No início da estação chuvosa de 1660, uma gigantesca onda de cinzas provocada por uma explosão, conjugada a uma violenta erupção dos dois picos do vulcão Pichincha, Guagua Pichincha (4.784 metros de altura) e Rucu Pichincha (4.698 metros), obscureceu durante vários dias toda a região de Tulipe, 70 quilômetros a nordeste da capital equatoriana, Quito. Três dias após o começo da erupção, os estrondos atingiram o clímax e foram seguidos por tremores sísmicos, lançamento de pedras incandescentes a quilômetros de distância, rios de lava, liberação de vapores venenosos e incêndios florestais.

Foi o pior desastre natural do Equador em mil anos. Segundo relatos espanhóis e as especulações de estudiosos, em Tulipe só ficaram de pé as árvores mais altas, calcinadas. A vegetação queimou ou desapareceu sob a camada de cinzas, que chegou a atingir 40 centímetros de altura em alguns pontos. A sequência de calamidades deixou um cenário inabitável em torno dos vulcões para a população indígena e os animais.

Séculos após o desastre, nos anos 1980, um observador veria em Tulipe nada mais do que um bosque subtropical recomposto, pontuado por pequenas lavouras e propriedades de agricultores, em meio à bucólica paisagem das montanhas andinas. Foi aí que, alertado por objetos antigos desenterrados pelos moradores em 1982, o arqueólogo equatoriano Holguer Jara entreviu pequenos montes de terra que se sobressaíam no terreno. Aos poucos, Jara descobriu que se tratava de tolas, aterros artificiais construídos para sepulturas, usados como monumentos rituais pelo povo yumbo, que os incas, antes dos espanhóis, intentaram conquistar em 1530, mas desistiram por julgá-los muito pobres. Em quéchua, yumbo significava “gente desnuda”.

O desenho das tolas parecia uma pirâmide truncada, dotada de uma ou duas rampas de acesso. O que ninguém (inclusive Jara) suspeitava era a magnitude das construções, principalmente das piscinas enterradas, descobertas nesse sítio arqueológico ao longo dos últimos 30 anos.

Cultura perdida

Embora os yumbos já fossem conhecidos na história equatoriana, os historiadores e os antropólogos consideravam sua sociedade desestruturada, com uma cultura precária que desapareceu no final do século XVII. No entanto, as escavações a partir de 1982 revelaram um conjunto monumental formado por oito piscinas, cuja originalidade e características arquitetônicas são únicas. Além de aquedutos, há terraços e inúmeros petrogrifos, com uma rica grafia simbólica feita por artistas e xamãs. “Isso é só um vislumbre”, explicou Jara à PLANETA. “É o indício da existência de um povo que carregou um grande e sofisticado conhecimento.”

Muito antes dos incas, entre os anos 800 e 1660, os yumbos habitaram a região de Tulipe, dispersos por uma aliança de aldeias. De acordo com o historiador Fábian Amores, do Museu Nacional de Quito, a geografia influenciou a formação de uma confederação indígena. “A região em que essa cultura de altitude se desenvolveu abarca uma extensão de 900 km2 nas encostas ocidentais da Cordilheira dos Andes, desde os 3.500 metros de altura, passando pela floresta nublada a 2.200 metros (uma das regiões com maior biodiversidade do planeta), até a floresta úmida subtropical de Milpe, a 1.100 metros de altura”, diz o historiador.

Os yumbos eram mercadores e agricultores. Trocavam produtos com outros povos dos Andes e do litoral, e também com índios da floresta amazônica. Com a chegada dos espanhóis, em 1560, passaram a lhes fornecer mantas de algodão, roupas e grandes novelos de fios, cujo comércio estimulou o desenvolvimento posterior da indústria têxtil em Quito.

As pesquisas arqueológicas e históricas ampliaram a compreensão dessa cultura, principalmente da sua cosmologia. “Era uma sociedade que desenvolveu um culto à água”, conta Amores. Não é necessário ser especialista para perceber que Tulipe, numa região com altíssimo índice pluviométrico, é rica em rios, riachos e cachoeiras. Mas há mais do que isso. “A Yakumama, ou Mãe Água, em quéchua, foi uma entidade poderosa para os habitantes da região. Para eles, a água era mágica, significava vida, fertilidade, e era o meio de comunicação que permitia aos yumbos entrar em contato religioso com o universo celestial além da Terra.”

Piscinas lunares

Holguer Jara, que é diretor do Museu Yumbo, construído em 2007, ao lado do sítio arqueológico, garante que a civilização yumbo foi mais importante do que se pensa. Com a descoberta das “piscinas rituais”, a antropologia americana deveria compreender que houve outras civilizações tão importantes quanto os incas, maias e astecas no continente, anteriores a elas. No caso yumbo, uma cultura com uma cosmovisão mítico-religiosa singular, baseada nas águas e no conhecimento astronômico.

No Equador, os astrônomos podem estudar as estrelas dos dois hemisférios, sul e norte, devido à localização geográfica da linha equatorial. As oito piscinas construídas em Tulipe, com formas e desenhos geométricos particulares, funcionavam como altares rituais. “Durante a noite revela-se a funcionalidade dos espelhos d’água que refletem corpos celestes e galácticos. Principalmente a Lua, que se visualiza com volume e proximidade, impõe sua presença como no céu terreno, com uma particularidade: refletida na piscina, os yumbos a faziam prisioneira, trazendo o Céu para a Terra”, afirma Jara. Era uma espécie de planetário nas águas.

No centro do complexo há quatro piscinas que formam uma cruz em quadrado perfeito, remetendo-se à constelação do Cruzeiro do Sul, que os incas chamavam de chakana, importante em sua cultura. Talvez por isso, também eles construíram uma piscina, entre 1520 e 1534. Alguns espelhos d’água, retangulares e semicirculares, são identificados como a Lua e o Sol. Há também uma piscina poligonal, de 20 lados, que alude à figura de um jaguar deitado.

“O animal era considerado sagrado nos Andes pré-colombianos, associado à força, à astúcia, ao fogo e à sabedoria”, diz Amores. Afastada do complexo principal há outra piscina, a maior, com forma circular, cujos elementos (círculos concêntricos, passarelas, rampas e aquedutos) obedecem à distribuição planejada relacionada à trajetória do Sol durante o ano, nos períodos do equinócio e do solstício. “Era a época em que se realizavam as festas mais importantes. Nessa ocasião, os yachaks, ou homens sábios, utilizavam as piscinas para banhos rituais”, diz Amores.

A civilização yumbo foi dizimada por epidemias trazidas pela invasão europeia. Mais de 15 mil índios morreram entre 1560 e 1570. Depois disso ainda aconteceram guerras locais e, finalmente, a erupção do vulcão Pichincha, em 1660, que cobriu Tulipe de cinzas. Mas o legado da cosmogonia e da arquitetura religosa dos yumbos permanece.