Ensinar compaixão, amor e equanimidade nas escolas e mudar o mundo a partir da transformação interna. Esse é o caminho–nada fácil–apontado por um lama brasileiro para enfrentar os dilemas do século XX

Padma Samten nasceu no Rio Grande do Sul, com o nome de Alfredo Aveline, e durante boa parte de sua vida foi um homem da ciência estudando física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde foi professor, de 1969 a 1994, especializando-se em física quântica. Foi essa misteriosa ciência, na qual nada é o que parece ser e os fenômenos são alterados pelo simples olhar do pesquisador, que o levou a se interessar por um campo também inexato e sutil: o budismo.

Nos anos 80 Aveline aprofundou seus estudos de budismo e em 1986 fundou o Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB), hoje presente em 14 Estados brasileiros. Em 1993 foi aceito como discípulo por Chagdud Tulku Rinpoche, o lama tibetano que viveu em Três Coroas (MG), de 1995 a 2002. Três anos depois foi ordenado “lama”, título conferido a um professor de darma (o “caminho da justiça”), mas traduzível por líder ou sacerdote. Em termos religiosos, lama é o monge ou praticante portador de excepcionais conhecimentos tântricos, palavra derivada da língua sânscrita formada pelos radicais tan (“expansão”) e tra (“libertação”), que identifica a filosofia budista tibetana.

Apesar do título notável, o gaúcho Padma Samten nunca deixou de ser um homem simples e interessado em ciência. Em suas palestras pelo Brasil, procura sempre aliar a filosofia budista à psicologia, à educação e até mesmo ao futebol. Num pequeno apartamento, em Belo Horizonte, o lama recebeu a reportagem de PLANETA e explicou como o budismo pode ajudar a construir um mundo mais equilibrado e harmônico, apesar da intolerância, do materialismo e da violência vigentes. 

O mundo nunca foi tão rico e tão tecnologicamente avançado. Mas milhões de pessoas sofrem com guerras, doenças e fome. Por quê? 

Há vários âmbitos de manifestação. Temos o que chamamos de aspecto grosseiro, que são as coisas materiais, e o aspecto sutil, que é o que trazemos dentro da mente, os sentimentos e os valores. O mundo conseguiu muitos resultados no que diz respeito ao aspecto grosseiro dos bens materiais. Se compararmos com o que éramos há 100 anos, avançamos muito, mas não no aspecto sutil. Hoje, podemos treinar as crianças em processos  de educação para que elas desenvolvam habilidades e saibam fazer determinadas coisas. Mas talvez não estejamos desenvolvendo um processo interno de transformação no sentido de uma verdadeira educação de valores.

Uma educação para a espiritualidade?

Eu diria uma educação voltada para a lucidez e para o bom senso. Não é necessário introduzir o sentido de espiritualidade ou de religiosidade, porque essa visão parece induzir à filiação a correntes específicas. O ponto central é desenvolver lucidez. A gente não precisa se filiar a uma estrutura prévia, que tenha sido revelada ou que tenha sido trazida, de algum modo. Precisamos de lucidez para saber usar a observação. É algo que talvez se aproxime mais da ciência do que da religião. Em geral, as religiões têm uma receita pronta. A ciência não, ela vai buscar, tentando entender o funcionamento e o uso das coisas. Quero enfatizar esse ponto, para não ficarmos presos ao aspecto religioso. 

Como esses temas poderiam ser trabalhados nas escolas?

No budismo existe o que chamamos de “quatro qualidades incomensuráveis”: a compaixão, o amor, a alegria e a equanimidade, a serenidade de espírito. Eis um tema transversal para o ensino. Na verdade, um tema transversal para as nossas vidas. Se a gente trabalha, em qualquer lugar, seja o que for que façamos, na proximidade das outras pessoas, podemos praticar essas quatro qualidades incomensuráveis. Um professor, em sala de aula, vendo a dificuldade do aluno, poderia se incomodar  com fato de ele não estar aprendendo, e se comportar mal. Mas se tentar entender o aluno no mundo dele, pode entender que se a criança seguir se manifestando desse jeito, a vida dela será horrível. Então, olha e diz: “Agora tenho uma oportunidade de interagir com ele. Talvez eu tenha alguma coisa boa para levar para ele”. É daí que brota a compaixão. O outro está aprontando, mas o professor tem compaixão. 

Isso poderia ser aplicado a governos?

Com certeza. O governo tem que ter esse centro. Um governo que praticasse as quatro qualidades incomensuráveis seria perfeito. Se olharmos desse modo, as próprias leis se modificam. O próprio sistema penal se modifica. 

No entanto, a opinião pública quer endurecer o sistema criminal, aumentar as penas e às vezes punir criminosos com as próprias mãos.

Eu tenho visto isso. São fenômenos que acontecem no Brasil e no Exterior também. As pessoas partem para linchar os outros. Isso significa que o sistema penal não está funcionando. Não há mais nenhuma esperança de que a polícia ou a Justiça possa resolver as coisas. Então começam a partir para a própria ação. Surgem violências, aberrações, manifestações muito infelizes. Isso vem desse descompasso. 

Em ano de eleição, as disputas se acirram. Como é possível para governantes e candidatos, que também são atacados por todos os lados, mudar esse compasso?

O melhor é manter a visão elevada. Uma sugestão para os políticos seria justamente cultivar a compaixão, o amor, a alegria e a equanimidade. Esses quatro aspectos geram outros, como a generosidade. O professor deveria ser generoso. A função do professor é juntar o que ele sabe e oferecer para os alunos. Os políticos deveriam ser generosos. Como exercem a administração, eles têm uma função dentro da máquina do governo. Eles representam o cidadão e deveriam procurar as melhores situações para o cidadão e oferecê-las. Naturalmente o oposto seria um grande problema: tirar vantagens pessoais da posição ocupada. Isso seria o oposto da generosidade. O que acontece com as pessoas que não praticam compaixão, amor, alegria, generosidade e equanimidade é que elas entristecem.

Podemos dizer que a falta de atenção aos aspectos sutis acaba gerando depressão?

É muito curioso. Temos uma verdadeira epidemia de manifestações psiquiátricas. Mas tratamos isso individualmente, não socialmente. Não conseguimos fazer um diagnóstico social, só fazemos o diagnóstico individual. Cada qual é tratado individualmente, como se fosse um problema pessoal. A gente hoje vê que valores como a compaixão e a generosidade estão se reduzindo. Estamos focados no processo antigo de acumulação individual. Esse é o grande eixo norteador das nossas ações. 

O sr. veio da ciência. A ciência ganhou mais crédito do que a religião. Que impacto isso tem na vida?

Eu diria que o aspecto grosseiro da realidade é onde a ciência opera, o aspecto causal. A ciência refl ete sobre a aparência das coisas. Ela vai experimentando a partir da observação e sistematizando as visões a partir da observação. Mas é inevitável que dependa do aspecto sutil. Ela nunca conseguirá se libertar do aspecto sutil. A gente percebe que as teorias científicas mudam. Mesmo nas mais inteligentes, passada uma geração ou duas, as visões celebradas são substituídas por outras. Houve uma época em que os cientistas não conheciam as bactérias e os vírus. Eles não conheciam a necessidade de manter a assepsia, mas faziam cirurgias. Então você tinha cirurgiões, vestidos de terno e gravata, fumando e cortando a pessoa ainda viva. A chance de o paciente viver era pequena, porque ele se contaminava, não havia antibióticos e eles não entendiam nada daquilo, não consideravam importante. 

A ciência também tem limitações. 

A ciência desenvolveu uma progressiva capacidade de entender o mundo relativo, o mundo grosseiro e, assim, ganhou proeminência. Mas um tempo não vê o que o tempo seguinte vê. Antes usávamos mercúrio para curar ferimentos, mas descobrimos que o mercúrio é um metal pesado e neurotóxico. Os cientistas não sabem de antemão, eles descobrem. E por que eles  não veem? Por causa da conexão com o mundo sutil, porque internamente não têm conexão, e portanto não conseguem ver de fora. 

A física quântica pode ser uma ligação entre ciência e religião?

Pode, porque percebe esse aspecto sutil. A física quântica opera com essa noção. A própria “matematização” da ciência é feita quando escolhemos o olhar para o que vamos investigar. Essa noção de escolher o olhar é hábil e extraordinária. A própria ciência começa a incorporar isso em várias disciplinas.

Depois da revelação de que o aquecimento global está em curso, há cientistas que afirmam que já é tarde demais. O sr. acha que tendemos a minar a sustentação da nossa sobrevivência? 

Se as condições de vida do planeta são afetadas, podemos ver como a perda da paz e do equilíbrio afetam a possibilidade da vida humana. As pessoas vão perder saúde, perder o suporte da vida e, ao mesmo tempo, todos os instantes que brotaram do Buda e dos grandes mestres. Tudo pode desaparecer. É como se houvesse uma grande involução. Todos os budistas se dedicam à transformação do nosso mundo interno para conseguirmos construir coisas elevadas e favoráveis, que resultem em equilíbrio e harmonia para a biosfera. No aspecto sutil, os ensinamentos do Buda vão dizer que inevitavelmente a impermanência atingirá o planeta Terra, como atinge tudo. Os cientistas sabem que o planeta está próximo ao Sol, de tal modo que, quando o Sol se tornar uma estrela vermelha, absorverá a Terra, daqui a bilhões de anos. Um dia a Terra vai se tornar inabitável, como já foi inabitável antes, é algo natural. Por isso mesmo temos que aproveitar. Estamos em uma janela do tempo. Temos a vida humana preciosa. Temos a humanidade operando dentro de nós e todos os ensinamentos milagrosos dos mestres para fazer coisas boas.