Acompanhar o consumo de leite no passado não é simples. Durante décadas, os arqueólogos tentaram reconstruir a prática por vários métodos indiretos. Eles examinaram a arte rupestre antiga para identificar cenas de animais sendo ordenhados e ossos de animais para reconstruir padrões que poderiam refletir o uso de animais para leite. Mais recentemente, eles até usaram métodos científicos para detectar vestígios de gorduras lácteas em potes antigos. Mas nenhum desses métodos pode dizer se um indivíduo específico consumiu leite.

Agora, os cientistas estão usando cada vez mais a proteômica para estudar os laticínios antigos. Ao extraírem minúsculos pedaços de proteínas preservadas de materiais antigos, os pesquisadores podem detectar proteínas específicas do leite e até mesmo específicas do leite de determinadas espécies.

Onde essas proteínas são preservadas? Um reservatório crítico é o cálculo dental, ou tártaro – placa dental que se mineralizou e endureceu com o tempo. Sem as escovas de dente, muitos idosos não conseguiam remover a placa bacteriana dos dentes e, portanto, desenvolviam muito cálculo. Isso pode ter levado nossos ancestrais à cárie dentária e à dor, por um lado. Mas também produziu uma mina de ouro de informações sobre dietas antigas, com placas frequentemente prendendo as proteínas dos alimentos e preservando-as por milhares de anos.

Longa história

Agora, uma equipe internacional liderada por pesquisadores do Instituto Max Planck para a Ciência da História Humana em Jena (Alemanha) e os Museus Nacionais do Quênia (NMK) em Nairóbi analisaram alguns dos tártaros antigos mais desafiadores até hoje. Seu novo estudo, publicado na revista “Nature Communications”, examina tártaros de restos humanos na África, onde as altas temperaturas e a umidade interferem na preservação das proteínas.

A equipe analisou tártaros de 41 indivíduos adultos de 13 sítios pastoris antigos escavados no Sudão e no Quênia. Surpreendentemente, ela recuperou proteínas do leite de oito dos indivíduos.

Os resultados positivos foram recebidos com entusiasmo pela equipe. Como observa a autora principal, Madeleine Bleasdale, do Instituto Max Planck para a Ciência da História Humana, “algumas das proteínas estavam tão bem preservadas que foi possível determinar de qual espécie animal o leite tinha vindo. E algumas das proteínas lácteas tinham muitos milhares de anos, apontando para uma longa história de beber leite no continente”.

As primeiras proteínas do leite relatadas no estudo foram identificadas em Kadruka 21, um cemitério no Sudão que data de aproximadamente 6 mil anos atrás. No tártaro de outro indivíduo do cemitério adjacente de Kadruka 1, datado de cerca de 4 mil anos atrás, os pesquisadores conseguiram identificar proteínas específicas da espécie e descobriram que aquele leite vinha de cabra.

Gado pasta em Entesekara, no Quênia, perto da fronteira com a Tanzânia: tradição pastoril é longa na região. Crédito: A. Janzen
Sucesso e resiliência

“Essa é a evidência direta mais antiga até agora para o consumo de leite de cabra na África”, disse Bleasdale. “É provável que cabras e ovelhas tenham sido fontes importantes de leite para as primeiras comunidades pastoris em ambientes mais áridos.”

A equipe também descobriu proteínas do leite no tártaro de um indivíduo de Lukenya Hill, um antigo sítio de pastores no sul do Quênia datado de 3.600 a 3.200 anos atrás.

“Parece que o consumo de leite animal foi potencialmente uma parte fundamental do que permitiu o sucesso e a resiliência em longo prazo dos pastores africanos”, observa o coautor Steven Goldstein, também do Instituto Max Planck para a Ciência da História Humana.

À medida que as pesquisas sobre a antiga produção de leite se intensificam em todo o mundo, a África continua sendo um lugar estimulante para examinar as origens do consumo de leite. A evolução única da persistência da lactase na África, combinada com o fato de que o consumo de leite animal permanece crítico para muitas comunidades em todo o continente, torna-o vital para a compreensão de como os genes e a cultura podem evoluir juntos.

Mutações

Normalmente, a lactase – uma enzima crítica para permitir ao corpo digerir totalmente o leite – desaparece após a infância. Isso torna muito mais difícil para os adultos beberem leite sem desconforto. Mas, em algumas pessoas, a produção de lactase persiste até a idade adulta – em outras palavras, esses indivíduos têm “persistência de lactase”.

Nos europeus, há uma mutação principal ligada à persistência da lactase. Em diferentes populações da África, porém, existem até quatro. Como isso aconteceu? A questão fascina pesquisadores há décadas. Como as biologias leiteira e humana coevoluíram ainda é em grande parte um mistério, apesar de décadas de pesquisa.

Ao combinarem suas descobertas sobre quais indivíduos antigos bebiam leite com dados genéticos obtidos de alguns dos antigos indivíduos africanos, os pesquisadores também conseguiram determinar se os primeiros bebedores de leite no continente tinham persistência da lactase. A resposta foi não. As pessoas consumiam laticínios sem a adaptação genética que dá suporte ao consumo de leite na idade adulta.

Remodelação da biologia

Isso sugere que beber leite, na verdade, criou as condições que favoreceram o surgimento e a disseminação da persistência da lactase nas populações africanas. Como observa a autora sênior e diretora do Max Planck, Nicole Boivin, “este é um exemplo maravilhoso de como a cultura humana – ao longo de milhares de anos – remodelou a biologia humana”.

Mas como as pessoas na África bebiam leite sem a enzima necessária para digeri-lo? A resposta pode estar na fermentação. Produtos lácteos como o iogurte têm menor teor de lactose do que o leite fresco. Portanto, os primeiros pastores podem ter transformado o leite em produtos lácteos mais fáceis de digerir.

“É ótimo ter um vislumbre do lugar importante da África na história da indústria leiteira”, observa o coautor Emmanuel Ndiema, dos NMK. “E foi maravilhoso explorar o rico potencial do material arqueológico escavado décadas atrás, antes mesmo que esses novos métodos fossem inventados. Isso demonstra o valor contínuo e a importância das coleções de museus em todo o mundo, inclusive na África.”