Em meio à diversidade de crenças e fundamentalismo religioso, Michael Shermer se empenha para que a ciência seja ouvida e os céticos se reconheçam como parte de um grupo bem maior do que imaginam.

Michael Shermer não é um devoto comum da ciência. Há três décadas dedica-se a estudar como as crenças nascem, se formam, se reforçam, são contestadas, mudam, se extinguem e permanecem. Cético declarado, assumiu a missão de divulgar a ciência para o maior número de pessoas. Para isso, criou a ONG The Skeptics Society, fundou a revista Skeptics e escreveu 15 livros sobre a evolução das crenças e condutas humanas.

Antes desse empenho todo em promover o questionamento lógico e crítico, Shermer foi um fiel evangélico praticante. “Ia de porta em porta e falava com cada pessoa, dando testemunho de Deus e evangelizando para a cristandade.” Fez a faculdade de psicologia na Universidade Pepperdine, na Califórnia, fundamentada nos princípios da Igreja de Cristo. Foi nesse ambiente que teve contato com os preceitos científicos que o fizeram mudar de lado. Hoje, ele encara a fé, a superstição e os entes sobrenaturais como processos neurológicos. “Todas as operações mentais podem ser explicadas unicamente pelas correlações neurais. Tudo é fruto da atividade cerebral. Não existe mente. Mente é uma palavra confusa e mística”, diz.

A PLANETA conversou com o psicólogo norte-americano em sua primeira visita ao Brasil, um país rico em sincretismo religioso, cujo Censo Nacional 2010 somou apenas 8% da população na categoria “sem religião” (que reúne quem se declarou sem religião, ateu ou agnóstico). Em São Paulo, Shermer realizou uma conferência no evento Fronteiras do Pensamento e lançou a tradução brasileira do livro Cérebro e crença (JSN Editora, São Paulo).

Como ex-crente e atual cético, qual a diferença que o senhor vê entre religiosidade e espiritualidade?
Espiritualidade é uma dessas palavras usadas por diferentes pessoas de diferentes formas. Tem mais a ver com o sentimento e a emoção de estar em transcendência. Religião é uma organização sociopolítica, mais específica. Olhar as galáxias pelo telescópio Hubble faz as pessoas se sentirem pequenas, insignificantes, e inspiradas pela grandeza do cosmos. Isso é espiritual. Nesse sentido, a ciência é bem maior que a religião. O palco do verdadeiro drama do universo é muito maior na ciência do que na religião.

É possível ser, ao mesmo tempo, ateu ou agnóstico e espiritualista?
Claro. Com certeza. A religião não tem o monopólio sobre a espiritualidade. Onde eu quero chegar é: se você quer espiritualidade, a ciência é o caminho, porque ela faz a pessoa se sentir realmente inspirada. A história da evolução – o caminho percorrido nos últimos três bilhões de anos – é espetacular. Isso, sim, é inspirador. Isso, sim, faz você se sentir profundamente conectado ao cosmos. Pense no fato de sermos todos feitos de material estelar: os átomos de carbono que formam nossos corpos faziam parte da constituição de estrelas há muito tempo atrás em outra parte da galáxia. A religião não tem nada sequer parecido com essa história para oferecer.

Por que as pessoas acreditam nas histórias que as religiões contam se elas não são inspiradoras?
Por uma porção de motivos. As pessoas acreditam em crenças porque se espera que elas acreditem. Elas não pensam muito a respeito do que estão acreditando. Tem muito “capital social” envolvido nas crenças religiosas. Por “capital social” quero dizer família, amigos, colegas de trabalho, etc. Você vai à igreja e toca uma música, servem-lhe comida e todos se sociabilizam. A religião oferece todo esse pacote e, ainda, outra coisa que os cientistas não oferecem: alívio para o pós-morte. Para as religiões, ninguém morre na verdade; as almas vão para outro lugar. Isso reduz a dor do luto e do sofrimento da perda. Só que isso é falso, não é real. Mas as pessoas querem que seja verdade. No fundo, todos queremos acreditar. Além disso, nosso cérebro é uma máquina de gerar crenças. Imagine que você é um primata na África de 3,5 milhões de anos atrás, e você ouve um barulho no mato. Pode ser um predador ou o vento. Se for o vento, tanto faz se você sair correndo ou se ficar. Mas, se for um predador e você achar que é o vento, morre. Então o melhor é pensar que qualquer barulho é um perigo real, só para se garantir, caso realmente seja. Nosso cérebro evoluiu para conectar os pontos do nosso mundo com padrões significativos, capazes de explicar por que as coisas acontecem. Esses padrões se tornam crenças.

A religião pode ser trocada por literatura?
Algumas pessoas se inspiram na literatura. Não é exatamente como a religião ou a ciência, mas muitos fãs de Harry Potter são fanáticos, num sentido quase religioso da coisa. Mas isso não quer dizer que acreditem em bruxas. J.K. Roling não está fingindo escrever sobre a realidade. Ela diz que é uma fantasia que ela inventou, e todo mundo sabe disso. Existe um acordo explícito aí. No caso da ciência, estamos lidando com a realidade. Estamos tentando não inventar nada. E a religião é o problema. Porque também diz tratar da realidade, mas soa como Harry Potter para mim. Jesus nasce de uma virgem, anda sobre as águas e faz milagres, morre e renasce. Por favor, conte outra!

Se é tão difícil de acreditar, por que tanta gente acredita não só na história do cristianismo, mas em outras religiões também?
O ambiente cultural e social influencia as pessoas. Por isso, nossa missão no site e na revista Skeptics é mostrar que existem outras pessoas aqui que não acreditam nisso. Você não tem que acreditar. Está tudo bem, você tem amigos desse lado também. O grupo religioso que mais cresce no mundo ocidental é o dos “sem religião”. São 20% dos Estados Unidos, uma a cada cinco pessoas – 60 milhões de americanos não têm religião nenhuma. Somos mais numerosos do que os judeus. Somos um grupo expressivo de eleitores. Nós temos voz. Eu recebo muitas cartas de gente que descobre meus livros e a revista e ficam impressionados porque existe toda uma comunidade de céticos.

A ideia de criar a revista e escrever seus livros foi unir esse grupo?
Tive a intenção de juntar as pessoas e celebrar a ciência, mais do que com bater a religião. Estar contra alguma coisa não é suficiente, é preciso estar a favor de algo. Somos a favor de ciência, da lógica, do empirismo e do pensamento crítico. Queremos trazer gente para esse lado. Todo mundo deveria ler alguma revista científica.

Sua crítica se dirige à fé em geral ou ao fundamentalismo religioso?
Não temos nada a temer da maioria das pessoas que têm religião. O maior perigo é o extremismo religioso que faz lançar aviões sobre prédios. Tem gente suficiente, ainda, infelizmente, que acredita que você deve morrer se não acredita no que eles acreditam.

O aumento do poder aquisitivo, do acesso à educação, à informação e ao desenvolvimento induzem ao ceticismo?
Existe o mito de uma correlação entre inteligência e crença: acredita-se que, quando a inteligência cresce, a crença na superstição e na magia desaparece. Mas não é o caso, principalmente se tomarmos como base o QI, o quoeficiente de intelegência. A inteligência só influencia a crença em um aspecto: quando alguém se compromete com uma crença, quanto mais inteligente ele for, melhor racionalizará essa crença para defendê-la.

Seu livro, Cérebro e Crença, destaca que as religiões podem fornecer preceitos morais, mas eles não são monopólio religioso. De onde vem a moral então?
Vem da nossa natureza. Nós somos, por natureza, uma espécie sociável. Viver em sociedade gera conflitos. Existem várias maneiras informais de estimular e dar continuidade aos conceitos morais. Não precisamos de religião para isso. Mas quando a população começou a aumentar muito, há aproximadamente cinco mil anos, as tribos cresceram e se transformaram em cidades e Estados, e passou a ser necessário estabelecer determinadas leis formais de convivência para resolver conflitos. Se tivéssemos que basear os preceitos morais sempre na religião, qual seria a religião mais indicada para isso? O Velho Testamento tolerava escravidão, submissão da mulher, abuso de crianças. Está na Bíblia. Eram os costumes das pequenas tribos do deserto há muitos anos. Além disso, se a religião é tão importante para a moral e os bons costumes, por que os países europeus são menos religiosos do que os países ocidentais e têm a população mais próspera, saudável e feliz? Por que os Estados Unidos, a nação mais religiosa do Ocidente, têm a maior taxa de homicídios, crimes, abortos, gravidez na adolescência e suicídio? Se a religião é tão boa, por que ela não nos protege dessas coisas? Não quero dizer que a religião cause esses problemas. Mas também não acredito que a religião possa solucionar esses temas.

Você é psicólogo. Nem todas as teorias psicológicas são provadas cientificamente. Como o senhor lida com isso, sendo tão cético? Acredita em Freud ou em Jung?
Em nenhum dos dois. Sou cético quanto aos dois. Não se trata de duvidar por duvidar. É possível ser cético de diferentes formas. Quero saber o que é verdade, saber como o mundo realmente é. Acredito em várias coisas: teoria da evolução, Big Bang, placas tectônicas, direitos civis, liberdades, democracia, etc. Minha ênfase é em psicologia evolucionista, a evolução dos sentimentos morais, as emoções e o pensamento cognitivo usados para resolver problemas no ambiente ancestral, com o passar dos milhões de anos. É bom lembrar que o mundo moderno é novo. Não houve tempo para a evolução fazer algo com os nossos cérebros. Ainda temos muito dos nossos ancestrais.

Há diferenças fisiológicas entre os cérebros de crentes e de céticos na teoria da evolução?
Ressonâncias magnéticas do cérebro não provaram nada, até agora. Tudo indica que o ceticismo é mais cultural do que fisiológico. Trata-se de um aprendizado. É mais fácil acreditar do que ser cético. É desconfortável e difícil desafiar noções estabelecidas, como a religião e a política.