Uma pesquisa sobre o Índice do Bem-Estar em São Paulo reitera que a valorização das relações familiares é um traço cultural marcante do brasileiro. Mesmo na maior e mais moderna capital do país, as redes de família são recompostas para proporcionar ajuda mútua, driblar dificuldades e fornecer apoio afetivo.

Da cidadezinha de Tauá, no sertão cearense, a família Gonçalves se mudou para São Paulo. O primeiro a se instalar na capital paulista foi o filho mais velho, há mais de 30 anos. Depois, foi a vez do pai, acompanhado de quatro filhos, e, por último, da mãe com os dois filhos caçulas. Mesmo após formarem suas famílias, todos permaneceram morando perto, a um ou dois quarteirões de distância entre si, no bairro Jardim Carombé, zona norte da capital paulista.

Todos se ajudam. A avó cuida dos netos pequenos quando os pais e mães saem para trabalhar. No domingo, os sete fi lhos que se mudaram para São Paulo (somente uma filha permaneceu no Ceará) e os nove netos vão tomar café da manhã na casa da mãe (o pai faleceu há alguns anos), mas acabam ficando para o almoço. A conversa costuma se estender até o jantar. A cada aniversário, ou quando dá vontade, um dos irmãos chama todo mundo para uma festinha em casa. “Cada um traz uma coisa de comer ou beber e ficamos conversando e rindo”, diz Heliane Alves Gonçalves da Silva, doméstica, 36 anos. 

Por um ano Heliane se afastou desse convívio. Ao se casar, se instalou com o marido na zona sul, em frente à sogra. Com a perda do bebê que esperava, decidiu sair da casa onde morava e voltou para perto da sua família. Alugou uma casa em Carombé. “Foi difícil passar esse tempo longe. Meus pais e irmãos nunca podiam ir lá me visitar. Não tínhamos ajuda. Eu e meu marido só podíamos vir nos fi ns de semana”, lembra. “Minha mãe é tudo pra mim. E ela fica com meu filho, de 6 anos, quando ele volta da escola”, diz Heliane.

Os Gonçalves são apenas um exemplo da força e do valor que os laços familiares ainda têm no Brasil. Uma pesquisa feita pela Fundação Getulio Vargas (FGV), pela rede social privada MyFunCity e pela ONG Movimento Mais Feliz revelou que, mesmo na cidade mais cosmopolita, moderna e nervosa do país, o principal indicador de bem-estar para os moradores é a família. “No caso dos solteiros, que representaram 43% dos entrevistados, a relação com os irmãos e com os pais é sustentáculo para as pessoas”, diz Mauro Motoryn, criador e presidente da MyFunCity e do Momento Mais Feliz.

Foram ouvidas 786 pessoas, em novembro de 2013, levando em conta a distribuição socioeconômica, etária e sexual da cidade, para retratar uma amostra da população. São Paulo foi a primeira de nove capitais brasileiras que serão estudadas para formatar o Índice de Bem-Estar Brasil (WBB, da sigla em inglês Well-Being Brazil), baseado em dez indicadores: saúde, educação, segurança, poder público, meio ambiente, transporte e mobilidade, família, vida profi ssional e fi nanceira, consumo e redes de relacionamento.

DNA nacional
O apego à família está presente em qualquer cultura, etnia ou nacionalidade. Historicamente, por influência da colonização ibérica, os brasileiros valorizam muito a rede familiar. “O que é peculiar do brasileiro é a extrema valorização da ordem privada em detrimento da ordem pública. A família, entretanto, é só um desdobramento dessa esfera privada. O jeitinho brasileiro e a vontade de tirar vantagem também são”, aponta o sociólogo Paulo Silvino Ribeiro, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). 

Como contraste a esse traço cultural dos brasileiros, Ribeiro lembra dos individuaingleses, que têm uma noção maior de coletividade, vida em sociedade e responsabilidade pública, mas são taxados de “frios”. “Apesar de o Estado moderno já estabelecer parâmetros legais sobre as relações familiares, ela ainda é o grupo em que as relações não são contratuais, onde nos relacionamos por sentimento de pertencimento, e onde a regra somos nós”, complementa.

Mas as regras vão mudando ao longo das décadas. A família brasileira está menor, forma-se mais tardiamente, pode ser chefi ada pelas mulheres, muitas não são legalmente formais e apresentam as constituições mais distintas possíveis – como uniões homossexuais e com fi lhos de casamentos anteriores, por exemplo.

“O conceito de família é mais explicado pelo sentimento de oferecer o conforto e o auxílio de um grupo do que pelos papéis exercidos por quem faz parte dela. Trata-se de uma rede de proteção financeira e psicológica”, define Ribeiro. Nesse sentido, as mudanças contemporâneas não são negativas. É positivo que se tenha mais liberdade, que se valorize a  individualidade e o espaço de cada um. “A mudança da família só pode ser negativa quando ela fragiliza os laços de pertencimento. Um maior individualismo alarga os laços, mas não enfraquece a ponto de se perder o vínculo.” Motoryn faz questão de destacar que a família tratada pela pesquisa WBB não se limita aos padrões tradicionais, do ponto de vista conservador.

“Trata-se da família como tranquilizante espiritual para seguir a vida adiante”, poetiza. A única coisa de que as pessoas consultadas pela pesquisa reclamaram a respeito da família é do pouco tempo que têm para passar com ela. “Isso vem do problema da mobilidade urbana, o segundo indicador de maior insatisfação para o paulistano, depois do poder público”, comenta.

Longe e perto
Para driblar questões como trânsito, enormes distâncias, excesso de trabalho e desencontro de agendas – tão comuns em grandes cidades –, a família Requena apostou em uma solução que ninguém acreditava que fosse dar certo. Mas deu. Construiu uma mansão para abrigar suas quatro gerações. A convivência familiar não costuma ser mesmo fácil, mas o projeto dos Requena é um caso de sucesso. A iniciativa surgiu de Rosângela Requena, pouco depois da morte de um dos seus irmãos, que deixou esposa e três fi lhas – uma delas recém-separada, com três filhos pequenos.

“Um dia eu, meus irmãos e sobrinhos fomos visitar minha mãe na cidade de Alumínio [SP]. Todo mundo voltou chorando, triste por estarmos cada um em um canto da Grande São Paulo, tão distantes no dia a dia. Então pensei em criar um lugar onde pudéssemos viver juntos”, conta. Quando apresentou a proposta aos parentes, muitos aderiram. Não foi fácil, mas encontraram um terreno em um condomínio em Cotia, com bom acesso a São Paulo, mas, ao mesmo tempo, em ambiente bucólico, para agradar a matriarca (o patriarca é falecido).

Venderam as casas e carros para levantar recursos para as obras e foram todos morar juntos,  por um ano, de forma improvisada, na antiga casa da família, em Barueri. Depois dessa prova de fogo, ganharam o paraíso: suites com closet de frente para a piscina. A cozinha, a lavanderia e o espaço gourmet são as áreas que todos compartilham, mas é a empregada Iara que os mantém em ordem – além de fazer faxina nos 12 quartos uma vez por semana. No mais, cada um cuida do seu espaço.

As contas são divididas proporcionalmente. “Cada um dá o que tem condições. Se alguém recebe R$ 1.000 não tem como comprometer todo seu salário na casa”, conta. Assim, a família consegue se ver frequentemente, mesmo mantendo horários e ritmos de vida diferentes. “Podemos manter a privacidade e a individua lidade”, resume Rosângela. Os irmãos que não moram ali costumam fazer visitas ou passar os fins de semana.

“A pouca frequência de contato com parentes que moram distante é outra das maiores reclamações sobre a família”, afirma Motoryn, baseado nos resultados da pesquisa. Na análise dele, muito da necessidade e da vontade de viajar do paulistano é influência de grandes migrações internas de 20 a 30 anos atrás.

Não por acaso, o destino preferido da família Gonçalves para as férias é a terra natal, Tauá. “Passei 16 anos sem ir, mas nos últimos anos vou sempre que posso. Nem penso em outro lugar. Lá temos onde fi car sem pagar hospedagem e revemos tios e primos.” Em 2013, vários dos irmãos foram na mesma época, embora em diferentes voos. Ficaram uma semana na casa da irmã, que mora em Fortaleza, e depois seguiram para a casa de parentes no interior do Estado. “O grande sonho de consumo do paulistano é viajar, sair de São Paulo. No fundo, trata-se de uma forma de se reencontrar consigo mesmo e com a família. Em Brasília tenho certeza de que esse resultado vai se repetir na pesquisa, porque é onde tivemos migrações de vários Estados em várias épocas. Brasília é um pouco o sincretismo do que é o Brasil”, amarra Motoryn.