fibrose cística de Verônica. Para um valor de referência de 60 milimoles por litro (a medida da quantidade da substância por litro), seu resultado foram 199 milimoles. Aliado a um quadro clínico típico de FC manifestado desde criança, não havia dúvidas. Mesmo assim, demorou 23 anos até a jovem paranaense de Ponta Grossa receber o diagnóstico correto. Só em setembro de 2009, o gastroenterologista que atendeu um de seus internamentos por pancreatite deu a sugestão. Seu pneumologista, que a acompanhou por dez anos, nunca citou a doença.

De um dia para o outro, Verônica descobriu sofrer de uma doença sem cura, cuja sobrevida mediana é de 35 a 37 anos – “para os países ricos”, explica Fabíola. “A média brasileira ainda não foi calculada, mas deve ser menor.” Os resultados em sites de busca são ainda mais desanimadores e, pior, incorretos. “A perspectiva de quantidade e qualidade de vida, hoje, é muito melhor do que há décadas, mas muitas das informações que estão na internet estão desatualizadas, então o paciente só vê susto e notícia ruim”, avalia a doutora.

Mas Verônica, ao contrário da maioria, não viu susto nem notícia ruim. Viu esperança. “Para mim, foi uma sentença de vida, se é que isso existe. Sentença de morte seria continuar sem o diagnóstico correto”, explica. Para divulgar a doença e evitar que outros sofram do diagnóstico tardio que a atingiu, fundou o Unidos pela Vida, grupo de familiares, amigos e portadores de fibrose cística que funciona virtualmente, por meio do portal www.unidospelavidafc.com – já que fibrocísticos não podem conviver fisicamente em razão do risco de infecção cruzada (é bom lembrar: a doença, por ser genética, não é contagiosa). De quebra, cunhou o simpático termo “pessoas de fibra” para se referir aos fibrocísticos.

No portal, a FC é debatida sob a perspectiva das possibilidades, não das limitações. O que fazer depois de receber o diagnóstico? Onde procurar tratamento? O site responde. Além de pacientes, são muitos os médicos em formação que procuram o portal, o que, segundo Verônica, é animador. “É importante mesmo que estudem a doença. Tem médico que me pergunta ‘Você tem fibrose cística desde quando? E eu tenho de explicar que é uma doença genética, portanto desde que eu nasci…”

Um dos principais motivos de dúvida é o tratamento. Uma vez que as manifestações da doença variam caso a caso, o tratamento também deve ser individualizado, indicado e acompanhado de perto por uma equipe médica especializada. Não é possível, portanto, buscar a solução na internet. Em termos gerais, inalações diárias com substâncias diversas, inclusive mucolíticos, que afinam o muco; sessões diárias de fisioterapia respiratória, para a eliminação da secreção; ingestão de enzimas pancreáticas a cada refeição, o que permite uma boa digestão; e uma alimentação hipercalórica.

Ao contrário do que se poderia pensar, a FC não traz restrições físicas aos pacientes – ao contrário, a prática de esportes é fundamental. Há casos, inclusive, de fibrocísticos esportistas, como Lisa Bentley, paciente canadense que é triatleta e já venceu o campeonato Ironman 11 vezes. No Brasil, o tratamento – que, em casos como o de Verônica, chega a custar R$ 10 mil por mês – é subsidiado pelo governo. Porém, sua disponibilidade varia entre os Estados.

O grupo de apoio informal fundado por Verônica está prestes a se tornar Instituto Unidos pela Vida. Formada em psicologia e fazendo pós-graduação na sua área, a jovem é cada vez mais solicitada: “Muita gente me chama para dar palestra motivacional, mas eu só vou se puder explicar o que é a fibrose cística. A gente trabalha para divulgar a doença.” Com as informações corretas, pacientes de uma doença até então assustadora têm tudo para se tornarem pessoas de fibra.