Telhado dourado do Templo Xumi Fushou, cuja arquitetura é inspirada no mosteiro tibetano de Tashilhumpo

Fiz minha primeira visita à China em 1986, quando o país começava a descobrir a economia de mercado. A população chinesa ainda se vestia com roupas austeras, tinha um precário poder aquisitivo e desfrutava de pouca liberdade para viajar.

Vinte e um anos mais tarde, pude observar como o salto foi colossal. Bem maior que o nosso, no Brasil. Na verdade, muitos países da América Latina não mostraram mudanças marcantes nas últimas duas décadas e alguns até regrediram em certos setores.

Buda dos Inúmeros Braços, o maior Buda de madeira do mundo

Já na China, os exemplos dessa transformação pulsavam na minha frente: a população urbana trabalha, ganha seu salário, consome de tudo, raramente paga impostos e viaja cada vez mais. Tudo isso movimenta a economia de um país que hoje possui o segundo Produto Interno Bruto mundial (10,2 trilhões de dólares), logo abaixo do PIB dos Estados Unidos. Hoje, a China é o maior produtor mundial de bens de consumo, exportando de tudo para todos os continentes. É evidente que o sistema político autoritário está longe de ser adequado, mas o que importa para o cidadão é que sua qualidade de vida melhorou muito, em apenas uma geração.

Para melhor compreender o passado e o presente dessa cultura, decidi conhecer Chengde, a 250 km de Pequim. A cidade, com uma população de quase 4 milhões de habitantes, foi a antiga capital de verão da dinastia Qing. Esta, a última dinastia imperial chinesa, foi fundada pelos manchus, um povo do nordeste do país e originário das estepes mongóis.

EMBORA UTILIZASSEM a Cidade Proibida como capital, os imperadores se transladavam no verão a Chengde, para fugir do clima abafado de Pequim. Aqui, a partir de 1703, ergueram palácios e templos, projetaram um enorme jardim aos pés de uma montanha e desenharam lagos para refrescar olhos e mentes. O conjunto dessas “relíquias” (os chineses adoram usar essa palavra) é considerado Patrimônio da Humanidade pela Unesco.

Pintura sagrada erguida enquanto turistas rezam em Putuo Zong Cheng

Trezentos anos depois, seus descendentes – bem mais numerosos que os seletos membros da dinastia – desfrutam do bom gosto e do requinte imperial. Bishu Shanzhuang, o Jardim Imperial de Verão, não é lugar de passeio de fim-de-semana: ele está repleto todos os dias. Apesar da entrada custar o dobro do que se paga para subir a Grande Muralha, de três a seis mil pessoas de toda a China afluem diariamente ao local.

Passei um dia inteiro percorrendo o parque. Vi irmãzinhas vestidas de princesas, o menino pescando, a adolescente ao celular, o casal de namorados andando de pedalinho, mães brigando com filhos e avós sorrindo. Igualzinho a qualquer família brasileira ou latinoamericana.

Também acompanhei uma senhora que recebia aula de canto clássico, gente que fazia piqueniques, pais (que trabalhavam na mesma empresa) brincando com seus filhos de cabo-de-guerra e crianças dando de comer às renas que vivem no bosque. No ar, como em todo parque, muita alegria.

Visitante budista queima incenso em pira do Templo Puning

Se existe um povo que não se incomoda em ser retratado é o chinês. Quase toda família que viaja possui hoje uma câmera digital e eles não perdem nenhuma ocasião para estar na frente da lente; que a máquina seja a deles ou dos outros. O importante é sair bem na foto!

Não é apenas o imenso Jardim Imperial de 5,6 milhões de metros quadrados que torna Chengde um importante destino para o turismo doméstico. Os imperadores da Manchúria, com tempo e recursos de sobra, mandaram edificar 12 templos em volta dos jardins. Chamados de Templos Exteriores e construídos entre 1713 e 1780, oito deles chegaram até nossos dias.

Atualmente, o motivo da existência dos templos é muito mais mover a máquina do turismo interno do que preencher qualquer lacuna espiritual existente. Mesmo se alguns monges budistas ainda vivem no templo Puning, o ambiente místico foi, no mínimo, desfigurado pelos tours locais. Como fazer alguma oração – até mesmo pedir um melhor salário – quando a jovem guia continua a dar longas explicações por um alto-falante?

OS IMPERADORES QING tiveram uma razão política ao edificar os templos de Chengde. Os senhores manchus utilizaram a arquitetura para impressionar seus vizinhos da Mongólia (a noroeste) e do Tibete (a sudoeste) – ambas nações praticantes do budismo. Assim, o templo de Puning, réplica do monastério tibetano de Samye, foi levantado em 1755 para incentivar uma paz duradoura entre a dinastia Qing e o Tibete.

O número de ônibus fretados no estacionamento de Puning – mais de 20 – me preveniu que eu não estaria sozinho. Resolvi ir direto ao templo principal Mahayana, pois sabia que, dentro dele, encontraria algo valioso: uma estátua de madeira de 27 metros de altura. O Buda dos Inúmeros Braços possui, de fato, mais de 12 braços de cada lado e é simplesmente magnífico. É o maior Buda de madeira do mundo e pesa 110 toneladas.

…DisneyWorld chinesa

A partir da esquerda, em sentido horário: pavilhão do Monte Dourado, com o pagode Torre de Deus ao centro; turista com roupa tradicional em frente à réplica do Potala de Putuo Zong Cheng; menino alimenta rena no Jardim Imperial de Verão

Quando fotografava o Bodhisattva Avalokiteshvara (com o consentimento da funcionária, porque era inicialmente proibido), ouvi uma banda que tocava uma melodia de 30 segundos. Poucos minutos mais tarde, escutei a mesma música.

Caminhei até a frente do templo para compreender melhor o que acontecia. O ritual era sempre o mesmo: um visitante chinês mais abastado comprava um pacote de incenso, deixava-o queimando na pira e depois ia se ajoelhar em uma almofada dourada para fazer uma curta oração em frente ao Buda dos Inúmeros Braços. Enquanto ele fazia sua reverência, a banda de oito músicos entoava uma canção inspiradora. O preço do acompanhamento musical variava entre 300 e 1.000 yuans (de R$ 75 a R$ 250).

RI SOZINHO QUANDO entendi que tudo aquilo não passava de uma maneira inventiva de ganhar dinheiro! Mas a criatividade chinesa não parava por aí.

Caminhei os 500 metros que separavam os dois templos Puning e Putuo Zong Cheng por uma vereda bem rural. Uma senhora de bicicleta, com uma bolsa de milho cozido ainda quente, me ofereceu seu produto. Como estava na hora do almoço, aceitei. A espiga estava deliciosa e eu já estava me acostumando a comer milho verde na China. O país é hoje o segundo produtor e consumidor mundial de milho, embora o cereal seja originário das Américas.

No estacionamento de Putuo Zong Cheng, o número de ônibus de turistas chineses era bem maior. Olhei para cima e, de longe, notei que o prédio tinha uma figura conhecida. O templo era considerado uma réplica do palácio Potala, em Lhassa, capital do Tibete. O imperador Qianlong o concluiu em 1771 para celebrar o 80º aniversário de sua mãe e queria impressionar os nobres tibetanos na ocasião do festejo.

Subi as longas escadarias, evitando os insistentes vendedores e o movimento de pessoas.

Jovens chinesas atraentes chamavam os visitantes – vale a pena repetir: mais de 95% são turistas locais – para que os homens, vestidos como imperadores, e as mulheres, disfarçadas de princesas, pudessem ser fotografados. Os bilhetes de 20 ou 50 yuans continuavam circulando.

Ao chegar ao topo, vi que a cópia do templo não era tão fiel assim. Todas as janelas do “Pequeno Potala” de Chengde eram de mentira, existiam apenas na pintura; os detalhes decorativos também eram falsos. Até me fez pensar nos parques da Disney na Flórida.

Mas a máquina de extrair dinheiro de um chinês um pouco mais místico e supersticioso se havia aprimorado aqui. Em frente ao templo, os quatro mastros (elementos importantes em um templo budista) estavam decorados com bandeiras. O devoto comprava uma – ou um punhado delas por 200 yuans (R$ 50) – e as entregava a um monge. Este, compenetrado, recitava uma prece de olhos fechados e fazia as bandeirolas subir lentamente até o topo do mastro sagrado.

Entretanto, poucos minutos depois, quando o turista desaparecia no interior do prédio, o mesmo monge fazia descer as bandeiras abençoadas, para que estas pudessem ser vendidas a outro freguês.

O MELHOR AINDA estava por vir. Lá de baixo, eu havia notado que a parede central do “Potala de mentira” estava ornada com uma longa thangka (pintura sagrada tibetana) de uns 12 metros de altura. Mas quando cheguei ao templo principal, a pintura havia desaparecido. Esperei para ver como e quando a thangka surgiria novamente. Somente reapareceu quando uma senhora se ajoelhou na almofada dourada! Mediante a soma de 100 yuans (R$ 25), a enorme pintura foi levantada por um mecanismo de roldanas e permaneceu enfeitando o pseudo-Potala, enquanto os fiéis oravam fervorosamente.

Eu não podia acreditar na cena. A banda de música em Puning já havia beirado o burlesco. Mas essa thangka pay-per-view representava, para mim, o máximo do mercantilismo: qualquer idéia é válida, sempre que traga algum lucro econômico. Se, para alguns, esse atrativo turístico era um exemplo criativo do novo capitalismo chinês, para um budista desavisado esse mecanismo de “paga-vê-e-reza” poderia representar um insulto.

A verdade é que os templos de Chengde foram construídos com fins diplomáticos e não possuíram uma verdadeira alma. Sempre foram um enfeite para impressionar ilustres visitantes. Ao edificarem esses templos budistas, há dois séculos e meio, os imperadores Qing criaram, sem saber, a primeira DisneyWorld do planeta. E a diversão continua até hoje.

A China é um dos 222 países e territórios do Teste de Viajologia Mundial

Haroldo Castro viaja como jornalista, fotógrafo e conservacionista. O fundador do Clube de Viajologia já visitou 135 países.