Eugenio Singer defende a modificação das regras de licenciamento.

O presidente de uma das principais consultorias ambientais do Brasil afirma que o eterno impasse entre empresários e ambientalistas só pode ser resolvido quando as regras do jogo do licenciamento forem modificadas.
 

Longe de ser uma operação simples, o estudo dos possíveis impactos ambientais de grandes empreendimentos como portos, conjuntos habitacionais, aterros, usinas e gasodutos requer pesquisas profundas e uma boa dose de política. Na área há 35 anos, Eugenio Singer, presidente da Consultoria, Planejamento e Estudos Ambientais (CPEA) – uma das principais consultorias ambientais do país, atuante sobretudo no Porto de Santos e na Baixada Santista –, conhece de perto a dificuldade de construir pontes entre empresários, ambientalistas e governo. 

Nesta entrevista, Singer defende que o Estado deveria assumir o ordenamento territorial, com as respectivas vocações de cada região, elaborando de forma ampla e sistêmica os diagnósticos ambientais, em vez de encomendá-los a empresas privadas, como se faz hoje. Para tanto, os institutos de pesquisa deveriam ter sua experiência reconhecida e ser encarregados de determinar que tipo de empreendimento uma região ou território estaria capacitado para receber.

Dessa forma se tiraria dos ombros dos agentes ambientais governamentais o peso da responsabilidade política sobre licenças que acabam associadas ao nome de um funcionário público. Os agentes do Ibama ou da Agência Nacional de Águas, por exemplo, que já trabalham com recursos escassos e sob pressão, sabem que os promotores do Ministério Público podem responsabilizá-los pela concessão de uma licença ambiental controversa. É preciso evitar que instituições fracas acabem tomando decisões débeis sobre questões controversas.

Sempre que se fala em licenças ambientais, há confronto. De um lado, as agências reguladoras criticam a baixa qualidade dos estudos ambientais. Do outro, as empresas acusam o processo de comprometer o desenvolvimento. Como o sr. vê esse cenário?
Acredito que é preciso esclarecer os papéis dos atores. Não está claro o que o empresário tem que fazer, qual é a sua missão. Não está claro para o agente público o que ele tem que fazer. Não está claro para a sociedade o que ela tem que fazer. E por cima disso ainda tem o Ministério Público, pressionando e agindo de uma forma complexa para todos os envolvidos.

Como cada ator deveria agir?
Para mim, o planejamento territorial tem que ser função do Estado. O governo é quem teria que dizer: “Olha, neste local é possível fazer uma hidrovia, para escoar a produção; este outro lugar tem potencial agrícola para tal tipo de espécie; aqui podemos ter uma área de exploração de portos, de infraestrutura logística, ou uma área de lazer, ou marina, de turismo náutico”. Trata-se de definir quais são as vocações territoriais
no município, na região e no Estado, e dizer: aqui estamos abrindo para investimentos desse tipo. As condições são essas, os interessados têm que cumprir essa legislação. Você reduz o tempo e os custos para os empresários, para investimento e zela pelo ambiente.

O Estado deveria ser responsável pelo estudo ambiental para definir o que é melhor para cada área? 
Sim. É inconcebível, por exemplo, que um Estado como São Paulo, que tem sucateado seus institutos de pesquisa, seja incapaz de planejar seu território, suas vocações e de se apresentar de forma clara para o empresário, cujo papel é investir e garantir a conformidade ambiental. A sociedade que recebe os benefícios do desenvolvimento deve cobrar, ser observadora do Estado e do setor privado. Hoje você tem um ônus delegado ao empresariado para realizar diagnósticos ambientais complexos e ininteligíveis, que gastam uma vastidão de recursos e de tempo, e ainda tem pressão sobre órgãos ambientais que não conseguem tomar decisões em tempo hábil.

Os agentes do Ibama reclamam das responsabilidades individualizadas. Eles têm medo de assinar uma licença prévia e virar alvo de um promotor. O que o sr. acha?
Eu morreria de medo, e você também, se estivesse na pele dos agentes que têm de tomar uma decisão sem o devido respaldo institucional sobre uma política pública. Não existe planejamento estratégico no Brasil. Não há uma política nacional de energia, de recursos hídricos, florestais, de mineração, de logística. O ônus cai em cima do indivíduo que assina a licença.

Em 2007, durante o licenciamento das hidrelétricas do Rio Madeira, a diretora do Ibama pediu demissão. Em 2009, a hidrelétrica de Belo Monte também gerou demissões. O que isso significa?
Que não existe conciliação entre interesses estratégicos, necessidades reais de desenvolvimento e demandas, sejam energéticas ou de insumos. Existem fortes interesses de grupos conflitantes. Por um lado, empreiteiros que querem manter a rentabilidade, o crescimento e os projetos; por outro, setores da população e da sociedade que acham que é importante desenvolver ou preservar determinadas áreas.

Como a CPEA atua?
Desenvolvemos um número enorme de projetos, tanto para o setor público quanto para o setor privado. Hoje possuímos todo um diagnóstico de conflitos de zoneamentos, interesses e áreas na Baixada Santista e podemos apresentar cenários com as melhores soluções para novos projetos. Temos um grande banco de análise de dados regionais e, por isso, conseguimos fazer estudos com mais rapidez e qualidade.

Como o sr. vê a nova lei dos portos?
Com otimismo. Ela abre uma oportunidade grande para o exercício do conhecimento de uma forma efetiva nos estudos ambientais. Mesmo assim, o setor todo ainda é precário. É quase um retalho o que a gente faz dos nossos portos. Você anda em Santos e se sente às vezes até um pouco envergonhado de ver as condições dos terminais.

Algum projeto foi impedido por estudo de licenciamento?
Em São Paulo houve a Estrada do Sol, de São José dos Campos a Caraguatatuba, para escoamento pela Serrado Mar. Dos milhares de estudos ambientais feitos, quantos resultaram em negação total? Muito poucos. Na verdade, isso deveria ser atribuição não do licenciamento, mas do planejamento ambiental. Porque o mais importante nos estudos de impacto são os programas ambientais que serão executados durante 20 anos ou durante a vida útil do empreendimento. A maioria dos estudos trata de discussões de viabilidade, e não de defi nições do empreendimento. A ordem está errada: primeiro você define se o empreendimento deve existir e depois cuida da viabilidade ambiental.

Dá para fazer avaliação antes do estudo de impacto ambiental?
As empresas e a sociedade precisam entender, de forma antecipada, quais as indicações de um empreendimento que podem ou não prejudicar um ecossistema. Se for um investidor cujas tecnologias forem comprovadamente degradadoras, você deve se preocupar. Se você está em área de altíssima vulnerabilidade, onde os serviços de ecossistema são de alto valor e irreparáveis, também deve se preocupar. Se você não tem uma governança clara, que integre a sociedade, o empreendedor e o agente público, se tem um órgão ambiental fragilizado e coloca um projeto polêmico na área, precisa se preocupar muito. O  planejamento serve para nortear as autoridades de gestão ambiental de modo a tomar decisões e fazer exigências detalhadas.

Como é possível detectar esses pontos cruciais?
Com o uso dos institutos de pesquisa das universidades e da sociedade. Não há por que não envolvê-los. Estamos na era da informação. As informações estão disponíveis. Os EUA fornecem diagnósticos para empresas brasileiras a custo mais baixo e de forma segura. Dizem que os EUA sabem o estoque de carbono de cada centímetro quadrado na Amazônia. Eles podem fornecer essas informações. Com todos os  sistemas de monitoramento e análise que temos, com as universidades e os institutos de pesquisa precisando de recursos para desenvolver profissionais interdisciplinares, é fundamental que o governo, em vez de ficar fazendo estudo de impacto, se encarregue do planejamento, da avaliação e dos diagnósticos. Porque a relação financeira que há quando você contrata um estudo é diferente. No fundo, já existe um viés de viabilidade na contratação. Ninguém vai te contratar para você dizer que não pode fazer. A decisão deve ser do governo, não do contratante. Essa é uma questão da independência que é difícil de equacionar.

Que avaliação o senhor faz dos projetos das hidrelétricas de Belo Monte, no Rio Xingu, e de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira?
Há grandes diferenças regionais, tecnológicas e de interesses envolvidos. O importante é o estudo prévio. Existem resoluções que exigem consulta prévia de ocupação, principalmente às nações indígenas. Hoje, atropela-se um pouco esse processo. Por outro lado, confio no  que está estabelecido, na legislação e no marco regulatório. O Brasil tem vários organismos financeiros signatários de pactos internacionais, como os Princípios do Equador, o que dá alguma garantia. Mas isso não quer dizer que projetos financiados por bancos e agências multilaterais não deem errado. Muitos dão errado. Por isso mesmo, as agências estão se preparando cada vez mais. Esse é um processo de muitas variáveis e você precisa de um sistema de controle adequado. Seria importante criar um observatório social independente capaz de analisar a real dimensão de um investimento de porte no ambiente e no desenvolvimento.

Na teoria, dez por cento do total do investimento em Belo Monte foi dirigido para corrigir impactos ambientais. Na prática a realidade pode ser outra?
Só um observatório isento pode avaliar isso. Mas o quadro mudou. Antes, quando você dizia que um projeto tinha que ser modifi cado para dar passagem a animais os caras enlouqueciam. Hoje, a dimensão ambiental está incorporada. Na engenharia, o pessoal entende isso de forma melhor. O Brasil avançou.