Uma equipe de pesquisa liderada pela Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA) descobriu que panelas de cerâmica não vitrificada podem reter os resíduos não apenas da última ceia cozida, mas, potencialmente, de pratos anteriores cozinhados durante a vida de uma panela. A novidade abre uma nova janela para se desvendar o passado.

As descobertas, relatadas na revista “Scientific Reports”, sugerem que as práticas gastronômicas que remontam a milênios – digamos, cozinhar peru asteca, pozole de canjica ou o ensopado de feijão provavelmente servido na Última Ceia – podem ser reconstruídas analisando os compostos químicos que aderiram a e foram absorvidos pela cerâmica em que foram preparados.

“Nossos dados podem nos ajudar a reconstruir melhor as refeições e ingredientes específicos que as pessoas consumiam no passado. Isso, por sua vez, pode lançar luz sobre as relações sociais, políticas e ambientais em comunidades antigas”, disse a coautora do estudo Melanie Miller, pesquisadora no Centro de Pesquisa Arqueológica de Berkeley e aluna de pós-doutorado na Universidade de Otago (Nova Zelândia).

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Em um experimento culinário de um ano liderado por Miller e pela arqueóloga Christine Hastorf, de Berkeley, sete chefs prepararam, cada um, 50 refeições feitas de combinações de veado, milho e farinha de trigo em potes de cerâmica La Chamba recém-adquiridos. Essa robusta panela de barro preto polido remonta à América do Sul pré-colombiana, e as vasilhas artesanais continuam populares para preparar e servir comidas tradicionais hoje.

Repertório de receitas

O grupo teve a ideia no seminário de graduação em Arqueologia de Alimentos de Hastorf, em Berkeley. Ao analisarem os resíduos químicos das refeições preparadas em cada panela, os pesquisadores procuravam saber se os depósitos encontrados em antigas vasilhas refletiam os restos apenas do último prato cozido ou também de refeições anteriores.

A equipe recebeu alguns animais atropelados doados. Também comprou grandes quantidades de grãos inteiros e um moinho, que Hastorf montou em sua garagem, para moê-los. O grupo desenvolveu então um repertório de seis receitas com carne de veado e grãos inteiros e moídos.

Eles escolheram ingredientes básicos que podem ser encontrados em muitas partes do mundo. Por exemplo, duas receitas focaram na canjica, feita a partir da imersão do milho em uma solução alcalina. Duas outras usaram farinha de trigo.

“Escolhemos os alimentos com base na facilidade de distinguir os produtos químicos uns dos outros e em como os potes reagiriam aos valores isotópicos e químicos dos alimentos”, disse Hastorf, professora de antropologia de Berkeley que estuda a arqueologia dos alimentos, entre outras coisas.

Cada chef preparou uma refeição experimental semanalmente em uma panela La Chamba usando os ingredientes designados pelo grupo. “As refeições pastosas eram insossas e não as comemos”, observou Miller.

Nova ferramenta

Cada oitava refeição foi carbonizada. O objetivo era replicar os tipos de resíduos carbonizados que os arqueólogos costumam encontrar em potes antigos e imitar o que normalmente aconteceria durante a vida de um pote. Entre cada refeição, os potes eram limpos com água e um galho de macieira. Surpreendentemente, nenhum deles quebrou durante o estudo.

No Centro de Biogeoquímica de Isótopos Estáveis ​​de Berkeley, a equipe realizou uma análise dos restos carbonizados e das pátinas (compostos químicos) carbonizadas que se desenvolveram nos potes. Isótopos estáveis ​​são átomos cuja composição não se decompõe com o tempo, o que é útil para estudos arqueológicos. Uma análise dos lipídios gordurosos absorvidos nas panelas de barro foi realizada na Universidade de Bristol, na Inglaterra.

No geral, as análises químicas dos resíduos alimentares mostraram que diferentes escalas de tempo de refeição estavam representadas em diferentes resíduos. Por exemplo, os pedaços carbonizados no fundo de uma panela continham evidências da última refeição cozida. Já os restos de refeições anteriores podiam ser encontrados na pátina que se acumulou em outro lugar no interior da panela e no resíduo lipídico absorvido pela própria cerâmica.

Esses resultados proporcionam aos cientistas uma nova ferramenta para estudar dietas antigas. Além disso, fornecem pistas para a produção de alimentos, cadeias de abastecimento e distribuição de eras passadas.

“Abrimos a porta para que outros levem este experimento para o próximo nível e registrem prazos ainda mais longos em que os resíduos alimentares podem ser identificados”, disse Miller.