Sob o verdejante parreiral, o vigor e a fartura das uvas de Petrolina.

É desconcertante aproximarse por ar ou por terra de Petrolina, município pernambucano às margens do Rio São Francisco. Na caatinga surgem oásis, cujo verde se destaca entre cores terrosas. De início, a paisagem parece uma transgressão da natureza, uma terra que virou a casaca. O olhar mais atento, porém, percebe enormes plantações de frutas, sobretudo uvas, mangas e melancias. Considerada por muito tempo a ovelha negra dos biomas brasileiros, a caatinga esconde uma riqueza de diversidade ainda pouco explorada.

Idéias simples irrigaram o progresso ali. Sem esperar pelas obras da tão falada transposição do Rio São Francisco, idéia da qual se ouve falar na região desde o tempo de Dom Pedro 2º, alguns empreendedores acreditaram nessa terra e resolveram virar a mesa de suas vidas aperreadas.

O Velho Chico se espantou ao ver nascer pelas mãos do setor privado uma obra que pretende levar a salvação para áreas castigadas pela seca. No começo, foram simples projetos de irrigação com extensos canais que criaram zonas de prosperidade bem ao lado de áreas ressequidas. A paisagem muda, uniformiza-se e os vinhedos e as mangueiras se afastam até se encostarem num morro ou num riacho. O clichê de imagens do áspero sertão nordestino rolou água abaixo. Respira- se prosperidade nas cidades ao redor de Petrolina que se desenvolvem graças a essas culturas.

O abre-alas foi há mais de 20 anos, quando agricultores gaúchos iniciaram ali a produção de uvas para vinho. Em pouco tempo, eles transformaram a região no segundo maior pólo vitivinicultor do Brasil. Pegando o gancho, outras lavouras também se instalaram, como a da manga, que hoje é exportada para diversos países.

NOS ÚLTIMOS SETE ANOS, de olho no crescente desenvolvimento e sobretudo com a presença marcante da Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias (Embrapa), o setor público começou a investir ali. Nesse centro de excelência se desenvolvem projetos que rompem as cascas do laboratório e vão frutificar nos novos campos agrícolas. As pesquisas se voltam para as frutas que se dão bem na região e as que têm a preferência do produtor. “Podem ser tanto a uva de mesa como a uva do vinho fino, a manga, o melão e a melancia”, ensina o agrônomo e viticultor Francisco Amorim. “Todas precisam de cuidados especiais, pois seu manejo é completamente diferente.” A Embrapa vai além ao capacitar a mãode- obra para o cultivo e a produção de frutas de qualidade.

Um sério obstáculo ao sucesso da iniciativa era a presença das moscas-dasfrutas. Para superá-lo, foi essencial a instalação da Biofábrica Moscamed em Juazeiro (BA), cidade vizinha a Petrolina. “As moscas-das-frutas são pragas quarentenárias e representam um dos principais problemas na exportação de frutos frescos”, afirma a pesquisadora Beatriz Jordão Paranhos. “O controle químico, normalmente utilizado para o controle dessa praga, traz sérios prejuízos ao agroecossistema, ao meio ambiente e à saúde.”

Para tanto, foi usada pela primeira vez no Brasil a Técnica do Inseto Estéril (TIE), um método eficaz e seguro no controle da Ceratitis capitata (principal espécie de mosca-das-frutas) nos pomares irrigados da região. Ela tem o nome vulgar de mosca-do-mediterrâneo (moscamed), de onde é originária.

Da esquerda para a direita, a colheita das uvas, feita quase sempre por mulheres; a Calçada da Fama e a exuberância do Mercado do Produtor de Juazeiro. Abaixo, à esquerda, a Vinícola Garziera, uma das primeiras que se instalaram na região, acreditando no potencial do vinho que ali está sendo produzido.

A VITIVINICULTURA NORDESTINA quebra um paradigma da ENOLOGIA internacional ao cultivar uvas entre os PARALELOS SUL 8° e 9°

“A TIE consiste na criação em larga escala do inseto-praga e na sua esterilização por meio de irradiação gama”, explica Beatriz. “A partir daí, eles são liberados semanalmente nos campos, constituindo uma população de machos estéreis de nove a cem vezes maior em relação aos selvagens. Esses machos copulam com as fêmeas selvagens e estas não geram descendentes.”

A região floresceu e a flor da lapela é a uva. As vinícolas nos arredores dessas cidades têm chamado a atenção de vitivinicultores tradicionais de Portugal e Itália, que começaram a investir a ponto de o Vale do São Francisco passar por uma espécie de crise de identidade. A crise – na verdade, um elogio à região – não é sem motivo. Até pouco tempo atrás, os vinhos eram mundialmente classificados entre os produzidos na Europa e os produzidos no Novo Mundo, incluindo-se aqui, além do próprio Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia e África do Sul.

MAS ENÓLOGOS de classe já começaram a identificar o semi-árido brasileiro como uma nova fronteira vinícola, que encabeça a tendência da vitinicultura logo abaixo da linha do Equador. Ali nunca será a região brasileira da Borgonha, da Toscana, da Rioja ou do Alentejo, mas a dos vinhos feitos à moda ensolarada do Vale do São Francisco. “De fato, a vitivinicultura nordestina quebra um paradigma da enologia mundial ao cultivar uvas entre os paralelos sul 8° e 9°, enquanto o resto da produção do mundo se concentra entre 29° e 45°, tanto norte como sul”, revela o pesquisador Giuliano Elias Pereira, da Embrapa Uva e Vinho/Semi-Árido.

“É de não se acreditar nos olhos! É de não se crer nos ensinamentos dos mestres enólogos europeus”, confessa Marta Agoas, enóloga portuguesa da vinícola Rio Sol, localizada em Lagoa Grande (PE), município vizinho de Petrolina. Marta, que está há quatro anos no Brasil, demorou um ano para entender as virtudes e a energia da região, soma mágica de sol mais água.

“Entre outras coisas, os meus professores me asseguraram que no sertão brasileiro seria impossível conseguir um vinho com vigor cromático. Em pouco tempo, obtive melhor intensidade de cor do que no Douro, região portuguesa por excelência na coloração dos vinhos. Defendi até mesmo uma tese para provar essa qualidade dos vinhos do São Francisco”, diz ela.

“O BRASIL PODE ser revolucionário.” As palavras são de Jonathan Nossiter, diretor do documentário Mondovino, que deu o que falar quando foi exibido em 2004. O filme bateu de frente, em particular com os grandes produtores mundiais de vinhos. Nossiter, que se faz acompanhar agora em suas idéias por muitos “entendidos”, prega que o lindo do vinho é que ele é expressão da individualidade da pessoa que o faz, e também do lugar. E exemplifica: “Como viajar ao Vale do São Francisco e encontrar pessoas audaciosas que têm a possibilidade de fabricar um vinho único, um vinho brasileiro que não tenta imitar o europeu ou o norte-americano. Eles o chamam de vinho tropical, de vinho do sol.”

COM O SUCESSO do agronegócio, outras atividades têm surpreendido a região. A combinação de vinho com turismo não é novidade no mundo. Os habitantes das cidades envolvidas nesse projeto, anteriormente desprovidas de tal segmento, viram a possibilidade de aumentar os ganhos com o enoturismo, que atrai milhares de visitantes para a região. As vinícolas agora investem em suas dependências para que o consumidor possa conhecer o processo de elaboração dos vinhos, do cultivo até a comercialização.

Para o enólogo português João Santos, da Rio Sol, “roteiros do vinho” em outros países soam como gozação: “O único lugar do mundo para percorrer um verdadeiro roteiro do vinho é o Vale do São Francisco, que tem uva o ano inteiro. Aqui, você acompanha, num só dia e em terrenos diferentes, a semeadura, a poda, a colheita e o descanso. E, se ainda tiver tempo, pode observar o processo de fermentação e o engarrafamento do vinho.”

O salto de qualidade das vinícolas passou para a infra-estrutura hoteleira e para o comércio em geral. O enólogo Jorge Garziera, diretor da Vinícola Garziera, se empolga quando fala dos vinhos brasileiros ali produzidos: “Em tecnologia e qualidade não devemos nada a ninguém.”

No sentido horário, a criação de tilápias na Barragem do Sobradinho; o laboratório da Embrapa; a Catedral de Nossa Senhora do Coração de Jesus, em Petrolina, que abriga a maior quantidade de vitrais franceses no Brasil; o Museu Pai Chico, no povoado de Caboclo, que reúne objetos, móveis e fotografias antigas; e o controle da praga das moscas-das-frutas, feito pela técnica da introdução do macho estéril.

UM ROTEIRO POR Petrolina não precisa ficar só nas vinícolas. Há outros atrativos, como o Museu do Sertão, onde se pode ver um pouco da história da cidade, carrancas famosas do escultor Guarani, uma carta de Lampião que relata que “vai pegar o cara depois da curva (do rio)”, objetos da casa de um caboclo e muito mais. Outra atração na cidade é a Catedral de Nossa Senhora do Coração de Jesus, em estilo neogótico inspirado no da Catedral de Notre Dame, em Paris (França). O maior conjunto de vitrais franceses no Brasil está ali.

Caindo mundo afora, pode-se ir para Caboclo, distrito de Afrânio (PE), outra cidade do Caminho do Vinho. Ali, a bela surpresa fica por conta da restauração de um casario de mais de 200 anos. Lugar aprazível, onde se pode passear por uma imensa praça na qual se erguem dois tamarindeiros centenários e majestosos, rodeados de casas coloniais coloridas.

Vale também conhecer Sobradinho, na Bahia, sua usina hidrelétrica e o maior lago artificial do mundo. No mirante do alto do morro, percebese a mão caprichosa do ser humano ao “arrumar” a natureza do semi-árido em alguns lugares. Onde ele a colocou, o verde surge como milagre ao lado da secura da caatinga.

Para saber mais

Embrapa Semi-Árido – tel. (87) 3862-1711.

Moscamed – www.moscamed.org.br.