A menos de um mês do anúncio do prêmio Nobel, o mundo da ciência começa a entrar no clima com sua versão satírica, o Ig Nobel, em sua 32ª edição. A divertida cerimônia, que desde 2020 migrou para formato remoto em consequência da pandemia de covid-19, aconteceu na noite de quinta-feira (15/9) e incluiu entre os premiados, na categoria Biologia, a colombiana Solimary García Hernández e o brasileiro Glauco Machado, que foi seu orientador na Universidade de São Paulo (USP) durante o doutorado que investigou as consequências da capacidade de escorpiões do gênero Ananteris perderem a ponta da cauda quando capturados. Em tom de muita brincadeira, a premiação se propõe a destacar pesquisa científica que faça rir, e depois pensar.

No caso do trabalho da dupla da USP, o que chama a atenção não é tanto a capacidade de perder uma parte da cauda – afinal, lagartixas fazem o mesmo. O que rendeu a seleção, e que Machado classifica como “bizarro, extraordinário e radical”, é que nesse processo os escorpiões perdem parte dos órgãos e do sistema digestivo, inclusive o ânus, e passam o resto da vida sem poder defecar – o que gera um acúmulo de dejetos na cavidade abdominal. Essa constipação poderia afetar vários aspectos da vida, como a reprodução e a locomoção.

Por meio de três artigos científicos e até de uma história em quadrinhos, ao longo dos anos a dupla de pesquisadores usou esses aspectos inusitados e escatológicos para chamar a atenção de colegas, e concluiu que a estratégia vale a pena e, por isso, é favorecida pela seleção natural. Essa é a grande questão: como esse comportamento inusitado subsiste à prova da evolução. No caso, permite que o escorpião sobreviva, em vez de virar refeição, e consiga se reproduzir depois, superando alguns percalços: machos precisam se esforçar mais para atrair a atenção das fêmeas, o que fazem com movimentos da cauda, e elas produzem menos filhotes, já que têm menos espaço para a gestação. Também têm dificuldade de caçar presas grandes, pela falta do ferrão que injeta veneno, mas ainda conseguem se locomover bem e não se saem mal em corridas experimentais.

Em cenário preparado na USP, dupla recebe o prêmio e demonstra estudo com escorpião de pelúcia. Crédito: Reprodução

Escorpião de pelúcia

Os biólogos receberam a notícia há alguns meses, por intermédio da bioantropóloga Mercedes Okumura, também da USP, integrante da comissão que seleciona os trabalhos. E usaram bem o tempo de que dispuseram para a preparação, em completo sigilo. García fez um escorpião de pelúcia com uma aparência biologicamente correta: garras finas, ferrão cilíndrico, cor clara e ânus bem marcado, capaz de destacar a cauda (ou autotomizar) por meio de uma junção com velcro. “Precisava ter as características de Ananteris”, conta ela, que teve a ajuda remota da mãe, que está na Colômbia, e de uma máquina de costura em miniatura que comprou para seu projeto atual, ainda em parceria com Machado. Seu marido, o artista John Uribe, ajudou a transformar a sala de Machado em cenário para o recebimento do prêmio. A bióloga também editou o vídeo com 1 minuto de duração destinado a contar a pesquisa ao público não especializado, uma exigência da organização.

Entre janelas de teleconferência por zoom, eles receberam o prêmio do físico Jerome Friedman, ganhador do prêmio Nobel em 1990 por descobertas fundamentais ao entendimento dos quarks, e do matemático Marc Abrahams, editor da revista Annals of Improbable Research [Anais da Pesquisa Improvável] e mestre de cerimônias do evento. O prêmio é um cilindro com temas do prêmio impressos, supostamente para que cada pesquisador guarde dentro todo o seu conhecimento, e uma nota de 10 trilhões de dólares do Zimbábue. Machado conta que, na interação com Friedman, eles brincaram sugerindo uma conexão entre os escorpiões e os quarks, que poderia gerar uma futura colaboração. Mas a transmissão da cerimônia, rigorosa no tempo, não chegou a exibir a proposta.

Entre brincadeiras tradicionais como os lançamentos de aviões de papel, palestras miniaturizadas nas quais pesquisadores explicam seu tema de estudo em 24 segundos e depois em sete palavras, e uma divertida opereta – neste ano sobre um “Clube dos sabichões”–, Abrahams anuncia os premiados, sempre a partir de um artigo científico.

Marc Abrahams conduziu a cerimônia remota com algumas referências ao histórico de encontros presenciais. Crédito: Reprodução

Textos jurídicos impenetráveis

Na categoria Cardiologia Aplicada, um grupo internacional revelou a sincronização do ritmo cardíaco entre pessoas que, ao se conhecerem, se sentem atraídas umas pelas outras. Essa sincronização é mais reveladora do potencial romântico do que outros parâmetros, como a taxa de batimentos cardíacos e o encontro de olhares.

O prêmio de Literatura tratou do caráter impenetrável de documentos jurídicos, em comparação com leituras cotidianas, como livros infantis e gibis, e com o discurso comum. Os autores, do Canadá, Reino Unido, Estados Unidos e Austrália, defenderam que textos compreensíveis podem trazer mudanças benéficas à sociedade.

Um grupo polonês levou o prêmio de Medicina por mostrar que tomar sorvete pode minimizar o desenvolvimento de mucosite como efeito colateral de quimioterapia. O autor explicou que chupar gelo também funciona, mas o tratamento auxiliar com sorvete tem maior adesão, e que se trata de medicina baseada em evidências.

Opereta satírica falou sobre um “Clube de sabichões”. Crédito: Reprodução

Uso de enemas entre os maias

Um designer japonês foi selecionado em Engenharia por calcular quantos dedos as pessoas usam para girar botões de tamanhos distintos, algo útil para o projeto de uma diversidade de aparelhos.

O prêmio de História da Arte foi para uma pesquisa multidisciplinar que reuniu pesquisadores da Holanda, Guatemala, Áustria e Estados Unidos, sobre o uso farmacológico e ritual de enemas – a aplicação de substâncias por via anal. A prática está registrada em cerâmicas maias, mostrando detalhes do procedimento.

Em Física, o prêmio foi para dois grupos: um artigo publicado em 2021 por pesquisadores do Reino Unido, da China e da Turquia, e outro de 1994, por um norte-americano. Embora não concordem completamente entre si nos detalhes físicos, os estudos mostraram o benefício de filhotes de patos nadarem em fila atrás da mãe. Os autores do trabalho mais recente defenderam que o conhecimento pode ser útil para o desenho de embarcações e estratégias de navegação de frotas.

Marc Abrahams e a economista francesa Esther Duflo, ganhadora do Nobel em 2019, entregaram o prêmio à pesquisa sobre enemas na cultura maia. Crédito: Reprodução

Evitando colisões de carros com alces

O prêmio da Paz foi para um grupo internacional que desenvolveu um algoritmo que ajuda fofoqueiros a decidirem quando falar a verdade e quando mentir, com base no que se prevê que os interlocutores estão fazendo.

Em Economia, italianos mostraram que a sorte é mais importante que o talento para o sucesso, e um sueco foi selecionado na categoria Engenharia de Segurança por desenvolver um modelo para entender como carros podem evitar colisões com alces.

Ao longo dos próximos meses serão divulgadas palestras de 10 minutos, gravadas pelos vencedores, com explicações mais detalhadas. Um pouco preocupados, inicialmente, com a possibilidade de serem ridicularizados pela premiação, García e Machado ressaltam o interesse dos estudos escolhidos e o potencial de difusão a partir do tratamento bem-humorado. “É isso que eu imaginava desde criança, fazer ciência pela curiosidade”, diz ela.

* Este artigo foi republicado do site Revista Pesquisa Fapesp sob uma licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o artigo original aqui.