No dia em que o Brasil superou a marca de 500 mil mortos por covid-19, uma pergunta é repetida na mente de muitos brasileiros: quantas dessas mortes eram evitáveis? Meu familiar teria sobrevivido se o governo tivesse adotado outra postura no começo da pandemia?

Estimar esse número é possível a partir de diferentes metodologias, e pesquisadores brasileiros desenvolveram modelos simples e complexos para chegar a esse dado. Quatro dessas projeções são explicadas abaixo.

396 mil mortes evitáveis até hoje

Uma abordagem simples, mas fundamentada, foi apresentada pelo epidemiologista Pedro Hallal, autor do primeiro estudo brasileiro a avaliar a magnitude da pandemia do coronavírus no país e ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

O cálculo dele leva em consideração que 2,7% da população mundial vive no Brasil, e projeta quantas mortes por covid-19 teriam ocorrido no país se ele tivesse tido um desempenho na média mundial. A diferença entre esse número e o número real de mortes ocorridas é atribuída por ele ao “mau desempenho” do Brasil no enfrentamento da pandemia.

O raciocínio foi exposto em uma carta publicada na revista científica The Lancet em 22 de janeiro e intitulada SOS Brasil: ciência sob ataque, e citado pela microbiologista Natalia Pasternak à CPI da Pandemia na última sexta-feira (11/06).

Usando a metodologia de Hallal, neste sábado (19/06), o mundo registrava 3,8 milhões de mortes pela covid-19 – 2,7% dessas mortes seriam 104 mil. A diferença entre esse número e o número real de mortes no Brasil até o momento é de 396 mil mortes, atribuíveis ao “mau desempenho” do país.

À DW Brasil, Hallal afirma que optou por esse critério pela sua simplicidade e fácil compreensão pela população. E diz que, se incluísse outras variáveis, o número de mortes evitáveis seria ainda maior.

“Se a gente for botar mais complexidade nesse cálculo, por exemplo ajustar para a estrutura etária da população, que é o principal indicador, a situação do Brasil piora mais ainda. Mas como todo pesquisador gosta de ser conservador, preferi apresentar dessa maneira”, diz.

Ele afirma que o mau desempenho do país no combate à pandemia é resultado de um conjunto de erros: “Negar ofertas de vacina, promover aglomerações, promover o não uso da máscara e promover tratamento deficiente e passar uma falsa sensação de segurança da população”.

Recusa de vacinas: mais 145 mil mortes em 2021

Eduardo Massad, professor emérito da faculdade de medicina da USP e professor de matemática aplicada da FGV, afirma que o cálculo de Hallal está “perfeitamente correto” e que, apesar da simplicidade, leva em conta “tudo o que o Brasil fez de errado” no combate à pandemia.

Ele reuniu um grupo de pesquisadores para coordenar uma pesquisa com uma pergunta mais focada: quantas mortes teriam sido poupadas apenas em 2021 se o Brasil tivesse iniciado uma campanha de vacinação em 21 de janeiro, aplicando 2 milhões de doses por dia – estimativa que Massad considera plausível se o governo tivesse aceitado as ofertas de doses da Pfizer e da Coronavac feitas ao longo de 2020.

A Pfizer ofereceu 70 milhões de doses, e o Instituto Butantã, 60 milhões, em agosto do ano passado – ambas as ofertas foram recusadas. Esses números serão incluídos no relatório da CPI da Pandemia. O governo fechou acordo com Butantã apenas em janeiro e, com a Pfizer, em março.

O modelo usa técnicas de cálculo mais complexas e considera 24 variáveis, como a taxa de infecção de pessoas expostas, a mortalidade natural dos brasileiros, a taxa de recuperação de quem pegou covid-19, a taxa de hospitalização e o ritmo de vacinação. A pesquisa identificou o comportamento dessas variáveis desde o início da pandemia até o final de 2020, e a partir dessa dinâmica projetou a evolução para 2021.

Segundo essa metodologia, o Brasil teria 145 mil mortes a menos ao longo deste ano se tivesse vacinado sua população a uma taxa de 2 milhões de doses por dia desde janeiro. Esse número ignora mortes que poderiam ter sido evitadas por outras políticas públicas, como maior incentivo ao uso de máscaras e ao distanciamento social. “Essas 145 mil mortes neste ano são atribuíveis apenas ao fato de o governo ter rejeitado as ofertas de vacina”, diz Massad.

O número de mortes por covid-19 projetado para este ano, de 395 mil óbitos, é 58% maior do que a estimativa se o país tivesse esse ritmo de vacinação mais robusto, de 251 mil mortes.

O estudo também projeta que, até o final de 2021, o Brasil chegará ao total de 590 mil mortos pela covid-19, mantido o atual ritmo de vacinação. A pesquisa será submetida a uma revista especializada, e foi obtida por exclusividade pela DW Brasil.

“O comportamento do governo frente à pandemia desde o começo tem sido um descalabro total em todos os aspectos. Estamos pagando o preço por termos um governo que não encarou a pandemia com a seriedade que deveria”, afirma Massad.

Vacinação ampla: 56 mil mortes a menos no trimestre

Outro grupo de pesquisadores, vinculados ao projeto SP Covid-19 Info Tracker, também calculou qual seria a diferença no número de mortos pela doença se o Brasil tivesse uma campanha de vacinação mais robusta.

O estudo inseriu as curvas de vacinação, novos óbitos, novos casos e recuperados dos meses de janeiro, fevereiro e março, além de outros dados, em um sistema para que o computador “aprendesse”, a partir do uso da inteligência artificial e de um modelo matemático, o comportamento dessas variáveis e projetasse a evolução para os três meses seguintes, explica Wallace Casaca, cientista de dados e matemático vinculado à Unesp e à USP e um dos autores da pesquisa, já submetida a uma revista científica e em fase de avaliação.

Segundo o modelo, o Brasil terá 192 mil mortes no segundo trimestre deste ano. Se o ritmo de vacinação, apenas nesse período, fosse de 2,2 milhões de doses por dia, 56 mil vidas teriam sido poupadas. O número de óbitos estimado nesse intervalo é 41% superior do que se a imunização estivesse mais acelerada – a diferença seria ainda maior se a projeção considerasse um programa de vacinação mais robusto desde o início do ano.

A pesquisa também projetou o que aconteceria no período de três meses de 13 de junho a 12 de setembro, usando as mesmas variáveis registradas de 1º de janeiro a 12 de junho. Nesse intervalo, o modelo estima que o país terá 108 mil mortes por covid-19, volume menor do que a da simulação anterior pelo fato de a vacinação já estar mais avançada.

Se o ritmo de vacinação fosse o dobro do atual, com 1,6 milhão de doses aplicadas por dia, 16 mil mortes seriam evitadas nesse período. À média de 2 milhões de doses por dia, 23 mil vidas seriam poupadas. No melhor cenário, com 2,5 milhões de doses diárias aplicadas, 29 mil mortes evitadas. “O modelo mostra o impacto da vacinação. Quanto mais pessoas vacinadas, menor o número de suscetíveis à doença”, afirma Casaca.

Alinhamento a Bolsonaro: 78% mais mortes no começo da pandemia

Além de vacinação, diversos epidemiologistas já apontaram que o discurso do presidente de um país durante a pandemia também conta bastante para a dinâmica da doença em seu território, pelo poder comunicacional vinculado ao cargo. Há evidências, por exemplo, de que os bolsonaristas violaram mais a quarentena no início da pandemia.

Em meados do ano passado, um grupo de pesquisadores vinculados a diferentes instituições calculou que o alinhamento de parte dos brasileiros ao discurso contrário ao isolamento social propagado por Bolsonaro provocou, desde o primeiro caso registrado no país, em 26 de fevereiro, até 29 de junho de 2020, 25,5 mil mortes adicionais, ou 78% a mais do que o esperado caso não houvesse resistência às recomendações científicas. Nesse período, foram registradas um total de 58,3 mil mortes por covid-19.

A pesquisa foi divulgada como pre-print, ainda sem revisão por pares, na última terça-feira (15/06). Para chegar ao dado, os pesquisadores isolaram a influência do alinhamento a Bolsonaro de outros fatores que também determinam a decisão de cada indivíduo sobre o isolamento social, como necessidade econômica.

Isso foi feito a partir das respostas a três pesquisas de opinião feitas pelo Instituto Datafolha, em 17 e 27 de abril e em 26 de maio do ano passado. Os levantamentos pediram às pessoas que indicassem o grau de isolamento que praticavam, em uma escala com quatro níveis, e como avaliavam o trabalho de Bolsonaro em relação à covid-19.

A adesão média ao isolamento dos que consideravam a performance de Bolsonaro sobre a pandemia boa ou ótima ficou 2 pontos percentuais abaixo da adesão média do conjunto da população. “Isso significa que o isolamento teria sido dois pontos percentuais superior se essas pessoas não estivessem presentes”, diz Patrícia Ferrini, ex-consultora da Organização Mundial de Saúde (OMS) e uma das autoras do estudo.

Em seguida, os pesquisadores usaram um modelo matemático que projeta o desenvolvimento de uma pandemia a partir de diversas variáveis para reproduzir a evolução do número de mortes pela doença no Brasil naquele período, que concluiu que o grau de isolamento médio no país nesse intervalo foi de 53% – sendo 100% o isolamento total.

Ao final, os pesquisadores rodaram o mesmo modelo, mas utilizando uma taxa de isolamento de 55% — percentual esperado se nenhum brasileiro considerasse a atuação do presidente na pandemia boa ou ótima, dois pontos percentuais maior do que a taxa real de 53%. No novo cenário, o número final de mortes seria 32,8 mil. Essas 25,5 mil mortes a menos do que o registrado na realidade seria o número de vítimas associado ao negacionismo de parte da população em relação à covid-19 nesse período.

“A taxa de isolamento social influencia a taxa de contato entre indivíduos suscetíveis e infectados e, como consequência, o número de novos casos por unidade de tempo. Variações bem pequenas no isolamento podem levar a diferenças importantes no número de mortes, devido ao crescimento exponencial da curva de contágio”, diz Ferrini.