Em meados dos anos 1970, visitando o lama tibetano Gonzar Tulku em Daramsala, na Índia, vi numa estante da sua sala, no meio de livros de dialética budista, alguns exemplares em inglês do “Pato Donald” e do “Mickey Mouse”. Surpreso, perguntei-lhe se gostava das histórias em quadrinhos da Disney. Ele respondeu: “Alguém me disse que os personagens de Disney descrevem perfeitamente os tipos humanos da sociedade ocidental. Estou aprendendo a conhecer vocês através deles”.

Achei que Gonzar estava troçando comigo, mas o tempo mostrou que ele tinha razão. Walter Elias Disney (1901-1966) deu uma das mais importantes contribuições para a elaboração do imaginário coletivo do século 20, feito de histórias e personagens que se tornaram marca registrada da cultura popular daquele período. Ele foi o maior de todos os criadores de desenhos animados para o cinema.

Nos anos seguintes à sua morte, a empresa que criou multiplicou suas produções, consolidando um império ainda sem rivais. Pela importância que ela assumiu nessas décadas, e por seu papel fundamental na formação cultural de diversas gerações, muitos estudiosos têm investigado os mecanismos e significados contidos nessa “mitologia disneyana” e no seu poder de sobreviver a modismos e permanecer em processo de evolução.

Desde o início, atraiu a atenção do público a representação das figuras femininas, as “heroínas de Disney” que, por décadas, têm aparecido em seus filmes. Nesse sentido, merece destaque o filão das princesas, iniciado com “Branca de Neve e os Sete Anões” e que, em sua evolução, reflete bem as mudanças relativas à representação de gênero na sociedade ocidental.

Os críticos frisam três momentos fundamentais nessa jornada: uma fase relativa às três primeiras princesas históricas, Branca de Neve, Aurora (a Bela Adormecida) e Cinderela; uma segunda fase, que conta com Ariel (“A Pequena Sereia”), Bela (“A Bela e a Fera”), Jasmine (“Aladim”), Pocahontas, Mulan (dos filmes homônimos) e Jane (de “Tarzan”); e uma terceira, simbolizada por Tiana (A Princesa e o Sapo”), Rapunzel (“Enrolados”), Mérida (“Valente”), Elsa e Ana (de “Frozen”, ainda não consideradas oficialmente princesas pela Disney).

Anos difíceis

As princesas da primeira fase vieram à luz entre 1937 e 1959, quando Disney ainda vivia. Para as mulheres, nesses anos era difícil não apenas fazer ouvir a própria voz, mas também ganhar a dignidade de uma vida que ultrapassasse o perímetro doméstico e familiar. Essas personagens, portanto, representam como a sociedade falocêntrica via as mulheres: submissas, doces, boas, generosas e extremamente passivas.

A realização pessoal delas depende sempre de uma figura masculina; não apenas filhas da sociedade na qual nasceram e foram educadas, essas mulheres são impregnadas de estereótipos, como o de que encontrar o amor da vida é o único objetivo da existência feminina, e a beleza, o único meio para conquistá-lo. Por essa ótica, a dimensão da mulher se limita aos afazeres domésticos e/ou às profissões que projetam esses trabalhos no mundo circundante (enfermeiras, parteiras, costureiras, cozinheiras, etc.).

Entre 1989 (40 anos depois!) e 1999, outras personagens, a começar pela sereia Ariel, transformaram esse quadro. No seio de uma sociedade em forte mutação, elas precisavam representar essa mudança. Apesar disso, as mulheres dessa fase ainda não são donas do seu próprio destino (Jasmine não pode sequer escolher o marido, e já estamos em 1992!). Como denominador comum a todas essas histórias, porém, há sempre uma tentativa de se libertar dos grilhões impostos pela sociedade e pela cultura vigentes. As mulheres agora surgem como criaturas vivazes, inteligentes, aventureiras e espertas, elementos que pouco a pouco vão se reforçando até a chegada de Pocahontas e Mulan.

A primeira, princesa atípica e quase totalmente emancipada, é “vítima” do único final não feliz das histórias da Disney; a segunda se veste de homem para ir à guerra no lugar do pai e, assim, livrá-lo da morte. É uma revolução: Mulan, uma mulher, salva o homem e obtém uma legitimação. Enfim um personagem feminino acerta as contas com a história, e a partir daí a mulher poderá fazer tudo o que os homens fazem, inclusive explorar perigosas florestas como Jane, em “Tarzan”.

Heroínas de verdade

Já as figuras femininas mais recentes podem ser definidas como heroínas de verdade. A mulher assume o próprio destino e decide os caminhos da sua existência: Tiana é a primeira princesa negra, enquanto a escocesa Mérida é a antiprincesa por excelência, com postura e gesticulação espalhafatosa e mais masculina.

Essas mudanças não pouparam a Disney de, mais recentemente, ser acusada de machismo. Segundo os acusadores, apesar de Ariel ser considerada um personagem de ruptura, “A Pequena Sereia” é o primeiro filme de princesa no qual o número de homens e de falas masculinas é bem maior…


Modelos disfuncionais

Outro ângulo curioso de análise detecta em heroínas de Disney alguns padrões típicos de transtornos estudados pela moderna psicologia. Confira a seguir:

Cinderela: transtorno de personalidade dependente
Serva em sua própria casa, Cinderela é forçada a fazer todas as tarefas domésticas. Sua única chance de sobrevivência digna é pedir um par de sapatos de salto alto e um belo vestido à sua fada madrinha para ir ao baile e encontrar um sujeito rico que a resgate de sua vida miserável. No fim, tudo está resolvido: não há nada como casar com um cara rico que você mal conheceu (embora ele nem se lembre de seu rosto). Cinderela denota uma intensa dependência emocional dos outros e faz tudo que pode para agradar.

Aurora: síndrome de Kleine-Levin
O paciente desse transtorno sofre de súbitas mudanças de comportamento e de humor e por vezes dorme muito além do normal. Aurora fala pouco e mal (é uma das princesas da Disney com menos diálogos e dorme 75% do filme) e manifesta-se destituída de autonomia.

Branca de Neve: estresse pós-traumático
A madrasta dessa princesa assassinou seu pai e contratou um bandido para encontrá-la e matá-la, por inveja da extraordinária beleza da enteada… Estressada, Branca de Neve se esconde na casa dos sete anões. O que faz ao entrar em uma casa que pertence a sete homens? Começa uma faxina.

Bela: síndrome de Estocolmo
Esse transtorno acontece quando uma pessoa sequestrada se apaixona por seu captor. No caso de Bela, seu sequestrador é meio homem, meio bicho, peludo feito um urso – mas é tão sensível e bonzinho…

Ariel: disposofobia (acumulação compulsiva de objetos)
A caverna da cativante sereiazinha está repleta de objetos, muitos dos quais inúteis, que ela não tem coragem de jogar fora.

Rapunzel: síndrome da personalidade borderline
Rapunzel foi confinada em uma torre por sua suposta mãe. Enquanto joga xadrez, estuda astronomia e aprende a lidar com sua vasta cabeleira, espera a chegada do príncipe que virá salvá-la.

Jasmine: ansiedade social e claustrofobia
Como Rapunzel, Jasmine vive trancada. No palácio onde mora, seu melhor amigo é um tigre… Além disso, ela enfrenta um problema clássico de princesas da Disney: um casamento arranjado. Mas ela reage e diz: “Não sou um prêmio a ser ganho”. Bom sinal…

Tiana: estresse agudo
Típica mulher independente, Tiana sabe o que quer e trabalha duro para atingir seus objetivos. Ganha dinheiro e é dona do seu nariz até… apaixonar-se por um sapo. E não há beijo que o transforme em príncipe…

Mérida: sociopatia
Mérida evita os homens, e para alguns analistas isso nada tem a ver com sua feminilidade – é, na verdade, indício de uma personalidade antissocial. Ela não se conforma às regras sociais, não se importa com os direitos dos outros, tende a torcer todas as regras e a mentir. Oferecida em um casamento arranjado, ela se recusa a ser tratada como mero troféu e compete vitoriosamente em um torneio.

Pocahontas: personalidade histriônica
Na versão disneyana, Pocahontas fica desconfortável quando passa despercebida e precisa sempre atrair as atenções sobre si. Para isso, tenta ser provocante e até mesmo sexualmente sedutora. Maior representante do ecofeminismo da Disney, é também uma das poucas princesas que escolhem seu próprio destino e negam seu príncipe. Livre, autoconfiante e corajosa, ela ensina lições que têm a ver com amor, respeito e igualdade.

Ana: transtorno de déficit de atenção e hiperatividade
Embora adorável, Ana parece ter dificuldade para permanecer focada em algo durante muito tempo. É impulsiva, impaciente, fala sem parar e costuma sonhar acordada.