Dos políticos eleitos em 2018, 35% respondem a processos. Mas logo serão reeleitos, como ocorre há décadas. É como se parte dos brasileiros invejasse a vida de clãs políticos, nepotistas e burladores da Justiça.Certas notícias despertam pouca atenção no Brasil por fazerem parte da normalidade deste país. Os brasileiros se acostumaram a elas, no fundo não esperam mais outra coisa. Mas são notícias que em mim continuam despertando incompreensão e cólera.

Quando as conto aos meus conhecidos na Alemanha, em geral me perguntam, cheios de perplexidade: “E essa gente está no poder, no Brasil? Eles não renunciam por conta própria, quando algo assim vem à luz? Ou são forçados a renunciar?” Aí eu sempre digo: “É pior ainda, porque essa gente é até eleita vez após vez. Parece que os brasileiros, de certa maneira, os admiram.”

Mas cada coisa a seu tempo. O estopim imediato da minha indignação é Ciro Nogueira, atual ministro-chefe da Casa Civil do presidente “anticorrupção” Jair Bolsonaro. Quando ainda era senador, ele ganhou o questionável título de “campeão de gastos com locomoção, hospedagem, alimentação e combustíveis”.

Nenhum senador gastou mais dinheiro de vocês, queridos leitores, para fins que, na minha opinião, deveriam ser pagos por ele mesmo. Entre janeiro e julho de 2021, o atual ministro gastou R$ 263.300 dos cofres públicos somente para abastecer seu jatinho, que costumava usar nas viagens para Brasília. O salário mensal de um senador da República é de R$ 33.763.

Nepotismo sistêmico

Quando Nogueira, hoje com 52 anos, foi nomeado ministro-chefe da Casa Civil, a mãe dele foi atrás, ocupando uma vaga de senadora. O que em democracias funcionantes seria proibido como nepotismo é perfeitamente normal no Brasil. Aqui, os políticos fundam pequenos impérios familiares, empurram os cargos de um lado para o outro, dentro do clã. Em 2017, seis de cada dez parlamentares tinham parentes na política. O Congresso brasileiro, portanto, não representa o povo brasileiro: é um negócio de certas famílias.

Do avô ao neto, passando pelo filho, cargos políticos são herdados, e postos lucrativos, entregues a tios, tias, sobrinhas, sobrinhos e amigos íntimos da família – fazendo pensar mais em feudalismo do que em democracia. Em 2015 veio à tona o caso de Bonifácio de Andrada: em seu décimo mandato na Câmara, ele representava a quinta geração de um clã que, nos últimos 194 anos, já teve outros 14 representantes no órgão legislativo brasileiro.

E enquanto isso, os brasileiros se perguntam: por que nossa política nunca muda? Por que algumas famílias acumulam riquezas e terras inimagináveis, enquanto a maioria da população vive no limite da pobreza?

E assim voltamos à mãe de Ciro, Eliane Nogueira. Parece que o Senado não vai economizar muito com ela, que repete o hábito do filho de gastar o dinheiro dos brasileiros para o próprio conforto e já apresentou notas fiscais no valor de R$ 14.200 em combustível para o seu jatinho.

Assim se criam monstros

O caso é emblemático da arrogância de grande parte da classe política do Brasil. Aqui muitos não entram para a política com a intenção de melhorar algo para a população, fazer algo pela educação, justiça, proteção ambiental, segurança e saúde dos brasileiros, mas para usufruir pessoalmente dos privilégios que o disfuncional sistema político do país garante.

Na Alemanha, os políticos eleitos são também chamados representantes do povo. No Brasil, eles são representantes de si mesmos e de seu clã. Os únicos que poderiam mudar esse sistema são os próprios políticos, e estes não vão mover uma palha para limitar os próprios privilégios. Eles vivem como pinto no lixo, desfrutam de restaurantes, hotéis e viagens caros, pagos pelo contribuinte.

Um ótimo exemplo é o clã Bolsonaro. Perfeitos representantes do neofeudalismo brasileiro não são só os três filhos mais velhos – que estão sendo investigados por corrupção, e dos quais ninguém até hoje sabe o que é mesmo que fazem na vida, além de suas carreiras políticas – mas também o caçula, Jair Renan Bolsonaro.

As escapadas dele mostram de forma exemplar como o poder deforma certos indivíduos. “Há uma fera em cada ser humano, quando se coloca uma espada na mão dele” – é como dizem na série Game of Thrones.

No Twitter, Jair Renan descreveu o que considera um dia perfeito. “Bom dia rapaziada. Então, com vocês aí, melhor jeito de acordar: tomando um suquinho, comendo um pão de queijo, visitando a loja de um grande amigo meu aqui: Júnior. Sabe o que o cara vende? Arma, brinquedo.” O rapaz, ao que tudo indica, não estuda, não trabalha, apenas aproveita a vida com o dinheiro e os contatos proporcionados pelo pai e os irmãos mais velhos. Assim se criam monstros.

Decadência moral generalizada

Tenho certeza de que no próximo pleito os brasileiros vão reeleger Aécio Neves, Fernando Collor, Eliane Nogueira, o palhaço Tiririca e os cerca de 35% dos deputados e senadores que já elegeram em 2018, embora a Justiça os estejam processando por corrupção, lavagem de dinheiro, assédio sexual, fraude e numerosos outros delitos. Trata-se de 160 parlamentares e 38 senadores. Quem sabe também Michel Temer e Eduardo Cunha voltem a ocupar cargos na política.

E é o próprio governo Bolsonaro que contribuiu, através de seu próprio exemplo, para a banalização da corrupção e do nepotismo.

Um dos financiadores dos atos bolsonaristas do Sete de setembro, Antônio Galvan, presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil). já foi multado por desmatar 500 hectares de vegetação nativa e vender soja sem nota fiscal. Também responde na Justiça por plantio clandestino de grãos e por uma tentativa de invasão de terra numa fazenda vizinha à sua.

Essa é a gente de bem do bolsonarismo. Gente que representa a suposta elite política e econômica deste país. E os brasileiros a elegem. Repetidamente, a cada quatro anos. Já há décadas.

Por isso acho que muitos se identificam com eles. Também gostariam de enriquecer à custa da coletividade e de burlar a Justiça. Como nenhum outro, o atual governo contribuiu com seu nepotismo, suas mentiras e sua moral dupla para essa decadência moral generalizada.

Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha,Suíça e Áustria. Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.

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